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A alma dorme no mineral?

Autor: Paulo Neto

É comum ouvirmos a frase: “A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem”, cuja autoria é atribuída a Léon Denis. Só que, curiosamente, até hoje ninguém nos demonstrou que, de fato, ele tenha dito exatamente isso. Mas, na busca em que nos empenhamos para encontrá-la, acabamos por nos deparar com a frase verdadeira, vejamo-la: Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente; a partir daí, o progresso, de alguma sorte fatal nas formas inferiores da Natureza, só se pode realizar pelo acordo da vontade humana com as leis Eternas. (DENIS, 1989, p. 123.)

Obviamente que, mesmo em sentido figurado, “dormir na planta” não é a mesma coisa que “dormir na pedra”, que é um assunto que ainda causa polêmica em nosso meio. Bom, a questão é saber se o sucessor do codificador contrariou aquilo que foi dito por ele. Particularmente, acreditamos que não.

Inicialmente recorreremos ao que ele, Kardec, disse na Introdução da primeira edição de O Livro dos Espíritos: Qualquer que seja, é um fato que não se pode contestar, pois é um resultado de observação, é que os seres orgânicos têm em si uma força íntima que produz o fenômeno da vida, enquanto essa força existe; que a vida material é comum a todos os seres orgânicos e que ela é independente da inteligência e do pensamento: que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas; enfim, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e de pensamento, há uma dotada de um senso moral especial que lhe dá incontestável superioridade sobre as outras, é a espécie humana. Nós chamamos, enfim, inteligência animal ao princípio intelectual comum aos diversos graus nos homens e nos animais, independente do princípio vital, e cuja fonte nos é desconhecida. (KARDEC, 2004, p. 3.)

Os seres orgânicos nascem, crescem, reproduzem-se por si mesmos e morrem 

Isso foi necessário apenas para verificar que, já desde a primeira edição desse livro, Kardec, sem meias palavras, afirma que “a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas”, definindo-as desta forma: Os seres orgânicos são os que têm em si uma fonte de atividade íntima que lhes dá a vida. Nascem, crescem, reproduzem-se por si mesmos e morrem. São providos de órgãos especiais para a execução dos diferentes atos da vida, órgãos esses apropriados às necessidades que a conservação própria lhes impõe. Nessa classe estão compreendidos os homens, os animais e as plantas. (KARDEC, 2007a, p. 91.)

E, para que possamos separá-los dos inorgânicos, trazemos também a definição desses: Seres inorgânicos são todos os que carecem de vitalidade, de movimentos próprios e que se formam apenas pela agregação da matéria. Tais são os minerais, a água, o ar etc. (KARDEC, 2007a, p. 91.)

Então, segundo Kardec, podemos classificar os seres orgânicos em homens, animais e plantas. Quando, no livro A Gênese, ele estuda o Instinto e a Inteligência (Capítulo III), faz diversas considerações, nas quais vamos encontrar alguma coisa para dirimir possíveis dúvidas.

Diz lá: O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos espontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles. Nos atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para a terra nutriente; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme se lhe faz necessário; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio, ou se lhe agarram com as gavinhas.

É pelo instinto que os animais são avisados do que lhes convém ou prejudica; que buscam, conforme a estação, os climas propícios; que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para as suas progênies, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam destramente as armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam; que a mãe choca os filhos e que estes procuram o seio materno.

No homem, só em começo da vida o instinto domina com exclusividade; é por instinto que a criança faz os primeiros movimentos, que toma o alimento, que grita para exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos espontâneos para evitar um risco, para fugir a um perigo, para manter o equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o brilho da luz, o abrir maquinal da boca para respirar etc. (KARDEC, 2007b, p. 89.)

O instinto varia em suas manifestações, conforme às espécies e às suas necessidades 

Nessa fala de Kardec fica claro que ele admite o instinto nas plantas, nos animais e nos homens. Mas, “o que tem a ver instinto com inteligência?”, poderia alguém nos perguntar. Pois bem, essa dúvida foi respondida pelos Espíritos, que afirmaram que o instinto é uma espécie de inteligência, uma inteligência não racional (resposta à pergunta 73).

Um pouco mais à frente, ao comentar a resposta à pergunta 75, o codificador explica: O instinto é uma inteligência rudimentar, que difere da inteligência propriamente dita, em que suas manifestações são quase sempre espontâneas, ao passo que as da inteligência resultam de uma combinação e de um ato deliberado.

