Autor: Marco Milani
Presentes na linguagem poética e na tradição romântica, encontramos as chamadas almas gêmeas, simbolizando a união ideal de seres que mutuamente completam-se e realizam-se afetivamente.
Uma das maiores fontes de inspiração para esta concepção lúdica é o Mito dos Hermafroditas. Nesta narrativa grega, seres que possuíam duas cabeças, quatro braços e pernas, constituíam-se no terceiro gênero humano, contemplando simultaneamente o masculino e o feminino. Ao serem punidos por Zeus por voltarem-se contra os deuses, foram cortados ao meio e separados pelas costas. Desde então, as metades perderam-se e buscam-se incessantemente.
É bastante sedutora a ideia de alguém em particular que nos satisfaça em todas as carências afetivas e que, com ela, nos sintamos completados. Talvez isto crie expectativas, especialmente àqueles que hoje consideram-se solitários. Porém, fato preocupante é a projeção de nossa própria felicidade em outra pessoa.
Na literatura espírita complementar, geralmente este tema é abordado de maneira conveniente, mas como almas gêmeas faz parte do imaginário popular, particularmente as obras que se utilizam da linguagem poética podem distorcer o seu sentido didático. Desta maneira, mesmo que o objetivo da leitura não seja o de esclarecimento e estudo sério, o cuidado com o conteúdo daquilo que lemos e transmitimos é fundamental, para evitarmos agir como propagadores de ideias fantasiosas.
De modo algum isto significa que romances e poesias não são bem-vindos. Ao contrário, possuem valorosos recursos de sensibilização e despertamento das criaturas, expressando arte e beleza. Podem ser a “porta de entrada” para o estudo doutrinário.
Porém, o Espiritismo, cuja força e autoridade repousam sobre a concordância universal de seus princípios, tem na clareza e objetividade qualidades essenciais. O próprio Allan Kardec, comentando sobre suas características pessoais, assim se posicionou:
“Não tendo nenhuma vocação poética, o que procuro mais que tudo, o que me agrada, o que admiro nos outros é a clareza, a nitidez, a precisão, e longe de sacrificar isto à poesia, poderiam antes acusar-me de sacrificar o sentimento poético à rigidez da forma positiva. Sempre preferi o que fala à inteligência e não à minha imaginação” (OP – 2ª parte – A tiara espiritual).
Assim, abandonando o lirismo e buscando o real entendimento verificamos que almas gêmeas, em seu sentido popular, provocam algumas contradições conceituais. Se dependêssemos de outra “metade”, quando separados estaríamos incompletos e, consequentemente, não poderíamos ser considerados individualidades com todo o potencial da perfeição relativa inerente a nós mesmos. Interessante notar que não existe união particular e fatal entre duas almas, visto dependerem do nível evolutivo. Quanto mais evoluído for o Espírito, mais ele estará unido àqueles que encontram-se no mesmo grau de elevação, por similaridade (ver L.E. 298-302).
Foi sua postura lúcida e racional que levou o Codificador a afirmar que a teoria das almas gêmeas não deveria ser interpretada literalmente e os Espíritos que se servem dela não pertencem à ordem mais elevada, onde apenas expressam seus pensamentos segundo a linguagem utilizada durante a vida corporal. Rejeita a hipótese de que dois Espíritos, supostamente criados um para o outro, deverão fatalmente reunir-se na eternidade, após terem sido separados durante um lapso de tempo mais ou menos longo (ver LE 303a).
Afastada a ideia de união predestinada de duas almas desde a origem, é relevante destacar, que em nosso grau evolutivo vivenciamos as experiências necessárias ao nosso próprio adiantamento moral e intelectual e que, neste contexto, estamos em contato com Espíritos que colaboram conosco direta ou indiretamente. Isto quer dizer que somos individualidades convivendo coletivamente, buscando fortalecer os vínculos de simpatia existentes. Assim, existem Espíritos que podem colaborar conosco mais do que outros neste momento, com quem possuímos laços intensos de afeição, mas não significam que sejamos almas unidas pelo destino. Somos Espíritos em evolução, buscando nas próprias experiências a realização pessoal e responsabilizando-nos pelos próprios atos.
Conforme afirma Fénelon (ESE XI, 9), é uma tendência natural da alma buscar em seu redor afeição e simpatia. Apesar de frequentemente oprimido pelo egoísmo, o verdadeiro amor desenvolve-se com a moralidade e inteligência, sendo a fonte das afeições sinceras e duradouras. Para praticar a Lei do Amor, como o Pai a quer, é necessário que amemos, pouco a pouco, e indistintamente, a todos os nossos irmãos.
Ainda hoje estamos somente nos primeiros passos para a real compreensão e prática do amor em sua expressão mais pura. Muitos acham-se presos no sentimento sufocante e perturbador da posse e controle sobre outro ser. Desavenças e decepções surgem como consequência de desejos mal conduzidos onde nós mesmos somos as maiores vítimas. Diante de tal quadro, procuramos refúgio no mundo das ilusões. Idealizamos. Delegamos a outros a responsabilidade de nos tornar felizes.
Gradualmente, através do autoconhecimento, buscamos a verdadeira felicidade com mais segurança e determinação, assumindo que somos nós os responsáveis pelo nosso próprio equilíbrio. Olhar para nós mesmos não significa adotar uma postura egoísta e orgulhosa, ao contrário, acordamos para travar o “bom combate” contra nossas más inclinações. A reflexão nos faz entender que o próximo possui os mesmos problemas e oportunidades que nós mesmos e, como consequência, todos aqueles com os quais convivemos não podem assumir a incumbência de causadores de nossa felicidade. Estamos ensaiando para deixarmos de ser dependentes e conseguirmos compartilhar com os demais nossa harmonia interior.
A Terra é uma escola valiosa que nos permite estar em contato com inúmeras almas, com maior ou menor grau de simpatia e aprendemos com todas elas. Certamente estamos em contato com aquelas que são relevantes ao nosso adiantamento. Isto não é destino, mas atração.
Futuramente, continuaremos a estar com aqueles que amamos, porém este círculo de afetos aumentará proporcionalmente conforme nosso nível evolutivo, até o grau máximo, na condição de Espíritos Puros, onde amaremos a todos indistintamente.