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As coisas que não vemos

Autora: Eugênia Pickina

O mal surge sempre quando o amor não é suficiente

Hermann Hesse

Talvez seja apenas a minha infância, mas a gente descia as escadas às cambalhotas, ria ruidoso de nada, cantava – e a voz tão alta –, girando sem direção na solidão da sala, o assombro das árvores diante de nossos olhos, as mãos sujas da terra.

A gente brinca quando é criança. Aprende porque brinca. Mas, para muitos adultos, enfermos de infelicidade, o puro ser da criança, seus ritmos e necessidades, é coisa demais para toda hora suportar.

Hoje em dia há grande intolerância às manifestações espontâneas das crianças. Preocupa-me cada vez mais que se queira enrijecer a vida infantil, até o extremo de que não possam brincar livre nem estar muito tempo com seus pais.

Quantas crianças passam o dia comprido nos berçários? As escolas gigantes de período integral – e tudo isso para quê? Ora, os pais devem trabalhar sossegados – qual é mesmo o objetivo da existência?

Há quem diga que “antigamente era melhor”. Entretanto discordo. Tenho outras visões. Nasci ao anoitecer, felizmente após esse antigamente e, ainda assim, não percebo nenhum passado glorioso para a humanidade. O mundo, aliás, continua atormentado pelo desamor, povoado de gente ignorante, assustada, sofrida.

Hoje, estranhamente, o psicológico adquiriu muito destaque na infância. Exemplos: toda vez que um meninozinho ingressa no berçário (ou no jardim de infância), os pais já começam a receber “sinais” sobre o meninozinho, principalmente se o meninozinho não responder a um “padrão determinado”. Próximo passo, os encarregados do lugar apontarão as falhas do meninozinho, aconselhando aos pais a visita a um especialista e, a depender da situação, os próprios educadores emitirão um diagnóstico cercando o meninozinho. Pois se a receita é conhecida, basta aplicá-la quando surge a ocasião e uma “certa criança” necessitar ser “reparada”.  Outras vezes, incrivelmente, são os próprios pais que se queixam ao médico de que seu meninozinho ou sua meninazinha “padece” de tal coisa e, assim, melhor submetê-lo à prescrição médica porque a criança falha e precisa ser consertada.

Vi isso centenas de vezes: se o menino brinca com o mesmo brinquedo será um TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo); se a menina não se interessa pelas aulas monótonas  e, aos olhos da professora e do coordenador revelar cabeça voando, definitivamente é um TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade); se na escola é aluno desobediente ou é criança que desafia, claro que corre o risco de ganhar o rótulo TOD (Transtorno de Oposição Desafiante) – se bem me conheço, se eu tivesse hoje cinco anos, a depender da escola que fosse matriculada, meus pais provavelmente seriam intimados  para me tratarem desse medonho transtorno, pois o ideal, no pátio e na sala de aula, são os robôs obedientes –  e aqui me assusta porque poucos pais estão gritando: “minha gente, é a escola que está doente, não a criança…”

Abandonamos a pedagogia da palmada não faz muito tempo. De outro lado, seguimos reprimindo o que é essencialmente humano: emoções, pensamentos, potencialidades, tudo que perfaz a riqueza singular de uma criança, seu modo de ser único e irrepetível.

Não sem razão, afirmou Rubem Alves nos seus fecundos escritos: “há muitas escolas que não passam de jacarés. Devoram as crianças em nome do rigor…”  E há pais também que são cúmplices dessas escolas-jacarés, tudo também em casa conspirando para que o filho deixe rapidamente as coisas de criança. Mas e se o filho na escola de algum modo começar a reclamar? Bom, nesse caso, é “a criança que está tendo problemas, um foco cerebral com certeza, neurologista, psicólogo, psicanalista, e os pais vão, de angústia em angústia, gastando dinheiro, querendo o melhor para o filho…” (Rubem Alves, 2013, p. 60)

Quanto a mim, considero que a infância exige respeito. Etiquetar, portanto, uma criança, aceitando que ela use esses descabidos psicoestimulantes, que afetarão sem dúvida seu pleno desenvolvimento, suas capacidades emocionais, ilustra, além de desamor, uma cruel pedagogia (ainda) em ação… há pior espetáculo? Quem agradece? A indústria farmacêutica com sua sede insaciável por dinheiro.

Notinhas

Cf. Alves, Rubem. Estórias de quem gosta de ensinar – o fim dos vestibulares. 13ª ed. Campinas: Papirus, 2013, p. 60.

Jorge L. Tizón, 71 anos, psiquiatra, neurologista e psicólogo, considerado hoje um dos principais expertos em saúde mental na Espanha, afirma, por exemplo, nos seus escritos e entrevistas, que o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade) é na realidade uma “invenção psiquiátrica e farmacológica” e, desse modo, as crianças desde cedo estão sendo medicadas com psicoestimulantes (anfetaminas). Cf. Entrevista al Dr. Jorge Tizón (“Empastillados”), 25 Marzo, 2015 –  www.nuevapsiquiatria.es

Psicoestimulantes são a categoria de medicamentos mais comuns no tratamento do TDAH. São os remédios mais utilizados para Déficit de Atenção e Hiperatividade no Brasil.

O consolador – Ano 12 – N 565 – Cinco-marias

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