Autora: Eugênia Pickina
Prometi. Quem sabe eu consiga pedir licença ao leitor para divagar, embora sem contrariar o discurso da Razão? Assim começa um escritinho diferente:
Era uma vez um meninozinho, de olhos castanhos, igual a tantos outros, que vivia no seu mundo de faz de conta, silêncio! Até o dia em que anunciaram aos seus pais que todas essas coisas que as crianças normais fazem ele dificilmente conseguiria fazer… Passado o temor inicial, pais, por favor, muito amor, avisou o dedicado doutor.
E assim aconteceu. Que outra função tem o amor? Os pais acolheram o meninozinho, cativando-lhe, espelho adentro, desejos simples. O meninozinho então cresceu silencioso e respeitado, sem sofrer os golpes contra os quais é inútil lutar. Pois no autismo uma das soluções nunca tem a ver com cura, mas sim com o fato de que na casa de um autista todo mundo é convocado a aprender um modo diferente de ver e perceber o mundo. E é justamente aqui que se abre a esperança nos vivos…
Introdução
Pais e familiares de uma criança autista estão diariamente expostos a testes e desafios, que geram impactos abruptos, ou às vezes dolorosos, no destino familiar, principalmente porque são convocados a conviver com um transtorno global de desenvolvimento que a todos afeta inevitavelmente no ambiente doméstico.
Estudos e literatura diversa que tratam do autismo apontam que para os pais o nascimento de um filho autista é uma experiência difícil, marcada pela angústia da descoberta de que o filho desejado é, na realidade, um filho autista. Ou seja, principalmente com o choque da notícia do diagnóstico, os pais vivenciam a dor da perda do filho idealizado e, ao mesmo tempo, são chamados gradualmente a entender e ajustar-se ao nascimento de um filho diferente.
À medida que uma criança autista será autista enquanto viver, depois de um período de luto (simbólico), dor e perplexidades, o envolvimento parental no geral adquire uma condição determinante: os pais se tornam parceiros na vida da criança autista.
Indiscutivelmente, o autismo gera crises e desequilíbrios na dinâmica familiar. Reivindica aceitação, adaptação e cooperação por parte de todos os membros da casa em relação ao indivíduo autista.
Na realidade, caso consideremos a família como um sistema, aquelas com maior funcionalidade antes de a criança autista nascer (ou lhes ser anunciado o diagnóstico de autismo) inclinam-se a responder melhor à nova demanda imposta pelo autismo do que as famílias cuja funcionalidade já estava comprometida. Por isso, e com frequência, a ocorrência de divórcios ou de famílias que se desarticulam em face das dificuldades de sua criança autista. Além disso, pais que cuidam de um filho autista relatam muitas memórias associadas à solidão e à exclusão social – a independer da situação socioeconômica.
De todos os modos, a participação das famílias nas conquistas cotidianas de seus filhos com autismo é um fator determinante. Em vez de ilusão ou desesperança, pais que se informam, buscam apoio social e se unem na divisão dos cuidados são (mais) capazes de nutrir esperanças conscientes e, em consequência, fazer investimentos no desenvolvimento do filho autista a fim de que ele possa, no futuro, tornar-se uma pessoa mais autônoma possível.
Depoimento de um pai
Abel S. é pai de Rafael, 16 anos, diagnosticado como portador da Síndrome de Asperger. Abel concedeu-nos a entrevista abaixo:
Fale-nos sobre como se deu o diagnóstico médico
Izabel teve um aborto antes que o Rafael nascesse. Desconfiamos que houve uma tentativa frustrada, anterior, de retorno. Há uns dois anos sonhei com Rafael em sua versão “reencarnação original”. Eu e ele estávamos brincando em um chapéu de palha, numa espécie de parque e, de repente, começo a observá-lo. Ele tinha aquela cabeça gigante dos portadores de hidrocefalia e as pernas bem fininhas. Eu o abracei e acordei chorando, grato por Deus ter-nos dado a oportunidade de tê-lo conosco em melhores condições! Soubemos, por um médium, que ele fora médico holandês há alguns séculos, e teria abusado da inteligência sob a nossa complacência.
Quanto ao diagnóstico inicial, ocorreu por observação nossa. Rafael era inquieto, não falava e tinha a cabeça estranhamente torta, além de uma expressão de criança torturada, infeliz. Começamos a levá-lo aos médicos quando ele tinha uns três anos e meio, mais ou menos. Fizemos, inicialmente, testes fonoaudiológicos, que deram negativo. Daí, buscamos um profissional que pudesse atendê-lo na rede estadual de saúde. Não havia nenhum médico especializado à época. Iniciamos com um médico militar, em trânsito pela cidade, que passou para ele os primeiros medicamentos, que não deram certo.