O instinto varia em suas manifestações, conforme às espécies e às suas necessidades. Nos seres que têm a consciência e a percepção das coisas exteriores, ele se alia à inteligência, isto é, à vontade e à liberdade. (KARDEC, 2007a, p. 97.)

Portanto, pela ordem, as plantas, os animais e os homens possuem o princípio inteligente, variando apenas quanto ao grau de sua manifestação. Entretanto, até agora, não há nada atribuindo também aos minerais esse princípio, ou que ele tenha, por alguma vez, estagiado em seres inorgânicos. Coisa difícil de entender, já que esses seres não possuem vitalidade; portanto, não estão sujeitos ao “nascer, crescer e morrer”, ciclo indispensável, segundo acreditamos, para que ocorra o progresso intelectual desse princípio. 

A destruição não passa de uma transformação, que tem por fim a renovação dos seres vivos

O esclarecimento a respeito do instinto de conservação vai nos ajudar a clarear mais ainda essa questão. Lemos em O Livro dos Espíritos:

702. É lei da Natureza o instinto de conservação?

“Sem dúvida. Todos os seres vivos o possuem, qualquer que seja o grau de sua inteligência. Nuns, é puramente maquinal, raciocinado em outros.”

703. Com que fim outorgou Deus a todos os seres vivos o instinto de conservação?

“Porque todos têm que concorrer para cumprimento dos desígnios da Providência. Por isso foi que Deus lhes deu a necessidade de viver. Acresce que a vida é necessária ao aperfeiçoamento dos seres. Eles o sentem instintivamente, sem disso se aperceberem.”

728. É lei da Natureza a destruição?

“Preciso é que tudo se destrua para renascer e se regenerar. Porque, o que chamais destruição não passa de uma transformação, que tem por fim a renovação e melhoria dos seres vivos.” (KARDEC, 2007a, p. 378 e 389.)

Do que concluímos que todos os seres vivos possuem a inteligência em algum grau, que a vida é necessária a seu progresso e que a destruição é necessária para que isso aconteça; então, no que concerne aos minerais, acreditamos que nada disso se aplica.

Voltando ao livro A Gênese, iremos encontrar uma fala de Kardec que, a nosso ver, põe um ponto final sobre como ele via o assunto.

Vejamos quando ele fala da “União do princípio espiritual e da matéria”, no capítulo XI, item 10: Tendo a matéria que ser o objeto de trabalho do Espírito para o desenvolvimento de suas faculdades, era necessário que ele pudesse atuar sobre ela, pelo que veio habitá-la, como o lenhador habita a floresta. Tendo a matéria que ser, ao mesmo tempo, objetivo e instrumento do trabalho, Deus, em vez de unir o Espírito à pedra rígida, criou, para seu uso, corpos organizados, flexíveis, capazes de receber todas as impulsões da sua vontade e de se prestarem a todos os seus movimentos. O corpo é, pois, simultaneamente, o envoltório e o instrumento do Espírito e, à medida que este adquire novas aptidões, reveste outro envoltório apropriado ao novo gênero de trabalho que deve executar, tal qual se faz com o operário, a quem é dado instrumento menos grosseiro, à proporção que ele se vai mostrando apto a executar obra mais bem cuidada. (KARDEC, 2007b, p. 241-242.)

A matéria inerte, que constitui o reino mineral, só tem em si uma força mecânica 

Pelo que podemos deduzir dessa fala, não há como admitir que o princípio inteligente tenha estagiado nos minerais, a não ser contrariando o que aqui foi dito por Kardec.

Na explicação da resposta à pergunta 71, de O livro dos Espíritos, o codificador faz a seguinte consideração: A inteligência é uma faculdade especial, peculiar a algumas classes de seres orgânicos e que lhes dá, com o pensamento, a vontade de atuar, a consciência de que existem e de que constituem uma individualidade cada um, assim como os meios de estabelecerem relações com o mundo exterior e de proverem às suas necessidades.

Podem distinguir-se assim: 1º. – os seres inanimados, constituídos de matéria, sem vitalidade nem inteligência, que são os corpos brutos; 2º. – os seres animados que não pensam, formados de matéria e dotados de vitalidade, porém, destituídos de inteligência; 3º. – os seres animados pensantes, formados de matéria, dotados de vitalidade e tendo a mais um princípio inteligente que lhes dá a faculdade de pensar. (KARDEC, 2007a, p. 96.)

