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Reflexões filosóficas para o bem viver

Autor: Daniel Soares

André Luiz, Nietzsche, Espinosa e Estoicos

Memento Mori e o retorno ao lar

Nos últimos 15 anos a Mocidade Espírita do Paz e Amor em Jesus (MEPAJ) tem  estudado os livros da série André Luiz, psicografada abnegadamente pelo médium Chico Xavier. Sem pressa, um capítulo por mês, buscando destrinchar cada detalhe que o amigo espiritual descreveu no decorrer de 13 obras fantásticas. Resolvemos realizar este estudo devido ao imenso potencial educativo destas obras no que diz respeito à complexidade do plano espiritual e da vida do espírito na erraticidade. Nelas podemos constatar as reais consequências das ações, dos pensamentos e dos sentimentos nutridos durante uma vida encarnada, e nada melhor que o conhecimento pleno das consequências, tanto negativas quanto positivas, para que possamos corrigir rotas e nos reconduzir rumo ao melhor caminho já em nossa vida atual.

A MEPAJ iniciou estudo pelo livro Nosso Lar, em 2008, e neste agosto de 2023 finalizaremos o quarto livro da série, Obreiros da Vida Eterna. Entre as reflexões proporcionadas pelas obras estão questões complexas como os mecanismos da mediunidade, o processo de desencarne e seus bastidores no mundo espiritual, as obsessões e suas causas iniciais, e muitas outras. Certamente adquirimos, neste período, ferramentas valiosíssimas para o processo de reeducação do espírito neste longo e árduo processo da reforma íntima. E, agora, tendo finalizado a quarta obra, partiremos com alegria para o estudo detalhado da quinta: No Mundo Maior.

Ainda em “Obreiros da Vida Eterna”, neste domingo, revisaremos o capítulo 20. Um capítulo que narra o retorno de André e seus companheiros de serviço à colônia de Nosso Lar após longo período de auxílio aos postos de socorro e casas transitórias que atuam junto à crosta terrestre no resgate aos espíritos desencarnados em situações mentais e espirituais bastante precárias. Durante todo o livro vimos o grupo de servidores executar um excelente trabalho na intervenção em falanges de espíritos ainda dedicados ao mal, buscando desmantelar organizações criminosas nas práticas da obsessão e de ataque aos trabalhadores do bem.

Ao fim do livro, estão todos deveras felizes com a possibilidade de retornarem ao seu querido lar. O que não quer dizer que o trabalho não tenha sido renovador ou que a experiência não tenha sido recompensadora, certamente que foram. Porém, por mais que se tenha aprendido no processo, para todos os espíritos, tanto encarnados quanto desencarnados, não há nada tão agradável quanto o lugar que se chama de lar. É na colônia, aliás, onde encontram uma energia reconfortante, pessoas alinhadas vibratoriamente, e onde eles têm o prazer do encontro com pessoas amadas de longa data.

Nossa análise da descrição do autor sobre o prazer da volta ao lar nos lembrou muito do conceito filosófico “Memento Mori” (lembre-se de que irá morrer, no latim). Isso porque nós estamos aqui a serviço também, buscando nos reeducar espiritualmente, eliminar vícios, construir virtudes, sempre com o objetivo maior de estabelecer laços cada vez mais amorosos com nossos irmãos em Deus. Entretanto, como espíritas que somos, temos a plena ciência de que o plano terreno não é nosso verdadeiro lar. Nossa casa, onde poderemos repousar genuinamente e nos alegrar com encontros felizes, é a pátria espiritual. Logo, chegamos à reflexão: será que temos pensado em nossa volta ao plano espiritual como um retorno agradável ao querido lar? Ou estamos considerando este retorno com medo e repulsa? E é aí que entra o pensamento do “Memento Mori”.

