Autor: Paulo Henrique de Figueiredo
A grande maioria dos espíritas viveu uma criação católica ou protestante, em virtude da tradição de suas famílias. Cresceu ouvindo as missas, catequeses, aprendendo a metafísica dogmática das igrejas. Nesses ensinamentos, Deus teria uma relação dominadora semelhante à humana com seus filhos. Sua lei é absoluta, eterna, mas desconhecida dos homens, mergulhados que estão no pecado original. No entanto, exige a absoluta submissão aos seus desígnios. Aqueles rebeldes, que cometem pecados, se não se arrependem e aceitam o castigo em suas vidas, são punidos eternamente, quando do julgamento final.
A imagem que fica desse panorama é a de um mundo degenerado, habitado por seres sujeitos à tentação do pecado, frágeis, sofredores, impotentes. Há um medo inconsciente de errar. Parece que é melhor não fazer nada do que cair no engano. Essa postura é paralisante, impede o interesse pelo novo, no desafio de tatear o desconhecido. A tradição, os hábitos costumeiros, o passado, tudo isso parece conter a garantia e o bem estar de agradar à divindade. A mudança e a novidade tornam-se inimigas, destruidoras e devem ser evitadas a todo custo. Diz-se que, na dúvida, melhor ficar como está.
Muita gente, porém, não aceitando a irracionalidade dos dogmas, considerando-os estagnantes, repele esses preceitos, em busca de algo novo, que abrace sua esperança, que conforte sua visão do futuro.
O Espiritismo, desse modo, surge como uma grata alternativa.
Mudam-se os hábitos na chegada ao centro espírita. O convite à palestra pública. O tratamento de passes. Os conselhos ouvidos nos corredores. Aos poucos, vai se conhecendo a reencarnação, o mundo espiritual, o perispírito, a responsabilidade pelos atos do passado. Alguns, mais interessados, buscam os cursos, para conhecer mais profundamente a doutrina espírita. Depois, adentram as diversas tarefas de assistência, arrecadação ou atividades interiores da casa.
No entanto, e aqui está o ponto fundamental deste artigo, costumeiramente o novo frequentador do centro espírita muda o vocabulário, alterna os costumes, mas o raciocínio metafísico, presente lá no fundo da personalidade, permanece o mesmíssimo de antes. Antes as palavras eram sofrimento, castigo, pecado original, céu, inferno, anjos, demônios, ressurreição. Agora os termos são outros, ainda se fala de castigo e sofrimento, mas os demais são substituídos por carma, espiritualidade superior, umbral, espíritos superiores, obsessores, regeneração. Palavras novas, ideias velhas.
O pecado original de Adão é substituído pelos erros do passado como causa dos sofrimentos desta vida. O Deus que pune e se vinga permanece no mesmo lugar lá no céu. E aqui na Terra continua o medo, a insegurança, o receio, a tentativa de barganha, e outros comportamentos derivados dos milenares ensinamentos heterônomos.
Heteronomia é a moral que coloca o indivíduo submisso a uma lei externa, à qual deve obedecer pela fé cega. É a moral da coação. Submete-se incondicionalmente às ordens para ser recompensado, e ao desobedecer ganha a punição. Os indivíduos competem entre si para ocupar o lugar dos beneficiados ou dos condenados. Punição, recompensa, competição, tudo isso pertence à moral heterônoma. Essa tem sido a orientação do clero tanto na orientação dos fiéis como também na educação das crianças e jovens na escola e em seus lares.
Em verdade, também a orientação materialista é heterônoma. Desse modo, a escola dos jesuítas do passado, que castigava o erro e recompensava o acerto, — promovendo uma relação competitiva entre os alunos para classifica-los do “pior” ao “melhor” — é a mesma escola tradicional atual, sob orientação materialista, que vê o homem como um animal, submetido ao mesmo adestramento daqueles. Trata-se o jovem com o método utilizado para tornar um cachorro dócil, obediente e treinado.
Por desconhecimento, quase ninguém fala, quando trata do Espiritismo, de sua revolucionária moral, a teoria esquecida de Kardec. Enquanto todas as tradições religiosas do velho mundo, e também a orientação materialista atual nascida no século passado, são doutrinas heterônomas quanto à moral. E o Espiritismo é a única proposta orientada pela autonomia moral.
O indivíduo que rege sua atuação social pela autonomia, toma como diretriz de suas escolhas o pensamento racional. Pensa, avalia a situação e escolhe a melhor atitude, a que favoreça o maior número de pessoas envolvidas. Afinal, as leis de Deus estão gravadas em nossa consciência, e na medida que as compreendemos na prática cotidiana, desenvolvemos o sentido do dever. Isso, é claro, quando não se concentra apenas nos desejos e interesses pessoais, o que leva ao egoísmo e orgulho, imperfeições que desviam o espírito de sua natureza.
Quem age de forma autônoma, não tem medo de errar, pois sabe que tentativa e erro fazem parte do processo de aprendizado. Enfrentar o desconhecido é a única maneira de avançar intelectual e moralmente. É necessária a coragem de expor a ignorância, perguntar e aprender com o exemplo do mais sábio, tentar as hipóteses, observar os resultados, agir diferente, comparar, escolher o melhor. Depois avançar para uma situação mais complexa. Tudo isso acompanhado pelo prazer da descoberta, o entusiasmo de ser útil, a alegria da iniciativa pessoal.
O Espiritismo demonstra que o mundo espiritual e a relação entre os espíritos esclarecidos se dá naturalmente pela autonomia. Quem age no bem o faz livre e voluntariamente; as atividades mais complexas são exercidas naturalmente pelo que mais sabe, e aprendeu por seu esforço. A palavra de ordem é a cooperação, nascida da atitude solidária, da responsabilidade consciente.
A tarefa da construção de um mundo melhor, por ser mais justo e solidário, se dará pela adesão voluntária de cada um a essa revolucionária moral autonoma. Agir de acordo com a consciência, pelo dever que tem valor em si mesmo, sem almejar recompensas ou privilégios. Como afirmou Allan Kardec, definindo o livre pensamento ou fé racional que caracteriza o verdadeiro espírita:
“Ele simboliza a emancipação intelectual, a independência moral, complemento da independência física; ele não quer mais escravos do pensamento do que escravos do corpo, porque o que caracteriza o livre pensador é que ele pensa por si mesmo e não pelos outros, em outras palavras, que sua opinião lhe pertence particularmente. Pode, pois, haver livres pensadores em todas as opiniões e em todas as crenças. Neste sentido, o livre pensamento eleva a dignidade do homem; dele faz um ser ativo, inteligente, em lugar de uma máquina de crer.”
(Revista Espírita de 1867, página26)
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