Classificam-se, portanto, os reinos da natureza em três: o mineral, o vegetal e o animal, na ordem citada por Kardec. Assim, fica claro, pelo que ele coloca, que o reino mineral não tem vitalidade nem inteligência, o que ainda se confirma neste trecho: “A matéria inerte, que constitui o reino mineral, só tem em si uma força mecânica”. (KARDEC, 2007a, p. 327.)

Buscando-se também a questão 136a, veremos que a hipótese da presença do princípio inteligente no mineral é de todo improvável, porquanto: “A vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas a alma não pode habitar um corpo privado de vida orgânica”. (KARDEC, 2007a, p. 125.)

A escala orgânica segue em todos os seres, do pólipo ao homem, a progressão da inteligência 

Na Revista Espírita 1868, Kardec tece alguns comentários sobre a crença de que a Terra teria uma alma, que é de interesse ao nosso estudo.

Vejamos: […] A Terra é um ser vivo? Sabemos que certos filósofos, mais sistemáticos do que práticos, consideram a Terra e todos os planetas como seres animados, fundando-se sobre o princípio de que tudo vive na Natureza, desde o mineral até o homem. De início, cremos que há uma diferença capital entre o movimento molecular de atração e de repulsão, de agregação e de desagregação do mineral o princípio vital da planta; há efeitos diferentes que acusam causas diferentes, ou pelo menos uma modificação profunda na causa primeira, se ela for única. (Gênese, cap. X, nº 16 a 19.)

Mas admitamos por um instante que o princípio da vida tenha sua fonte no movimento molecular, não se poderia contestar que seja mais rudimentar ainda no mineral do que na planta; ora, daí a uma alma cujo atributo essencial é a inteligência, a distância é grande; ninguém, cremos, pensou em dotar um calhau ou um pedaço de ferro da faculdade de pensar, de querer e de compreender. Mesmo fazendo todas as concessões possíveis a esse sistema, quer dizer, em nos colocando no ponto de vista daqueles que confundem o princípio vital com a alma propriamente dita. A alma do mineral não estaria senão no estado de germe latente, uma vez que nele não se revela por nenhuma manifestação.

Um fato não menos patente do que aquele que acabamos de falar é que o desenvolvimento orgânico está sempre em relação com o desenvolvimento do princípio inteligente; o organismo se completa à medida que as faculdades da alma se multiplicam. A escala orgânica segue constantemente, em todos os seres, a progressão da inteligência, desde o pólipo até o homem; e isso não poderia ser de outra maneira, uma vez que falta à alma um instrumento apropriado à importância das funções que ela deve preencher. De que serviria à ostra ter a inteligência do macaco sem os órgãos necessários à sua manifestação? Se, pois, a Terra fosse um ser animado servindo de corpo a uma alma especial, esta alma deveria ser ainda mais rudimentar do que a do pólipo, uma vez que a Terra não tem mesmo a vitalidade da planta, ao passo que pelo papel que se atribui a essa alma, sobretudo na teoria da incrustação, dela se faz um ser dotado de razão e do livre-arbítrio mais completo, um Espírito superior, em uma palavra, o que não é nem racional nem conforme à lei geral, porque jamais o Espírito foi mais aprisionado e mais dividido. 

A ideia da alma da Terra, entendida nesse sentido, tão bem quanto aquela que faz da Terra um animal, deve, pois, ser alinhada entre as concepções sistemáticas e quiméricas. (KARDEC, 1993a, p. 261-262).

Desses argumentos de Kardec, ressaltam-nos quatro pontos: a) estabelece uma diferença entre o movimento molecular de atração e de repulsão, de agregação e de desagregação do mineral e o princípio vital da planta, o que de certa forma é diferenciá-los no aspecto de terem vida; b) que o princípio da vida não tem a mesma fonte que o movimento molecular e nem do princípio inteligente; c) que um calhau[1] ou um pedaço de ferro tenham a faculdade de pensar, de querer e de compreender; d) que o progresso da inteligência é atributo dos seres da escala orgânica, desde o pólipo até o homem, ficando, portanto, de fora dessa lei os seres inorgânicos, entre os quais se encontram os minerais. Para nós, só veem corroborar o que já temos dito sobre o princípio inteligente não estagiar no mineral.

Há, é certo, uma coisa comum aos três reinos – mineral, vegetal e animal – é que, em todos eles, os elementos, que formam a sua matéria, são os mesmos, variando, obviamente, as suas combinações.