Não é necessária uma análise muito complexa para notar que nossa cultura é permeada pelo medo do desencarne. Mesmo com as ferramentas disponibilizadas pela religião, a morte é comumente vista como a separação, a ruptura, a melancolia, o desespero. Na nossa sociedade, pouco se estimula a pensar sobre o momento derradeiro do corpo físico. E mesmo espíritas, em geral, evitam o pensamento sobre a morte, considerando-a como algo natural, mas sobre a qual não precisamos pensar no momento atual. “Memento Mori” nos ajuda a quebrar este paradigma do medo e da repulsa sobre a morte. Parece algo macabro de início, mas com um exame mais aprofundado vemos que não há nada de tenebroso neste pensamento. Este é um conceito primeiramente gestado na filosofia dos estóicos, cerca de 300 anos antes de Cristo, desenvolvido principalmente por Sêneca. Em suas meditações, o filósofo escreveu: “Vamos preparar nossas mentes como se tivéssemos chegado ao fim da vida. Não adiamos nada. Vamos equilibrar os livros da vida todos os dias… Quem dá os retoques finais em sua vida todos os dias nunca fica com pouco tempo.”

Mais tarde, o filósofo Marco Aurélio escreveria: “Você poderia deixar a vida agora. Deixe isso determinar o que você faz, diz e pensa”. Em outras palavras, vive melhor o hoje quem mantém em seu horizonte a inevitabilidade do desencarne. Os momentos felizes são melhor aproveitados, os momentos tristes são mais facilmente superados, os problemas são melhor encarados, e os aprendizados deles advindos são muito melhor absorvidos. A isso adicionamos a certeza de que a colheita de tudo o que aqui semeamos será compulsória após o desencarne. Portanto, a consciência de que iremos desencarnar e de que viveremos as consequências dos pensamentos, ações e sentimentos produzidos nos anos terrenos nos permite uma condução mais cautelosa da vida encarnada, de maneira a sempre considerarmos os efeitos de nossas atitudes perante as pessoas ao nosso redor e perante nós mesmos também. 

Sendo assim, certos e constantemente cientes de que voltaremos ao lar, daremos maior importância ao estado em que nos encontraremos quando lá chegarmos. E, caso tenhamos nos conduzido razoavelmente bem, estaremos, em breve, num lar onde não há privações, problemas sociais estruturais, discordâncias desagregadoras, nem fofocas, nem vontade deliberada de prejudicar, ou seja, um lugar livre dos fenômenos derivados do orgulho e egoísmo humanos. E é por isso que recomendamos: Memento Mori. Lembremo-nos de que iremos morrer, pois será este o momento do retorno ao querido lar, o momento dos encontros, do merecido repouso, da colheita, dos abraços sinceros e do amor livre de máscaras.

Amor Fati e a Vontade de Potência

No mesmo capítulo, antes da despedida derradeira, vemos que os trabalhadores da casa transitória Fabiano convidam André e seus companheiros a entoarem um cântico de agradecimento à vida terrena. É algo impressionante o carinho que os espíritos desencarnados guardam em relação à experiência terrena nas obras de André Luiz. Pois, se no Evangelho Segundo o Espiritismo, lemos muitos textos exaltando a vida espiritual em detrimento das dores pungentes na vida encarnada – um discurso necessário, que busca cumprir o papel de consolador que a doutrina possui em relação ao sofrimento imposto ao ser humano através da lei de causa e efeito -, as obras de André Luiz enriquecem muito o nosso entendimento sobre a complementaridade entre as duas experiências. Sim, a vida espiritual é a verdadeira vida, o mundo original, de onde partem todos os outros, mas a vida terrena, apesar de passageira e fugaz, também é vida, e proporciona a maturidade de que precisamos para tornar proveitosa a erraticidade. E é por isso que os espíritos superiores a amam e são imensamente gratos a ela. Mesmo que tenham sofrido durante a encarnação, são capazes de amá-la e dizer que foram felizes nela. 

Esta reflexão suscita um questionamento importante: seria a felicidade, de fato, algo impossível neste mundo? Creio que a resposta desta pergunta depende do tipo de concepção de felicidade que estamos considerando. A felicidade da satisfação, da abastança, dos sorrisos constantes, das relações sempre agradáveis, do sucesso absoluto, realmente é impossível, dado o estágio evolutivo do planeta e das pessoas aqui encarnadas. Afinal, há erros antigos e novos para espiar, há provas para enfrentar e há, simplesmente, um mundo repleto de pessoas doentes para ajudarmos a reformar. Porém, se a concepção de felicidade que considerarmos for a do “Amor Fati” (amar o destino), então a felicidade neste mundo torna-se perfeitamente possível, e mais do que isso, é altamente recomendável.

