Autor: Irmão X (espírito)
…E nós respigamos alguns tópicos do álbum repleto de fotos, que descansava na penteadeira de Dona Silvéria Lima, ao lermos, enternecidamente, a história do filho que ela própria escrevera.
1941 – Outubro, 16 – Meu filho nasceu, no dia 12. Sinto-me outra. Que alegria! Como explicar o mistério da maternidade? Meu Deus, meu Deus!… Estou transformada, jubilosa!…
Outubro – 18 – Meu filho recebeu o nome de Maurício. Aos seis dias nascido, parece um tesouro do Céu em meus braços!…
Outubro – 20 – Recomendei a Jorge trazer hoje um berço de vime, delicado e maior. O menino é belo demais para dormir no leito de madeira que lhe arranjamos. Coisa estranha!… Jorge, desde que se casou comigo, nada reclamou… Agora, admite que exagero. Considerou que devemos pensar nas crianças menos felizes. Apontou casos de meninos que dormem no esgoto, mas, que temos nós com meninos de esgoto? Caridade!…Caridade é cada um assumir o desempenho das próprias obrigações. Meu marido está ficando sovina. Isso é o que é…
1942 – Novembro, 11 – Mauricinho adoeceu. Sinto-me enlouquecer… Já recorri a seis médicos.
1943 – Dezembro, 15 – O pediatra aconselhou-me deixar a amamentação e mandou que Mauricinho largue a chupeta. Repetiu instruções, anunciou, solene, que a educação da criança deve começar tão cedo quanto possível. Essa é boa! Eu sou mãe de Mauricinho e Mauricinho é meu filho. Que tem médico de se intrometer? Amamento meu filho e dou-lhe a chupeta, enquanto ele a quiser.
1944 – Março, 13 – Mauricinho, intranquilo, arranhou, de leve, o rosto da ama com as unhas. Brincadeira de criança bobagem. Jorge porém, agastou-se comigo por não repreende-lo. Tentou explicar-me a reencarnação. Assegurou que a criança é um Espírito que já viveu em outras existências, quase sempre tomando novo corpo para se redimir de culpas anteriores, e repisou que os pais são responsáveis pela orientação dos filhos, diante de Deus, porque os filhos (palavras do coitado do Jorge) são companheiros de vidas passadas que regressam até nós, aguardando corrigenda e renovação… Deu–me vontade de rir na cara dele. Antes do casamento, Jorge já andava enrolado com espíritas… Reencarnação!… Quem acredita nisso? Balela… Chega em momento de nervosismo, a criança chora e será justo espancá-la, simplesmente por essa razão?
1946 – Março, 15 – Jorge admoestou-me com austeridade. Parecia meu avô, querendo puxar-me as orelhas. Declarou que não estou agindo bem. Acusou-me. Tratou-me como se eu fosse irresponsável. Tem-se a impressão de que é inimigo do próprio filho. Queixou-se de mim, alegou que estou deixando Maurício crescer como um pequeno monstro (que palavra horrível!), tão só porque o menino, ontem, despejou querosene no cão do vizinho e ateou fogo… Era um cachorro intratável e imundo. Certamente que não estou satisfeita por haver Maurício procedido assim, mas sou mãe… Meu filho é um anjo e não fez isso conscientemente. Talvez julgasse que o fogo conseguisse acabar com a sujeira do cão.
1948 – Abril, 9 – Crises de Maurício. Quebrou vidraças e pratos, esperneou na birra e atirou um copo de vidro nos olhos da cozinheira, que ficou levemente machucada, seguindo para o hospital… Jorge queria castigar o menino. Não deixei. Discutimos. Chorei muito. Estou muito infeliz.
