Autor: Marcelo Teixeira
Sim. Ela é diversa. Ela tende a se espraiar por todos os setores da sociedade e fazer com que sintamos sua força nos tomando de roldão e nos levando para singrar belos e intensos mares nunca dantes navegados.
Ela é a fraternidade, palavra originária do latim fraternitas e que significa irmandade, reunião de irmãos, de almas afins.
Como é bom quando nos reunimos com pessoas afins conosco, não é mesmo?
E quanto às pessoas que não fazem parte da nossa turma? Ah, essas a gente deixa para lá! Mas, aí, onde fica a fraternidade em seu conceito universal, amplo, fundamentalmente cristão? Afinal, somos ou não somos irmãos em humanidade?
No livro A Voz do Monte, o escritor paulista Richard Simonetti analisa o Sermão do Monte. No capítulo destinado ao “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus”, ele observa como é grande o número de pessoas que se comportam como se não tivessem sido geradas pelo Criador. Tiranos, déspotas, sanguinários, torturadores etc., sejam eles figuras de grande projeção ou simplesmente anônimos.
Nas palavras de Richard, um filho tem como dever principal respeitar a casa de seu pai e sua mãe. Quem assim não procede, “pode ser chamado filho, sob o ponto de vista biológico, mas moralmente é um bastardo (…) por faltar-lhe o elementar dever de gratidão e respeito para com aqueles que o colocaram no mundo”.
Simonetti ressalta que nossas contradições não são evidências de que não sejamos filhos de Deus. Todos o somos. No entanto, nossos desajustes e descompassos fazem parte do processo de maturação espiritual. Estamos em franco aperfeiçoamento moral, percebamos ou não. Mais dia, menos dia, a marca da filiação Divina será mais latente em nossa conduta. Quando isso acontecer, nos sentiremos verdadeiramente filhos do Pai Maior, pois estaremos em sintonia plena e constante com Ele.
Se como filhos de Deus ainda pisamos na bola, como irmãos uns dos outros, então, nem se fala! É aí que a fraternidade vem para o centro da conversa.
Em 2015, o então governador de S. Paulo, Geraldo Alckmin, perdeu o filho caçula – Thomaz – em um acidente de helicóptero que também vitimou outros quatro homens. À época, havia constantes protestos acerca das mudanças que o governo de São Paulo queria implantar na rede estadual de ensino. Houve quem fosse para as proximidades do local do velório, empunhando cartazes, para protestar contra a política educacional de Geraldo Alckmin.
Sou francamente favorável às razões que levaram os jovens paulistas a tomar as ruas e ocupar escolas. Estou com eles e não abro. No entanto, é falta de fraternidade perturbar alguém que está de luto, ainda mais devido à perda de um filho. Há hora para tudo, e o melhor a fazer no momento era respeitar a dor alheia. Nesses momentos, não há espaço para divergências políticas. Deve haver respeito calcado na fraternidade.
O Brasil do meio da segunda década do século 21 vem passando por sérias turbulências sociais e políticas e dividindo as pessoas em grupos (às vezes raivosos) prós e contras essa ou aquela ideologia política, convicção religiosa, orientação sexual etc.
Em dezembro de 2015 o cantor e compositor Chico Buarque foi achacado por alguns jovens quando, em companhia de amigos, saía de um restaurante no Leblon, bairro nobre da Zona Sul carioca.
Um dos jovens o provocou por ser simpatizante de um partido de esquerda. Disse, inclusive, que todos os membros daquele partido eram ladrões. Chico deu uma resposta simples e apaziguadora, mas foi rebatido com palavreado de baixo calão. Em seguida, o autor de A Banda e outras joias da MPB foi interpelado pelo grupo por ter um apartamento em Paris. Na visão deles, alguém simpático à esquerda não deveria ter moradia na capital francesa. O achaque prosseguiu. Chico, sem perder a calma, rebateu dizendo que, na opinião dele, eram bandidos os membros do partido que os playboys supostamente defendiam.
Meses depois, abril de 2016, foi a vez de o ator José de Abreu passar pelo mesmo constrangimento quando jantava com a esposa em um restaurante de São Paulo. O jovem que o hostilizou alegou, em voz alta, que achava um acinte alguém da esquerda comer num restaurante japonês voltado a pessoas de alto poder aquisitivo. O entrevero seguiu com troca de ofensas e acusações infundadas vindas do rapaz e sua acompanhante. Culminou com Zé cuspindo em ambos. Lamentável desfecho.
Lembro que, certa vez, um amigo postou na rede social Facebook um comentário maldoso acerca da atriz Regina Casé. Segundo ele, Regina, apresentadora do programa Esquenta, enaltece a periferia e os favelados, mas era digna do desprezo dele por morar no Leblon (ah, o Leblon!). À época, o deputado federal Jean Wyllis, do RJ, membro de um partido de esquerda, foi alvo de críticas semelhantes por ter aceitado participar de um evento, no qual ficou no camarote VIP.