Pouco depois, no mesmo local, indicaram-nos a doutora Tárcia, psiquiatra, hoje professora na universidade federal, que trabalhava no CAPS e se predispôs a nos ajudar. Ela havia desenvolvido, na ausência de neurologistas infantis, um protocolo próprio para cuidar de pacientes como o Rafael e tinha casos de sucesso já catalogados. Nessa época, com quatro anos, ele começou a tomar carbamazepina e neuleptil (um anticonvulsionante e um ansiolítico). O fato é que a doutora Tárcia nos deu muita segurança por ter um “plano de voo” muito seguro. Ela sabia para onde estava conduzindo o tratamento e foi, assim, descrevendo antecipadamente as fases por que ele iria passar e as conquistas paulatinas que alcançaria. Foi assim que os prognósticos se mostravam sempre positivos, pois tinham por base outras crianças, nas mesmas condições, que haviam amadurecido emocional e fisicamente, com os medicamentos. Nos laudos dados por ela, nunca fechou o diagnóstico, deixando-o inconcluso, para não haver rotulamento precoce, com consequências negativas.
Aos seis anos e meio, Rafael começou a falar, embora com dificuldade. Esse atraso global de desenvolvimento, conforme aprendemos lendo sobre o assunto, foi aos poucos sendo vencido. O mais interessante foi que ele criou, ao vivo, todas as noções de convivência com o mundo exterior – físico e humano. Por isso perguntava se era para rir de algumas situações que ele não sabia distinguir se eram “risíveis”, entre outros exemplos.
Desde muito cedo, os familiares e amigos trataram de nos alertar quanto às “doenças” do Rafael. As mais cotadas eram o autismo, a surdez e a hiperatividade, casada esta com o déficit de atenção.
Como passou a ser a rotina da família?
Sofremos desde cedo o isolamento, pois sair com ele e frequentar eventos era sinônimo de preocupação e muitos cuidados, quase sempre insuficientes para “controlá-lo”. Com o isolamento, passamos a nos fechar em casa para cuidar dele. Durante muito tempo o chamamos de “pequeno selvagem”. Ele não sentia dor quando se machucava, conseguia andar descalço na rua de casa, ainda não asfaltada, pulava o portão e fugia. Não fazia contato visual, não ia no colo de ninguém, o que sobrecarregava principalmente a mãe.
Rafael apegou-se aos seus irmãos?
Sim. Ele chorava muito quando um dos irmãos se ausentava de casa, principalmente os mais próximos dele por idade, a Ana Clara e o Gabriel (18 e 20 anos, respectivamente). Só se sentia seguro e tranquilo quando todos estavam em casa. Os irmãos o acolheram e o ajudaram a se desenvolver, contribuindo imensamente na maturação da linguagem e outros aspectos cognitivos e afetivos, a ponto de hoje pouquíssimas pessoas conseguirem fazer o diagnóstico do Rafael, que aos 11 anos foi classificado, oficialmente, como portador da Síndrome de Asperger. Raquel, a irmã mais velha, hoje com 24 anos, foi uma segunda mãe (a Tata) para o Rafael.
A mãe se sentiu sobrecarregada? Largou a profissão para se dedicar à criança?
Izabel conciliou o trabalho junto à nossa pequena empresa enquanto suas condições físicas e emocionais permitiram. O fato de ter lúpus e fibromialgia complicou um pouco sua vida profissional. Hoje tornou-se costureira e voltou para a casa e seus cuidados, definitivamente, sob orientação médica.
Como foram os anos escolares?
Desde os primeiros anos de escola, a orientação da doutora Tárcia foi que a escola seria, principalmente, um espaço de convivência, de socialização; que ele não poderia ficar obrigado a ir e, se não conseguisse, que ficasse apenas parte do tempo das aulas. Assim aconteceu durante muitos anos. Somente no quinto ano, por ter-se identificado imensamente com a professora, passou a ficar o tempo todo nas aulas; antes íamos buscá-lo depois do intervalo.
Estudou por muito pouco tempo em duas escolas particulares (sofreu bullying, não houve inclusão). Alfabetizou-se por conta própria, no Kumon. Na escola pública municipal, onde estudou até o quinto ano, enganava os professores por sua capacidade de “interpretar símbolos” e “fazer correlações”, o que equivalia à prática de leitura. Fazia provas orais e saía-se bem.
