Autora: Cristina Sarraf
Na sessão anual comemorativa dos mortos, da Sociedade Parisiene de Estudos Espíritas, em 1º- de novembro de 1868, Kardec proferiu um discurso de abertura, cujo tema é a comunhão de pensamentos e sua aplicação em reuniões espíritas. Em vários trechos ele fala de caridade.
“Qual é, pois, o laço que deve existir entre os Espíritas? … É um sentimento todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade para todos. Dito de outro modo: o amor do próximo, que engloba os vivos e os mortos, uma vez que sabemos que os mortos sempre fazem parte da Humanidade.
A caridade é a alma do Espiritismo: ela resume todos os deveres do Homem para consigo mesmo e para com os seus semelhantes…
Mas a caridade é ainda uma dessas palavras de sentido múltiplo… O campo da caridade é muito vasto; ele compreende duas grandes divisões …: Caridade beneficente e caridade benevolente. … a primeira, é naturalmente proporcional aos recursos materiais dos quais se dispõe; mas a segunda está ao alcance de todo o mundo, do mais pobre ao mais rico. Se a beneficência é forçosamente limitada, apenas a vontade pode pôr limites à benevolência.
O que é preciso, pois, para praticar a caridade benevolente? Amar seu próximo como a si mesmo: … se agirá para com outrem como se gosta que os outros hajam para conosco, não se desejará nem se fará mal a ninguém, porque não gostaríamos que nos fizessem.
Amar seu próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio, de animosidade, de rancor, de inveja, de ciúme, de vingança, em uma palavra, todo desejo e todo pensamento de prejudicar; é perdoar os seus inimigos e restituir o bem onde haja o mal; é ser indulgente para com as imperfeições de seus semelhantes e não procurar a palha no olho de seu vizinho, então que não se vê a trave que está no seu; é ocultar ou desculpar as faltas de outrem, em lugar de se comprazer em pô-las em relevo pelo espírito de denegrir; é ainda não se fazer valer às custas dos outros; de não procurar esmagar ninguém sob o peso de sua superioridade; de não desprezar ninguém por orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade prática, sem a qual a caridade é uma palavra vã… “.
No discurso proferido aos espíritas de Lyon e Bordeaux, em 1862, registrado para a posteridade pelo próprio Kardec, o tema é a caridade aplicada em si, nas relações entre espíritas e destes com toda a sociedade, contribuindo para a fraternidade universal e a renovação das relações sociais e legais entre os povos. Nele encontramos: “Há caridade em pensamentos, palavras e atos”. “…
ela se aplica a todas as relações pessoais…está inteira na frase do Cristo: Fazei aos outros o que quiserdes que vos façam.” Caridade é um sentimento de benevolência, de justiça …” A caridade é a base, a pedra angular de todo o edifício social”.
Embora sejam trechos, pode-se observar que o conceito de Kardec sobre caridade, é bastante diverso do sustentado pelas religiões dogmáticas, predominante na nossa sociedade, inclusive entre espíritas.
Mesmo tendo usado, para ilustrar temas e estudos, textos de Espíritos cujas ideias representavam ainda, o catolicismo em que estiveram atuantes, isso não atrapalhou e nem mudou a forma ampla e renovadora de Kardec ver a caridade.
Com as palavras dele, diz que é uma descoberta interior de que todos somos fruto do pensamento de Deus, estamos evoluindo e passamos por embaraços e dificuldades; por isso precisamos, sem exceção e em muitos momentos, de alguma compreensão e colaboração. O que não estabelece que quem precisa é menos, é inferior, em relação àquele que circunstancialmente tem o que oferecer. Ao contrário, é sempre uma troca; momentos de fraternidade e de solidariedade natural, nascida d´alma.
Ou seja, quando somos induzidos, por argumentos conscienciais-moralistas, a fazer pelos coitados, a ter dó dos coitadinhos, a ser médium para salvar Espíritos, … ou então sofreremos amanhã, iremos para o umbral, passaremos necessidades, somos egoístas, e outros tantos terrorismos, está sendo construída uma atitude, mesmo que involuntária, de orgulho e hipocrisia. Atitude oposta à fraternidade, à educação espiritual, à recuperação moral dos caídos e à justiça social, buscada pela consciência humana.
Ninguém é coitado e ninguém “tem que” nada!
Há que haver um movimento interno, que vem de forma natural e não medrosa, nem pelas conveniências sociais e muito menos pela busca de prestígio e elogios.
Que se atenda necessidades, se o coração mandar! Mas não pelo espírito de superioridade, de ser herói, salvador e solucionador do problema do outro que, coitado, não consegue, não sabe, não pode… Vaidade pura!
Caridade é um novo modo de ver o outro, uma postura pessoal que nasce da compreensão sobre a solidariedade que há entre tudo e todos, minerais, vegetais, animais e humanos, encarnados e desencarnados.
É algo com você, e não por causa da situação do outro, que o faz colaborar e nunca suprir/dominar/assumir.
É uma questão de foro íntimo, de respeito por si próprio, de auto dignidade por usar, em tudo, o conhecimento de que as variantes do entendimento humano podem gerar embaraços, sofrimento e limitações. É também compreender a ignorância que todos tem, no seu ponto, e que leva a relativa incapacidade diante de fatores perturbantes.
Kardec deixa muito claro que não é nos atos que se vê a verdadeira caridade, mas na maturação moral, nascida das experiências e entendimento de sermos todos semelhantes, o que estabelece formas naturais de se partilhar e trocar recursos de todo tipo. E para nós, essa maturação é facilitada pelas leis universais, trazidas pelos Espíritos da Codificação, como Princípios do Espiritismo.
É tempo de reciclarmos ideias/conceitos, colocando-nos dignos dos que trazem crescimento interior e elevação moral, ao mesmo tempo em que descartamos os que nos prendem a medos, induções maldosas e tradições superadas.