Chico Buarque e José de Abreu são da esquerda e sofrem agressões por terem apartamentos em Paris e jantarem em restaurantes caros. Regina, na visão do meu amigo, não deveria morar na Zona Sul carioca, mas numa comunidade carente. E Jean jamais poderia aceitar bancar o convidado VIP. Tudo isso soa a despeito.
Vivemos uma espécie de cultura do despeito, sentimento que, segundo o Espírito Joanna de Ângelis, no livro Vida Feliz (psicografia: Divaldo P. Franco), inspira-se em atitudes infelizes, fomentando perseguições gratuitas, acusações sem fim e informações venenosas.
Por que artistas simpatizantes de um partido de esquerda não podem ter imóveis em Paris? Chico Buarque é de família de intelectuais de classe média alta. Além disso, é um dos mais importantes nomes de nossa cultura. E José de Abreu trabalha desde os 14 anos. Tem uma longa e consagrada trajetória no cinema, teatro e TV. Ou seja, ambos compraram apartamentos na Cidade Luz e jantam em restaurantes caros porque têm dinheiro fruto de trabalho árduo e incessante de décadas. Qual é o problema? E Regina Casé é neta de Ademar Casé (pioneiro do rádio no Brasil) e filha de Geraldo Casé, consagrado diretor de TV, responsável, entre outras obras, pela premiada versão televisiva do Sítio do Pica-pau Amarelo que foi ao ar na TV Globo, na segunda metade da década de 70 do século passado. E Jean foi a um evento para o qual foi convidado. Por que tanta celeuma em torno disso?
Segundo o texto de Joanna de Ângelis, “O despeitado não perdoa o triunfo do próximo”. Nos casos acima, na visão do despeitado, Chico e José de Abreu deveriam comer prato feito no boteco da esquina e morar num quarto e sala de um bairro popular. Mas como almoçam em restaurantes caros e têm dinheiro para comprar imóveis no exterior, são alvos da ira dos despeitados. Idem Regina que, na visão dos playboys, não pode morar bem e gostar do pessoal que não mora tão bem quanto ela. Então, ela que se mude para a favela e deixe os despeitados em paz. E Jean, deputado esquerdista, que vá a alguma festinha de fundo de quintal; nunca a um camarote VIP.
Joanna termina a mensagem dizendo que devemos aprender a compartilhar do triunfo do próximo. Aí, seremos felizes. Isso se chama fraternidade.
Infelizmente, e por diversas razões, não é o que temos visto. As pessoas andam com raiva de quem pensa de modo diferente do delas. Principalmente se o diferente for da mesma classe social e frequentar os mesmos locais que ela. – Mas, como? Ele é sócio do mesmo clube, frequenta os mesmos restaurantes, tem o mesmo padrão de vida que o meu! Mora tão bem quanto eu! Também viaja de primeira classe! É culto, é artista, é da Globo e pensa diferente! Ah, não! Não posso aceitar!
Aí, ficam mordidos, o despeito se instala e partem para a agressão, como nos casos citados.
Só que a fraternidade é diversa, isto é, o mundo não é esse lugar arrumadinho que muitos pensam. Daí, a dificuldade em lidar com o diferente que é próximo. Se esse diferente é de outra classe social, mora em local distante e tem outra orientação sexual etc., tudo bem. Mas o diferente que está próximo assusta. E como! Aí, tratamos de enxotá-lo, pois ele está perturbando a hegemonia de nosso mundinho arrumado feito casa de boneca.
Sou da esquerda, ok? Não precisa fechar o livro e sair correndo. Tampouco atirá-lo ao fogo. Não estou fazendo proselitismo ideológico. Só quero dizer que, por formação de vida e acadêmica, sou da esquerda, embora não seja filiado ou seguidor desse ou daquele partido. Sou filho de famílias de operários, tanto por parte de pai como de mãe. Estudei toda vida em colégio público, fiz curso de inglês porque consegui bolsa, só cursei faculdade quando já trabalhava para pagá-la e sou o único filho e o único neto a ter curso superior. A maioria dos meus professores tinha (e ainda tem) o pensamento mais para a esquerda. Mesmo porque, trata-se de um curso (Comunicação) em que vamos fundo em questões como indústria cultural, manipulação das massas, liberdade de expressão, liberdade de imprensa, teoria política, sociologia da comunicação etc.. Sou, portanto, uma pessoa voltada para a esquerda. Isso sem falar que sou canhoto rs… Essa é minha formação e minha história. Nem melhor nem pior, apenas diferente, ou melhor, diversa, palavra com a qual resolvi qualificar a fraternidade.