Discorrendo sobre os fluidos espirituais, Kardec pondera:

Tudo se liga na obra da criação. Outrora consideravam-se os três reinos como inteiramente independentes um do outro, e ter-se-ia rido daquele que tivesse pretendido encontrar uma correlação entre o mineral e o vegetal, entre o vegetal e o animal. Uma observação atenta faz desaparecer a solução de continuidade, e prova que todos os corpos formam uma cadeia ininterrupta; de tal sorte que os três reinos não subsistem, na realidade, senão pelos caracteres gerais mais marcantes; mas sobre seus limites respectivos eles se confundem, ao ponto que se hesita em saber onde um acaba e o outro começa, e no qual certos seres devem ser classificados; tais são, por exemplo, os zoófitos ou animais plantas, assim chamados porque, ao mesmo tempo, têm do animal e da planta. A mesma coisa tem lugar para o que concerne à composição dos corpos.  

Todos os corpos da Natureza são formados com os mesmos elementos 

Por muito tempo, os quatro elementos serviram de base às ciências naturais; caíram diante das descobertas da química moderna, que reconheceu um número indeterminado de corpos simples. A química nos mostra todos os corpos da Natureza formados desses elementos combinados em diversas proporções; é da variedade infinita dessas combinações que nascem as inumeráveis propriedades dos diferentes corpos. […]

Todos os corpos da Natureza, minerais, vegetais, animais, animados ou inanimados, sólidos, líquidos ou gasosos, são, pois, formados dos mesmos elementos, combinados de maneira a produzirem a infinita variedade dos diferentes corpos, a ciência vai mais longe hoje; suas investigações a conduzem pouco a pouco à grande lei da unidade. Agora é quase geralmente admitido que os corpos reputados simples não são senão modificações, transformações de um elemento único, princípio universal designado sob o nome de éter, fluido cósmico ou universal; de tal sorte que, segundo o modo de agregação das moléculas desse fluido, e sob a influência de circunstâncias particulares, adquire propriedades especiais que constituem os corpos simples; esses corpos simples, combinados entre si em diversas proporções, formam, como dissemos, a inumerável variedade dos corpos compostos. Segundo esta opinião, o calor, a luz, a eletricidade e o magnetismo não seriam igualmente senão modificações do fluido primitivo universal. Assim, esse fluido que, segundo toda a probabilidade, é imponderável, seria ao mesmo tempo o princípio dos fluidos imponderáveis e dos corpos ponderáveis. (KARDEC, 1993b, p. 66-69) (grifo nosso).

Então, aqui, temos o que liga os três reinos da natureza: os elementos químicos que existem nas matérias das quais são formados. 

Há laços que ligam o mineral ao vegetal, o vegetal ao animal e este ao homem 

Vejamos, agora, duas transcrições das obras de Kardec, nas quais é falada a questão do princípio inteligente ter passado pelo reino mineral.

A primeira, vamos encontrar na Revista Espírita 1865, numa mensagem recebida em Paris, na qual não consta o autor espiritual: Vou tocar uma grave questão esta noite, falando-vos das relações que podem existir entre a animalidade e a humanidade. […]

Mas tudo não se detém em crer somente no progresso incessante do Espírito, embrião na matéria e se desenvolvendo ao passar pelo exame severo do mineral, do vegetal, do animal, para chegar à humanidade, onde somente começa a se ensaiar a alma que se encarnará, orgulhosa de sua tarefa, na humanidade. Existem entre essas diferentes fases laços importantes que é necessário conhecer e que eu chamarei períodos intermediários ou latentes; porque é aí que se operam as transformações sucessivas. Falar-vos-ei mais tarde dos laços que ligam o mineral ao vegetal, o vegetal ao animal; uma vez que um fenômeno que vos espanta nos leva aos laços que ligam o animal ao homem, vou vos entreter com estes últimos.