Nas escolas municipais e depois estaduais (duas de cada), ele foi bem aceito. Adaptou-se bem a partir da segunda escola municipal, Pedro Batalha, onde existe “sala de recursos” para alunos especiais, além de treinamento para os professores. Há cuidadores em todas as salas em que haja alunos “especiais” ou “incluídos”.
O seu processo de amadurecimento, conforme os prognósticos da doutora Tárcia, tem-se cumprido, pouco a pouco. Ela vaticinou que ele chegaria à Universidade, tal como outras crianças sob seus cuidados. Hoje, na véspera de fazer 16 anos [Rafael completou 16 anos no dia 23 de março], ele está no 9º ano e é um dos melhores alunos da sala. Conseguiu, na escola, ao longo destes anos, fazer laços com professores e colegas.
Como é o Rafael adolescente?
Rafaeltem atualmente poucos amigos fora do círculo familiar. Ele não gosta de sair. Diz ser um “coelho” e o que lhe interessa é a “sua toca”. Só vai ao shopping, por exemplo, quando vamos ao cinema ou à livraria. Não consegue ficar muito tempo, porém.
Nos últimos tempos tem questionado a razão de ser obrigado a frequentar as aulas da evangelização, já que fazemos o Evangelho no Lar, conforme a prática tradicional das famílias espíritas.
O jogo e a internet têm um papel muito importante em sua vida. A conselho da médica, que afirmara que o jogo o ajudaria a amadurecer em muitos aspectos, fomos permitindo, aos poucos, que ele tivesse acesso a eles no computador e nos consoles.
Hoje, ele é um entendido em consoles e jogos, principalmente da Nintendo. Tem um grau elevadíssimo de conhecimento sobre o que gosta. Como o monitoramos sempre, ele aprendeu a fazer escolhas estéticas e éticas, não tendo até hoje atingido os jogos violentos ou de adultos (pornográficos e afins). É fã do Mario e do Sonic, entre outros personagens.
Quais, em relação ao Rafael, os sonhos e esperanças da família?
Pela sua afinidade com a tecnologia, é nosso plano ajudá-lo a se preparar para se tornar um profissional nessa área (reparo e instalação de softwares em computadores, a princípio). Temos trabalhado para que alcance autonomia mais ampla e possa morar a sós, nos próximos anos, se ele o desejar. No momento, diz que não sairá de casa e que cuidará de sua mãe…
Nunca o deixamos totalmente ocioso. Buscamos, também, fazê-lo variar suas ocupações de lazer, fazendo-o revezar entre jogar, assistir séries ou desenhos, desenhar e brincar de Lego.
Sabe-se que cada casal enfrenta o autismo ao seu modo. Vocês ficaram mais unidos?
Sim. Definitivamente, o Rafael unia imensamente nossa família, pois tornou-se um centro de atenção por longos anos. Até hoje cuidamos dele, embora não inspire mais cuidados, como antes.
Algum conselho para os pais que têm um filho ou uma filha autista?
O conselho que podemos dar é nunca perder a esperança, pois há muitos meios terapêuticos, hoje, à disposição, mesmo que não tenhamos muitos recursos financeiros (como foi o nosso caso, sempre recorrendo ao serviço público). Outro é: não acreditem em “tratamentos milagrosos”, pois a cura de nossos males físicos e emocionais é, em grande parte, o “amor em família”, a boa convivência ao longo dos anos.
Notas
1 – Outras informações acerca do caso Rafael o leitor pode obter escrevendo para o seguinte endereço: Abel S. – [email protected]
2 – Para se inteirar sobre o autismo, uma fonte indicada é a Associação de Amigos do Autista – www.ama.org.br
3 – Cada família enfrenta o autismo de uma maneira própria. E a criança autista tem um nível de atividade invulgar, que reclama atenção e supervisão constantes, pois são indivíduos com sérios problemas de comunicação e de interação. Há, desse modo, os períodos críticos de transição pelos quais passam todas as famílias: a) ao receber o diagnóstico; b) durante os anos escolares; c) adolescência; d) idade adulta.
4 – Cf. Rodríguez, Juan Danilo. Terapia Holística Alliyana. BA: Editora Leal, 2015 – leitura rica e muito apropriada para quem tem um filho autista ou cuida de uma pessoa com autismo – professores, terapeutas, médicos, parentes e/ou amigos de pessoa com autismo. O médico Juan Danilo Rodríguez tem no Brasil o apoio de Divaldo Franco na divulgação do método Alliyana.
O consolador – Especial