O conceito de Amor Fati também foi pensado, inicialmente, pelos estóicos. Marco Aurélio uma vez escreveu: “Amar apenas o que acontece, o que estava destinado. Não há maior harmonia”. Com isso, quis dizer que não há sentido em desejar que a vida tivesse acontecido de outra forma, pois se assim fosse, não nos proporcionaria as valiosas experiências pelas quais passamos, não conheceríamos as pessoas que tanto nos agregaram, e a pura paz isenta de descontentamento nos teria tornado estagnados e, provavelmente, menos maduros do que hoje somos. Ademais, os estóicos nos ensinam que a repulsa a situações que não estão sob nosso controle é simples perda de tempo e energia. Foi Epicteto que disse: “Não procure que as coisas aconteçam da maneira que você deseja; antes, deseje que o que acontece, aconteça da maneira que acontece: então você será feliz.”

E Nietzsche acrescenta, em sua Genealogia da Moral, que é essencial dizer sim à vida e a seus acontecimentos com o intuito de elevar nossa potência de agir: “É preciso ser aquele que não quer que nada seja diferente, nem para a frente, nem para trás, nem para toda a eternidade. Não basta suportar o necessário, escondê-lo menos ainda… mas amá-lo”. Fazer o contrário disso, isto é, revoltar-se contra o “destino”, implica acumular o que Nietzsche chamou de “Ressentimento”. Ao nos ressentirmos por toda dor e descontentamento com os quais nos deparamos durante a vida, acumulamos uma amargura que nos induz a repudiar cada vez mais a vida e nossa sorte nela, criando assim um ciclo vicioso de dor. A consequência disso é a amargura, a rabugice, a intolerância, além de uma profunda melancolia. Portanto, Nietzsche e os estoicos recomendam que digamos Sim à vida. Que abracemos o destino, não apenas porque não poderia ter sido de outra maneira, mas porque a vida real, com suas dores e lágrimas inclusas, constrói seres mais maduros e moralmente resplandecentes. Como o imperador Marco Aurélio dizia: “Um fogo ardente produz chamas e brilho de tudo o que é jogado nele”. Cabe a nós sermos este fogo.

Todos sabemos que não é fácil encarar nossos problemas com uma atitude de Amor Fati. Quando as coisas acontecem, muitos de nossos valores parecem distantes diante da dor que sentimos. Entretanto, quanto mais treinamos a mente para nos confrontarmos com as inevitáveis dores da existência terrena, mais preparados estaremos para aceitar a vida como ela é, e, consequentemente, amá-la. E, com o objetivo de nos auxiliar nesta tarefa, os estoicos introduziram um pensamento brilhante: Premeditatio Malorum (pré-meditar sobre os males). Ou seja, faz-se necessário considerar antecipadamente as coisas que podem dar errado, e os problemas que podem se apresentar em nossa jornada. Não significa ter pensamento negativo perante o que virá, mas sim preparar a mente para problemas vindouros. Fazer como o fazendeiro que calcula possíveis perdas de safra em sua plantação, pois considera em seus investimentos a possibilidade de vir a praga, de enfrentar condições climáticas desvantajosas, ou de ocorrer um consumo abaixo do esperado. Tudo isso entra em suas contas para que ele possa traçar um planejamento antes de plantar. Nós também podemos fazer o mesmo, considerando previamente que haverá dificuldades, haverá escassez, haverá lágrimas, mas que, quando elas chegarem, não poderemos ficar prostrados pela tristeza. Após o devido tempo de se deixar sentir, será necessário agir para solucionar o problema ou seguir em frente rumo às responsabilidades que nos cabem.

O conceito de Premeditatio Malorum, portanto, é uma estratégia que nos auxilia a elevar nossa vontade de potência para viver a vida mais plenamente. E o que é esta vontade de potência? Segundo Nietzsche, “Potência é aquilo que quer na Vontade. E o que é a potência? É um eterno dizer-sim. A potência se afirma na vontade quando se diz “Sim” ao devir. É a afirmação pura de sua própria efetivação, a alegria provém da afirmação. E o sentido é o resultado destas forças”. Caso esta potência esteja reduzida, teremos menos disposição para agir ativamente no mundo. Seremos, pelo contrário, reativos e apenas reagiremos – muitas vezes com truculência – às situações propostas por outros. Por outro lado, com nossa potência elevada, nos sentimos mais energizados, mais à vontade para tomar iniciativas, para construir a mudança que buscamos em nós e no mundo ao redor. Um conceito que lembra bastante as energias sexuais da alma, do Espiritismo, que quando equilibradas nos permitem criar e construir ativamente.