Entre os animais domésticos e o homem, as afinidades são produzidas pelas cargas fluídicas que vos cercam e recaem sobre eles; é um pouco a humanidade que se detém sobre a animalidade, sem alterar as cores de uma ou de outra; daí essa superioridade inteligente do cão sobre o instinto brutal da besta selvagem, e é a esta causa somente que poderão ser devidas estas manifestações que vêm de vos ler. Não se está, pois, enganado ouvindo um grito alegre do animal e conhecendo os cuidados de seu senhor, e vindo, antes de passar ao estado intermediário de um desenvolvimento a outro, trazer-lhe uma lembrança. A manifestação pode, pois, ocorrer, mas ela é passageira, porque o animal, para subir de um degrau, é preciso um trabalho latente que aniquile, para todos, todo sinal exterior de vida. Esse estado é a crisálida espiritual onde se elabora a alma, perispírito informe, não tendo nenhuma figura reprodutiva de traços, quebrando-se num estado de maturidade, para deixar escapar, nas correntes que os carregam, os germes de almas que ali eclodem. Ser-nos-ia, pois, difícil vos falar dos Espíritos de animais do espaço; ele não existe, ou, antes, sua passagem é tão rápida que é como nula, e que, no estado de crisálida, não poderiam ser descritos. (KARDEC, 2000, p. 132-133).

O Espírito do homem, antes de chegar à humanidade,  sobe todos os graus da escala 

No início tem-se como verdade o progresso da alma nos três reinos; porém, pareceu-nos contraditório, quando disse que “este estado é a crisálida espiritual onde se elabora a alma”, porquanto estava se referindo somente ao reino animal, assunto que se propôs a tratar. Promete, para mais tarde, falar da relação entre o mineral e o vegetal e deste para a do animal, o que, infelizmente, não fez.

Kardec, ao comentar essa mensagem, cautelosamente, diz:

Quando tivermos reunido todos os documentos suficientes, nós os resumiremos em um corpo de doutrina metódico, que será submetido ao controle universal; até lá não são senão balizas colocadas sobre o caminho para clareá-lo. (KARDEC, 2000, p. 133-134).

A segunda, tiramo-la da carta escrita pelo Dr. Charles Grégory, fervoroso adepto do Espiritismo, a Kardec, que, a certa altura de sua defesa da Homeopatia, dá esta opinião:

E depois, como creio que o Espírito do homem, antes de se encarnar na humanidade, sobe todos os graus da escala e passa pelo mineral, a planta e o animal e na maioria dos tipos de cada espécie onde preludia seu completo desenvolvimento como ser humano, quem me diz que, dando-lhe medicamente o que não é mais nem o mineral, nem a planta, nem o animal, mas o que se poderia chamar a sua essência, de alguma sorte seu espírito, não se atua sobre a alma humana composta dos mesmos elementos? Porque, é preciso dizê-lo, o espírito é bem alguma coisa, e uma vez que se desenvolveu e se desenvolve sem cessar, precisou tomar esses elementos de alguma parte. (KARDEC, 1999, p. 169).

Os fatos são mais concludentes que as teorias e são eles que as confirmam ou derrubam 

Como quase sempre fazia, Kardec não deixou de tecer seus comentários a essa carta. As observações do Dr. Charles, quanto à Homeopatia, foram consideradas pertinentes; entretanto, ao final de seus comentários, o codificador coloca:

Em resumo, não contestamos que certos medicamentos, e a homeopatia mais do que qualquer outra, não produzem alguns dos efeitos indicados, mas não lhes contestamos mais senão os resultados permanentes, e, sobretudo, tão universais que alguns o pretendem. Um caso em que a homeopatia, sobretudo, pareceria particularmente aplicável com sucesso, é o da loucura patológica, porque aqui a desordem moral é a consequência da desordem física, e que está constatado agora, pela observação dos fenômenos espíritas, que o Espírito não é louco; não se tem o que modificá-lo, mas dar-lhe os meios de se manifestar livremente. A ação da homeopatia pode ser aqui tanto mais eficaz quanto ela atue principalmente, pela natureza espiritualizada de seus medicamentos, sobre o perispírito, que desempenha um papel preponderante nesta afecção.

Teríamos mais de uma objeção a fazer sobre algumas das proposições contidas nesta carta; mas isto nos levaria muito longe; contentamo-nos, pois, em colocar as duas opiniões em frente. Como em tudo, os fatos são mais concludentes do que as teorias, e são eles, em definitivo, que confirmam ou derrubam estas últimas, desejamos ardentemente que o Sr. doutor Grégory publique um tratado especial prático da homeopatia aplicada ao tratamento das moléstias morais, a fim de que a experiência possa se generalizar e decidir a questão. Mais do que qualquer outro, ele nos parece capaz para fazer esse trabalho ex-professo. (KARDEC, 1999, p. 171-172).