1950 – Setembro, 5 – A professora de Maurício veio lastimar-se. Moça neurastênica. Inventou faltas e mais faltas para incriminar o pobre garoto. Informou que não pode mantê-lo, por mais tempo, junto dos alunos. Mulher atrevida! Pintou meu filho como se fosse o diabo. Ensinei a ela que a porta da rua é serventia da casa. Deixa estar! Ela também será mãe… Que bata nos filhos dela!…
1952 – Maio, 16 – Maurício já foi expulso de três colégios. Perseguido pela má sorte o meu inocentinho!… Jorge afirma-se cansado, desiludido… Já falou até mesmo num internato de correção… Meu Deus, será que meu filho somente encontre amor e refúgio comigo? Tão meigo, tão bom!… Prefiro desquitar-me a permitir que Jorge execute qualquer ideia de punição que, aliás, não consigo compreender… Meu filho será um homem sem complexos, independente, sem restrições… Quero Maurício feliz, feliz!…
1956 – Meu marido quer empregar nosso filho numa casa de móveis. Loucura!… Acredita que Mauricinho precisa trabalhar sob disciplina. Que plano!… Meu filho com patrão… Era o que faltava!… Temos o suficiente para garantir-lhe sossego e liberdade.
1957 – Janeiro, 14 – Jorge está doente. O médico pediu que lhe evitemos dissabores ou choques. Participou-me, discreto, que meu marido tem o coração fatigado, hipertensão. Desde o ano passado, Jorge tem estado triste, acabrunhado com as calúnias que começam a aparecer contra o nosso filhinho. Amigos-ursos fantasiaram que Maurício, em vez de frequentar o colégio, vive nas ruas, com vagabundos. Chegaram ao desplante de asseverar que meu filho foi visto furtando e, ainda mais… Falaram que ele usa maconha em casas suspeitas. Pobre filho meu!… Sendo filho único, Maurício necessita de ambiente para estudar, e se vem, alta madrugada, para dormir, é porque precisa do auxílio dos colegas, nas várias residências em que se reúnem com os livros.
1958 – Outubro, 6 – Jorge ficou irado, porque exigi dele a compra de um carro para Maurício, como presente de aniversário. Brigou, xingou, mas cedeu…
1959 – Junho, 15 – Estou desesperada. Jorge foi sepultado ontem. Morreu apaixonado, diante da violência do delegado policial que intimou Mauricinho a provar que não estava vendendo maconha. Amanhã, enviarei um advogado ao Distrito. Se preciso, processarei o chefe truculento… Ninguém arruinará o nome de meu filho que é um santo… Oh! Meu Deus, como sofrem as mães!…
1960 – Agosto, 2 – Duas mulheres, com a intenção de arrancar-me dinheiro. Disseram que meu filho lhes surrupiou joias. Velhacas e mandrionas. Maurício jamais desceria a semelhante baixeza. Dou-lhe mesada farta. Expulsei as chantagistas e, se voltarem, conhecerão as necessárias consequências.
1961 – Fevereiro, 22 – Nunca pensei que o nosso velho amigo Noel chegasse a isso!… Culpar meu filho! Sempre a mesma arenga… Maurício na maconha. Maurício no furto! Agora é um dos mais antigos companheiros de meu esposo que vem denunciar meu filho como incurso num suposto crime de estelionato, comunicando-me, numa farsa bem tramada, que Maurício lhe falsificou a letra num cheque, roubando-lhe trezentos contos… Tudo perseguição e mentira. Já ouvi dizes que Noel anda caduco. Usurário caminhando para o hospício. Essa é que é a verdade… Sou mãe!… Não permitirei que meu filho sofra, nunca admiti que ninguém levantasse a voz contra ele… Maurício nasceu livre, é livre, faz o que entende e não é escravo de ninguém. Estou revoltada, revoltada!…
Nesse ponto, terminavam as confidências de Dona Silvéria, cujo corpo estava ali, inerte e ensanguentado, diante de nós, os amigos desencarnados, que fôramos chamados a prestar-lhe assistência. Acabara de ser assassinada pelo próprio filho, obsidiado e sequioso de herança.
Enquanto selecionávamos as últimas notas do álbum singular, Maurício, em saleta contígua, telefonava para a Polícia, depois de haver armado habilmente a tese de suicídio.
Nota
O conto acima, psicografado por Francisco Cândido Xavier, faz parte do livro Contos Desta e Doutra Vida.
Obra completa: https://www.febeditora.com.br/contos-desta-e-doutra-vida