Outro filósofo que toca neste ponto é Baruch Espinoza, cujo entendimento sobre Deus se assemelha muito ao que encontramos no Livro dos Espíritos. Segundo Espinoza: “Deus é a causa de todas as coisas que existem. Ele é a causa imanente, não transitória; ele não cria o mundo e vai embora, muito pelo contrário, o mundo é ele mesmo, ele se manifesta através do mundo. Cada essência, eu, você, todas as coisas, cada modo afirma-se em Deus, em maior ou menor grau. E ele se exprime absolutamente e infinitamente através dos atributos, dos quais só conhecemos dois: pensamento e extensão. Nós, seres limitados por natureza, exprimimos parte da potência infinita de Deus”. Logo, o filósofo entende que somos criadores em escala menor, e que nos realizamos reproduzindo esta potência finita derivada de Deus. A forma de dar vazão à esta potência seria através dos afetos, afetando os demais e sendo afetado por eles nas relações humanas. Estas relações determinam e dão sentido às obras que criamos, em todas as instâncias possíveis. 

Para ele, afirmar a própria potência equivale a afirmar o que há de divino em si: “Tomar parte da potência é expressar o que há de Deus em você, ser causa ativa na criação do mundo. Toda expressão da potência é boa, sem exceção, por quê? Porque a potência é a manifestação do Infinito no seio do finito, ela é a força de composição do universo que gera bons encontros. A questão ética é, então, efetuar sua potência, da mesma maneira que Deus, ou a Natureza, o faz”. E esta citação traz um termo importante na obra de Espinoza, e que pode ser deveras valioso para nossas reflexões: o encontro. Como vimos, elevar a potência nos auxilia a aceitar bem a vida. E, assim como o Premeditatio Malorum é um exemplo de como fazê-lo, Espinoza fornece a estratégia de promover bons encontros no intuito de elevar a vontade de potência. 

Mas estes encontros não estão limitados à concepção restrita da palavra como a conhecemos. De fato, encontros agradáveis com pessoas amadas elevam a potência, por isso estão dentro da concepção espinoziana de bons encontros. Contudo, este conceito abrange um significado muito maior. O bom encontro ocorre quando assumimos uma postura de consonância com os acontecimentos da vida, ou quando buscamos ter contato com situações agradáveis (pessoas, músicas, vídeos, leituras, pensamentos, etc.). De acordo com o próprio Espinoza: “É como se tivéssemos uma vibração própria, um timbre, podemos pensar no corpo como uma caixa de ressonância; certas forças me atravessam e ressoam em mim e quando isso acontece, geram um bom encontro, minha potência de agir aumenta; no entanto, outras forças me atravessam e diminuem minha potência. O corpo é nosso instrumento ético”. Aumentar a vontade de potência, portanto, incorre na busca por afirmar o divino em nós, reproduzir a potência finita que Deus nos confere, criando e agindo ativamente para com as pessoas e as coisas. Podemos qualificar este processo evitando, quando possível, ter contato com aquilo que nos faz mal ou tristes, pois a interação voluntária com o que reduz nossa potência nos tira a energia que será muito valiosa quando a dor inevitável nos acometer, assim como a interação com aquilo que é agradável e elevado, nos encherá de força, vontade e aceitação na vida.

Finda esta reflexão tão profícua, constatamos o quanto a filosofia espírita, aliada às escolas filosóficas mais fecundas, pode nos ajudar perante as intempéries da existência. Herculano Pires defendia que: “A Filosofia Espírita sintetiza em sua ampla e dinâmica conceituação todas as conquistas reais da tradição filosófica, ao mesmo tempo que inicia o novo ciclo dialético da nova civilização em perspectiva”. Sendo assim, a instrumentalização das antigas escolas de filosofia é algo essencial para que possamos extrair da filosofia espírita – e, portanto, dos valorosos ensinamentos da doutrina espírita – todo o seu potencial transformador. De nossa parte, continuaremos investigando as particularidades expostas na série André Luiz de maneira a encontrar sempre novos caminhos em nossos objetivos de nos tornarmos pessoas melhores, isto é, nos tornarmos verdadeiros cristãos.

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