Autor: Rogério Miguez
Organizar um departamento ou diretoria, para bem delinear as orientações espíritas que devem reger todo o conjunto de atividades de uma Casa espírita é costume disseminado em muitas agremiações sérias. Uma prática muitíssimo recomendada e salutar.
Esta seria uma tarefa de fácil condução, não fosse a diversidade de entendimento e maturidade espiritual a nos caracterizar. Somos distintos, com experiências milenares construídas em inúmeras vidas anteriores, e também com uma bagagem particular de conhecimentos hauridos nesta própria encarnação. Muitos não foram “formados” na própria Casa onde militam. Além do mais, nem sempre aqueles frequentando e trabalhando na Casa, desde o início de suas jornadas dentro do movimento espírita, têm bem consolidados os princípios doutrinários, afinal, estamos todos em aprendizado.
Talvez seja o setor mais espinhoso em um Centro, onde frequentemente ocorrem debates e discussões acaloradas sobre: como fazer, por qual razão, quando fazer, quem faz, qual literatura seguir como norte doutrinário? Parece bastante óbvio ser Allan Kardec o Norte, porquanto não existe outro, inexiste outra bússola, entretanto, nota-se uma resistência acentuada em alguns, quando se procura uniformizar o conhecimento e a prática no dia a dia, baseados apenas nas obras básicas e subsidiárias.
É comum, de imediato, levantar-se a possibilidade de “engessar” a Casa, afinal, a Doutrina é de absoluta liberdade, portanto, não pode haver regras e padrões, regimentos e estatutos, sob pena de se criar um ambiente sem espontaneidade, esta última um dos requisitos fundamentais para reger a prática espírita.
Louco seria aquele duvidando ser o Espiritismo uma proposta libertadora das almas, todavia, daí a se admitir cada qual agindo e pensando do seu jeito, demonstra um profundo e acentuado desconhecimento doutrinário, possivelmente, com nuances de influenciação obsessiva.
As reações são as mais diversas possíveis, pois, sabemos, mudar normalmente é um processo de relativa dor interna, pessoal, naqueles cristalizados em fazer e pensar por si mesmos, atitudes estas muitas vezes inadequadas à boa prática espírita.
Nesta hora, os dirigentes de doutrina são questionados, nem sempre com a fraternidade tão característica recomendada pela Doutrina. Alguns, mais afoitos, e pouco acostumados ao diálogo, logo se arvoram em classificar os dirigentes doutrinários de: Doutores, Sabichões, Autoritários, Inquisidores, Prepotentes, Sistemáticos…
E a luta é intensa, exigindo muita paciência e prudência. Cursos, aulas, artigos, livros, tudo deve ser lembrado e divulgado, material voltado a orientar e conscientizar àqueles desejosos em seguir rumos não se coadunando com a Doutrina, porquanto, estavam acostumados a caminhar em vias tortuosas, vindo daí a reação esperada.
Estes modernos defensores dos princípios doutrinários precisam de muita força de vontade, muita oração, sintonia com seus protetores, para não sucumbir diante daqueles trazendo tantas propostas inadequadas e ideias dissociadas da Doutrina, buscando se infiltrar muitas vezes nas bases do trabalho, tentando minar as atividades para adequá-las aos seus próprios padrões, resultando em distorções no movimento e desvios de toda ordem em seu rumo.
Deixar a Casa “andar” ao sabor das preferências seria temerário, pois as influenciações são sutis, imperceptíveis, se apresentando por mil faces, ora sugerindo não haver nada de mal em mudar esta ou aquela orientação de Allan Kardec, ora defendendo a chegada de novos tempos, onde seria imperiosa a mudança do pensamento e conduta dentro das lides espíritas. Afinal, cogitam, Allan Kardec escreveu seus livros há bem mais de um século, quanto mudou a humanidade, como a ciência se desenvolveu, argumentam todos os desejosos em manter o “aqui quem manda sou eu e faço como eu quero”.
Alguns chegam a afirmar, e por incrível, “ensinar” quando estão à frente de cursos preparatórios de Doutrina: Espiritismo e Umbanda são a mesma coisa, não muda nada, afinal, tudo se resume ao fenômeno, não é mesmo!?