Sinceramente, acreditamos que as ”mais de uma objeção” de Kardec tinham por objetivo a crença de que a alma humana, em sua ascensão rumo à meta final, passa pelos três reinos, levando-se em conta tudo quanto vimos, em suas obras, de sua maneira de pensar.

Podemos ainda encontrar algo tratando o reino mineral como “criatura”: Esse fluido penetra os corpos, como um oceano imenso. É nele que reside o princípio vital que dá origem à vida dos seres e a perpetua em cada globo, conforme a condição deste, princípio que, em estado latente, se conserva adormecido onde a voz de um ser não o chama. Toda criatura, mineral, vegetal, animal ou qualquer outra – porquanto há muitos outros reinos naturais, de cuja existência nem sequer suspeitais, sabe, em virtude desse princípio vital e universal, apropriar as condições de sua existência e de sua duração.

As moléculas do mineral têm uma certa soma dessa vida, do mesmo modo que a semente do embrião, e se grupam, como no organismo, em figuras simétricas que constituem os indivíduos. 

Deus, como se sabe, há criado sempre, cria sem cessar e nunca deixará de criar 

Muito importa nos compenetremos da noção de que a matéria cósmica primitiva se achava revestida, não só das leis que asseguram a estabilidade dos mundos, como também do universal princípio vital que forma gerações espontâneas em cada mundo, à medida que se apresentam as condições da existência sucessiva dos seres e quando soa a hora do aparecimento dos filhos da vida, durante o período criador.

Efetua-se assim a criação universal. É, pois, exato dizer-se que, sendo as operações da Natureza a expressão da vontade divina, Deus há criado sempre, cria incessantemente e nunca deixará de criar. (KARDEC, 2007b, p. 135-136).

O problema, que reside aqui, é que Kardec fez questão de colocar que “Este capítulo é textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título “Estudos uranográficos” e assinadas GALILEU. Médium: C. F.” (KARDEC, 2007b, p. 121). O que nos leva a crer que, dessa forma, deixa claro que não houve Controle Universal do Ensino dos Espíritos; por isso, o assunto deve ser tratado como hipótese, não como verdade doutrinária.

Conforme descobrimos, essa hipótese provavelmente tenha sido retirada dos livros No Mundo Maior e Evolução em Dois Mundos, da série André Luiz. Não seremos nós quem irá contestar esse autor; entretanto, talvez por ousadia, questionamo-lo na seguinte fala: “A crisálida de consciência, que reside no cristal a rolar na corrente do rio, aí se acha em processo, libertatório;…” (XAVIER, 1984, p. 45). Como um cristal, que rola no leito de um rio, “morre” para que a crisálida, que possivelmente esteja nele, passe para o estágio evolutivo seguinte? Quando nós usamos esses cristais, incrustando-os nas paredes de nossas casas, a crisálida ficaria ali presa indefinidamente? Devemos proteger os cristais como estamos procurando fazer em relação aos seres vivos dos outros reinos da natureza? Esses são alguns quesitos que poderíamos apresentar a André Luiz.

É por essas coisas que temos enorme dificuldade em aceitar tal premissa, que, também, se não estivermos enganados, não é aquela que encontramos nas obras da codificação.

Dessa forma nos alinhamos com outros autores, já consagrados no meio espírita, que já responderam à pergunta, que dá título a esse nosso texto, com um sonoro não. 

Referências 

DENIS, L. O Problema do Ser, do Destino e da Dor. Rio de Janeiro: FEB, 1989.

KARDEC, A. A Gênese. Araras-SP: IDE, 1993.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos – Primeira edição de 1857. Itaim Bibi, SP: Ipece, 2004.

KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2007.

KARDEC, A. Revista Espírita 1865. Araras, SP: IDE, 2000a.

KARDEC, A. Revista Espírita 1866. Araras, SP: IDE, 1993b.

KARDEC, A. Revista Espírita 1868. Araras, SP: IDE, 1993a.

XAVIER, F. C. Evolução em Dois Mundos. Rio de Janeiro: FEB, 1987.

XAVIER, F. C. No Mundo Maior. Rio de Janeiro: FEB, 1984.

NETO SOBRINHO, P. S. A alma dos animais: estágio anterior da alma humana?. Divinópolis-MG: Panorama Espírita, 2006.

Nota

A versão original deste artigo foi publicada na Revista Espiritismo e Ciência, Ano 4, nº 46, p. 29-32.

O consolador – Ano 5 – N 233 e 234 – Especial.

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