Ao mesmo tempo, não posso exigir que um filho da alta classe média paulistana que sempre estudou nos melhores colégios e fez faculdade paga com o dinheiro do pai pense igual a mim. Idem o boia-fria, o peão de obra, o seringueiro, o metalúrgico, o capitão de indústria… Principalmente em se tratando de um país extenso e cheio de contrastes sociais, geográficos e culturais como o nosso. Não existem o certo e o errado, mas diversas formas de encarar a mesma realidade. Nascemos em lares diferentes, fomos educados de modo diferente, estudamos em escolas diferentes, temos profissões diferentes, somos de classes sociais diferentes, temos religiões diferentes. Além disso, como Espíritos imortais que somos, temos trajetórias totalmente diferentes. Natural, então, que tenhamos opiniões e visões de mundo totalmente diferentes.
É para isso que existe a democracia, pela qual devemos lutar. É no espaço democrático que nos reunimos e buscamos um consenso que seja bom para todos. Por isso, a fraternidade é diversa. Mas se eu julgar que só o meu jeito de viver e pensar é que é correto, a diversidade fraterna bate em retirada e instala-se a intolerância, gerando toda sorte de dissabores em nosso cotidiano. Vide as constantes agressões a homossexuais, a refugiados do continente africano e do Haiti e até a profitentes de religiões de cunho africano, alvos da intolerância de seguidores de algumas denominações evangélicas.
Confesso a vocês que alguns espíritas de Petrópolis ficaram extremamente chocados quando souberam que eu voto preferencialmente em candidatos da esquerda. Chegaram aos meus ouvidos comentários do tipo: – Ué, mas logo ele, que é tão inteligente! – Não é possível, ele é tão bom expositor! – Não acredito; ele é tão lúcido!
Perceberam como condicionamos determinadas qualidades aos que julgamos rigorosamente iguais a nós e como qualquer, digamos, desvio da norma abala as pessoas? Gente assim raciocina da seguinte forma: quem não pensa rigorosamente como eu não é tão bom como eu. Deus me livre!
Até parece que centros espíritas são ilhas da fantasia, onde todo mundo pensa igual a mim sobre absolutamente tudo só porque todos fazem parte da mesma religião.
Saindo um pouco do centro espírita, experimente dizer que é espírita para alguns amigos católicos que frequentam as mesmas rodas sociais que você e que já o observaram falando sobre ética, respeito ao próximo, Jesus Cristo etc. Muitos devem pensar que você é católico. Se você disser que é espírita, abalará as estruturas e deixará muitos chocados porque descobrirão que você não é tão igual quando se pensava.
Foi um fato desses que aconteceu com Artur (nome fictício), gerente de um importante banco público. Ele foi transferido de uma cidade grande para ser gerente geral de uma menor. Isso foi na década de 70 ou 80 do século 20, época em que gerentes de bancos, em cidades pequenas, tinham grande status.
Artur e família eram convidados para churrascos, fins de semana em sítios, aniversários etc. Um dia, um dos novos amigos perguntou a Artur por que ele ainda não tinha aparecido na missa dominical. Artur respondeu que era espírita. Assombro total do interlocutor. Nunca mais convidaram Artur para nada. Perceberam como o igual que se mostra diferente abala as estruturas?
Em 1993, chegou às telas de cinema o filme Philadelphia, que deu o Oscar de melhor ator a Tom Hanks. É a história de Andrew Beckett, 26 anos, jovem e brilhante advogado que é contratado por um grande escritório de advocacia da cidade americana de Filadélfia. Tudo ia bem com a carreira em ascensão de Andrew. Ele era elogiado pelos donos da firma, ganhava causas com argumentos brilhantes, frequentava as festas da alta roda jurídica etc., até que descobrem que Andrew é gay e portador do vírus HIV. Armam uma situação para que ele perca uma causa e o demitem sumariamente. Andrew, então, contrata um advogado homofóbico (interpretado por Denzel Washington), que abraça a causa e faz uma defesa brilhante. Lá pelas tantas, um dos donos do referido escritório, em conversa com os outros maiorais, refere-se a Andrew como uma ameaça à paz, às famílias etc.. Reafirmando: tendemos a ser fraternos só com quem julgamos ser da mesma patota que a nossa. Mostrou-se diferente, a gente descarta. Ou, então, tentamos converter o desertor à nossa ideologia, a fim de que ele faça parte do lado certo (como se isso existisse) e nós possamos dormir tranquilos.
No livro Homossexualidade sob a Ótica do Espírito Imortal, o médico mineiro Andrei Moreira cita um artigo da jornalista Cláudia Werneck que contém uma importante reflexão sobre o uso leviano da palavra ‘todos’.
