Autor: Edgar Egawa
Na exposição da obra de Tarsila do Amaral, as filas estavam imensas. Pudera! Entrada gratuita em final de semana! Enfim, tive que me abastecer de uma boa dose de paciência para poder ver os quadros que ela produziu. Fila no mezanino, fila na entrada da exposição, fila para ver os quadros mais famosos. Entre eles, O Abaporu.
Desde que vi os autorretratos da Tarsila (posso chamá-la assim, com essa intimidade?), eu me senti observado. Me virava para trás e só via as pessoas observando os quadros. Parecia que uma criança estava brincando comigo, se escondendo assim que eu me mexia.
Resolvi continuar a visita, apesar da sensação não me deixar.
– O que o sr. Achou da exposição?, disse uma voz feminina com um sotaque meio caipira, meio sofisticado. Virei-me para ver quem era.
Era uma mulher de altura mediana, rosto fino e cabelo curto, usando um vestido longo vermelho. Apesar de não conhecê-la, me parecia familiar. Era jovem, mas dava a impressão de ser de tempos antigos.
– Estou gostando muito, respondi. Tinha combinado com a galera da faculdade, mas por algum motivo, ninguém apareceu. Entrei sozinho e tive oportunidade de apreciar as pinturas, tendo como guias as placas identificadoras. Muitas delas me pareceram convencionais, principalmente as do início da carreira.
Algumas, eu conhecia principalmente por reproduções em livros didáticos. Como o Abaporus. Talvez o quadro mais famoso da artista, havia uma aglomeração em torno dele, e varias pessoas tiravam selfies com a obra ao fundo.
– O que essas pessoas estão fazendo, perguntou minha amiga de ocasião.
– Estão tirando selfies com o quadro.
– Selfies?? O que é isso?
Espantado, respondi que era uma fotografia tirada pela própria pessoa, com o celular.
– Aqueles objetos retangulares?, perguntou, apontando para eles. – Então são câmaras fotográficas!
– E telefones também, esclareci, achando a nossa conversa cada vez mais estranha. Pensei que ela talvez estivesse interpretando algum tipo de personagem. Embarquei na brincadeira. – Quer tirar uma foto?
– Sim, claro.
Tirei meu celular do bolso e o apontei para ela. Pedi que ela fizesse a pose do retrato da artista, com o vestido vermelho. Seu rosto ficou sério, mas com um ar brincalhão nos olhos. Após tirar a foto, mostrei o resultado.
– C’est magnifique! – exclamou a desconhecida. Não sei porquê, não sentia necessidade de perguntar seu nome. – Na minha época, era necessário esperar horas para tirar a foto, e o processo para se ver o resultado, dias!
– Muito mais do que uma pintura?, perguntei.
-Ah, não mais do que uma pintura.
Fomos apreciando cada obra da exposição. A Francesa (vou chamá-la assim) explicava detalhes de cada quadro, como uma expert.
– Quero tirar outro retrato! E desta vez, com o senhor ao meu lado.
– Com muito prazer! Mas me chame de Edson. Onde você quer tirar a foto?
– Certo… Edson. Ao lado do Abaporu.
À medida que nos aproximávamos da pintura, as pessoas olhavam para nós com um certo ar de espanto e se afastavam. Até chegarmos ao grupo mais próximo da obra, que se virou para tirar a selfie deles. Antes do dono do celular focar na tela, olhou em nossa direção. E baixou o smartphone.
Não entendi o porquê, mas ele se ofereceu para tirar nossa foto. Agradeci e nos posicionamos ao lado do Abaporu. Ele tirou nossa foto e me devolveu o celular. E pediu para tirar uma foto nossa.
A Francesa fez de novo a pose do quadro.
Uma multidão começou a se aglomerar, aparentemente mais interessada nela do que na exposição. Até que fomos ver outras telas e eles se dispersaram. Mas as conversas, que eram ocasionais, pareceram se intensificar a ponto de criar um burburinho quase ensurdecedor.
E a sensação de ser observado, que sumiu com a presença da minha nova amiga, se multiplicou por centenas.
Eu estava quase terminando de ver a mostra, quando a Francesa me perguntou:
– De qual quadro você mais gostou?
– Os retratos na entrada me pareceram muito convencionais. Coisas de início de carreira. Eu gostei de Os Operários, com aquela mistura de etnias.
– Etnias?
– Antigamente chamávamos de raças: raça branca, negra, amarela. Mas o primeiro que me chamou atenção foi aquele quadro em que há uma mulher – eu acho – de costas, com os cabelos soltos ao vento.
– Por quê?
– Parece… melancólico. Solitário. Não sei se a mulher no quadro está pensando no amor que partiu naquela direção ou se está dando as costas ao mundo. Aquelas árvores no canto do quadro não conseguem preencher o vazio dentro dela.
– Que interessante! Nunca havia me dado conta desse efeito nas pessoas. Soube que um médico havia utilizado os mitos gregos para ajudar a interpretar… como se diz?
– Os problemas da mente? Você está falando de Freud, Francesa?
Sua expressão mudou. Ficou zangada e eu nem sabia porque. Começou a me dar as costas, até que a interrompi com uma pergunta.
– Me desculpe se a ofendi. – Ela se acalmou, mas ainda parecia chateada.
– Por que me chama de francesa? Eu sou brasileira. E você, de olhos puxados?
– Eu também nasci no Brasil. É que você falou em francês. Sei que é brasileira, mas fiquei imaginando se não seria do curso do idioma. Porque se sentiu ofendida?
– Meu esposo diz para evitar essas francofonices, respondeu com um sorriso constrangido. Mas recentemente ele escreveu um texto citando Shakespeare no original. Acho que somos mais colonizados do que pensávamos. Primeiro, imitamos os franceses; agora, os ingleses – ou serão os americanos? – Ah, meu amigo Mário diria que todos somos americanos. (Eu estava começando a ficar arrepiado com essa conversa). Na verdade, é por causa das meretrizes . Elas imitam o sotaque francês para atrair os clientes. – e, mas animada, concluiu o tópico – Vamos ver o seu eleito!
Nos aproximamos do quadro Um Só. Minha companheira de exposição tirou a presilha do cabelo e o soltou. Ele era longo e ondulado, quase crespo.
– Eu entendo o que quis dizer ao descrever este quadro. As perdas são dolorosas, e as despedidas são como funerais. As pessoas se vão, e não sabemos se vamos vê-las de novo. E às vezes ficamos esperando, mesmo sabendo que acabou-se.
Surgiu, não se sabe de onde, um vento que só agitava as madeixas de minha amiga.
– Quem é você?, perguntei. Estava gritando, mas não tinha me dado conta disso até às pessoas me encararem. Repeti a pergunta em voz mais baixa. Ela deu um sorriso compassivo, materno. E a única resposta que recebi foi:
– Você sabe.
Sua figura de cabelos esvoaçantes reduziu-se e se fundiu ao quadro.
Nota Juventude Espírita: A pintora modernista Tarsila do Amaral era espírita e amiga de Chico Xavier, contribuindo com suas obras assistenciais.