A conduta dos dirigentes deve ser: ponderada, mas firme; gentil, mas segura; fraterna, mas decidida, contudo, em se notando a resistência do neófito, ou daqueles contando com os seus muitos anos de experiência, orgulhosamente alegando tudo saber, deve-se então, após as tentativas fraternas, porém, infrutíferas, de reconduzir a Casa ao bom norte doutrinário, agir com convicção, determinação, pois há muitos nem dispostos, tampouco preparados para seguir a simplicidade e a transparência da Doutrina como ela se apresenta.
Isto sem falar naqueles já dominados pela fascinação, característica situação em todos aqueles afirmando categoricamente já conhecerem Kardec através de alguns poucos anos de estudos e cursos realizados, portanto, nada mais havendo a se estudar e aprender com a Doutrina, agora seria apenas fazer e nada mais.
A literatura espírita é rica de exemplos neste tipo de situação. Quem não se lembra do episódio contado por André Luiz sobre as dificuldades do Governador de Nosso Lar em controlar a alimentação de alguns Espíritos rebeldes quando por lá estagiaram?1
Relatou-se sobre a existência de muitos Espíritos recém-chegados na Colônia, ainda desejosos em manter velhos vícios trazidos da Terra, tais como, os da glutonaria e da dependência aos alcoólicos. O Governador agiu basicamente como se delineou acima. Primeiro convocou instrutores para conscientizar os mais rebeldes, realizou assembleias e reuniões, por mais de trinta anos consecutivos. Os opositores fizeram toda sorte de manifestações, criaram empecilhos de toda ordem, inventaram problemas devido à possível alimentação deficiente, acusavam, reclamavam, blasfemavam…. Em função daquele ambiente conturbado, a própria Colônia quase foi invadida pelos Espíritos do Umbral, pois estes mantinham vínculos com alguns moradores da Colônia. Após ouvir o mais alto Conselho de Nosso Lar, deliberou então o Governador a tomada de uma medida firme com nova conduta de alimentação, impedindo definitivamente os revoltosos e insatisfeitos a continuarem se portando de modo impróprio em Nosso Lar. Desnecessário dizer ser Nosso Lar a representação de uma Casa espírita em nossa análise.
Este é o caminho a seguir por qualquer setor sério de orientação doutrinária. Não há nada a temer, não é faltar com a caridade, como alegam alguns, tampouco é ato autoritário, como asseveram outros, estes, falsos argumentos, procurando deixar em dúvida e em situação melindrosa os responsáveis pela manutenção da Casa dentro da normalidade doutrinária.
Há que se acompanhar o dia a dia da instituição, com zelo, cuidado e dedicação, em uma palavra: compromisso, pois as intromissões, seja na prática, seja na teoria, são muitas, algumas oriundas de Espíritos pseudossábios, às vezes mesmo maldosos, tentando de todo modo convencer os neófitos ou os orgulhosos, ou ambos, de que podem fazer melhor afastando-se de Kardec.
Não se deve esmorecer, tampouco contemporizar com os que deliberadamente desejam se eximir de suas responsabilidades e fidelidade ao Codificador. Permitir a continuação deste modo de atuação contrário aos fundamentos da Doutrina, por conta do aplauso de alguns, seria equivalente à aceitação de um suborno, ou o recebimento de uma recompensa material, conduta indecorosa e repudiada, tão em voga na atualidade. Lembremo-nos da advertência de Jesus: aqueles se satisfazendo com os aplausos dos homens, ao chegar ao plano espiritual já receberam a sua recompensa.
Modernos “Quixotes do Espiritismo”, não se deixem cansar, e não se deixem enganar por todos aqueles desejosos em conspurcar a Doutrina, tentando, por conta de argumentação falaciosa, incorporar ao movimento suas teorias e práticas estranhas.
Nota
1 XAVIER, Francisco C. Nosso Lar. Pelo Espírito André Luiz. 33. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987. cap. 9.
O consolador – Ano 12 – N 574 – Artigos