Segundo ela, é comum falarmos da boca para fora que queremos um mundo melhor e mais justo para todos. Mas quantas pessoas de fato cabem no nosso ‘todos’? Os índios cabem? E os seringueiros? Será que os ricos, magnatas, empresários e socialites cabem? E os pobres, catadores de papel, moradores de rua, favelados e afins? Será que sobra no nosso ‘todos’ um lugar para os presidiários, dependentes químicos e portadores do vírus HIV? Será que os homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais merecem figurar no nosso ‘todos’? E o que dizer das prostitutas e garotos de programa? Terão eles vez no ‘todos’ que falamos à boca pequena? Caberão os negros no nosso ‘todos’? E os refugiados? E os idosos, obesos, deficientes físicos? E os doentes mentais? E os espíritas, evangélicos, budistas, muçulmanos, católicos, ateus? E os socialistas, capitalistas, comunistas, direitistas, esquerdistas? Há lugar para tantos ‘todos’ assim na nossa vida? Segundo Andrei, muitos dos ora citados “são grupos que sofrem discriminação frequente e recorrente, ficando de fora do processo de inclusão social”. Onde a fraternidade que é diversa e abraça a todos?
Allan Kardec, em O Evangelho segundo o Espiritismo, fala sobre as diferentes categorias de mundos habitados. É uma escada de cinco degraus. No primeiro, mais baixo, é o mundo primitivo, pelo qual já passamos. Foi a época dos dinossauros e homens das cavernas. Depois, vem o segundo degrau, chamado mundo de provas e expiações. Esse a gente conhece bem, pois se estende dos primórdios da civilização até hoje. Brindou-nos com guerras, genocídios, desmandos, escravidão e outras barbaridades, mas também trouxe artes, descobertas científicas, sabedoria. Terceiro degrau: mundo de regeneração. Quarto e quinto degraus, sobre os quais não falarei porque ainda falta muito para chegar lá: mundos felizes e mundos perfeitos.
Aos poucos, estamos dando adeus ao segundo degrau e entrando no terceiro. Não é nada, não é nada, mas já estaremos no meio do caminho. E não é uma transição tranquila. É lenta, gradual e marcada por várias lutas e conturbações.
Talvez seja por isso que estejamos testemunhando uma onda de reacionarismo em todo o mundo. É a turma que não quer que nada mude. Por isso, insiste em puxar o planeta Terra para trás. – Ué, mas o mundo não está ruim? – indagam alguns.
Claro que sim, embora já tenha sido bem pior. O problema é que há muitos homens e mulheres acomodados. Uns por interesses escusos; outros por covardia moral e medo do novo. Está ruim, mas como já conhecem como tudo funciona, preferem ficar onde estão. É o povo que tem medo de se despir de convenções, prevenções e preconceitos. Um povo que, na verdade, tem medo de ser feliz. Prefere ser um infeliz acomodado a um feliz ousado. É a popular zona de conforto. Está ruim, mas está bom.
Todavia, como é impossível deter as mudanças, elas vão ocorrendo debaixo de homofobia, corrupção, terrorismo, xenofobia, fanatismo, misoginia, preconceito social e outros males que ficarão comendo poeira à medida que entrarmos cada vez mais num mundo regenerado e calcado na diversidade.
Muita gente, incluindo alguns espíritas, acha que uma sociedade plenamente fraterna é aquela em que todo mundo pensará como eu ou você. Ledo engano. O mundo de regeneração está sinalizando que será um local plural e diverso, onde as inúmeras formas de ser, pensar, amar e sentir conviverão em paz, pois haverá fraternidade. Um mundo laico e democrático no qual muita gente outrora reprimida terá cada vez mais voz. Em suma: quando se fala em todo mundo, é todo mundo mesmo! E não todo mundo que a gente conhece ou admira porque é bonito, rico ou frequenta o mesmo clube ou restaurante. Preparemo-nos para tanto.
Nas palavras de Allan Kardec no livro Obras Póstumas, “Os homens não podem ser felizes se não vivem em paz, quer dizer, se não estão animados de um sentimento de benevolência, de indulgência e de condescendência recíprocos, em uma palavra, enquanto procurarem se esmagar uns aos outros. A caridade e a fraternidade resumem todas as condições e todos os deveres sociais; mas supõem a abnegação (…)”.
É essa abnegação que está nos levando a reavaliar condutas e a respeitar fraternalmente as pessoas em suas diversidades.
Talvez seja por isso que Kardec (sempre ele!) afirme, no livro A Gênese, que “A fraternidade deve ser a pedra angular da nova ordem social”. Uma fraternidade que superará dogmas particulares e fará com que todos os homens se vejam como filhos do mesmo Pai e estendendo, enfim, as mãos uns aos outros.
O consolador – Ano 10 – N 475