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Bala Perdida

Autor: Rogério Miguez

Há bom tempo a nossa sociedade é testemunha de um fato, cuja forma de divulgação pela mídia e comentários de muitos sugerem uma imprecisão no entendimento e funcionamento das leis divinas. Tal fato vem se repetindo, principalmente em grandes centros urbanos, quando pessoas têm “perdido a vida” atingidas pela noticiada bala perdida.

É comum a imprensa informar que um indivíduo teve sua vida abreviada, de modo brutal e injusto, ao ser atingido por uma bala perdida, quando por puro azar, estava no dia, na hora e no lugar errados: “Houve uma fatalidade”, noticiam!

E a sociedade entra em pânico, apreensiva, o medo e o pavor se apoderam do cidadão: “Deus me livre e guarde de uma bala perdida”, dizem! “Salve-me desta desgraça Senhor”, acrescentam!

A ideia de que a bala realmente possa estar perdida já esta bastante difundida, contudo a alegação não encontra qualquer respaldo nas leis de Deus, conforme elucida a Doutrina Espírita.

O primeiro ponto relevante a considerar é a inexistência, segundo a ótica espírita, dos conceitos de azar e sorte da forma como geralmente os entendemos e aceitamos.

Tudo na vida está encadeado pelo regular funcionamento das leis eternas, todavia, não previamente definido ou determinado, conceito este totalmente diferente e fantasioso. Os acontecimentos vão se concretizando em resposta aos nossos atos da vida atual – (passado recente); ações de vidas anteriores – (passado mais distante); e das nossas escolhas entre expiações, provas ou missões, algumas por nós mesmos solicitadas aos bons espíritos e aceitas por estes, antes de reencarnarmos, em nosso próprio benefício visando à nossa evolução.

Este conjunto de experiências e escolhas passadas é determinante para um indivíduo, por exemplo, ao sair de sua casa em direção ao trabalho, dirigindo seu veículo, venha a ser atingido por esta bala disparada de local distante, aparentemente ao acaso; contudo, não estava perdida, tinha endereço certo. Neste caso, o momento do desencarne havia chegado e, possivelmente, segundo a sua própria deliberação ou acerto com a espiritualidade superior, optou por desencarnar desta forma. O mesmo raciocínio se aplica quando há o desencarne de crianças brincando ou mesmo dormindo sendo alcançadas por balas perdidas. Embora seja um acontecimento muito contundente para a sociedade e de muita tristeza para os familiares, é fundamental esclarecer: há sempre uma justa razão por trás do fato, podendo ser plenamente entendida e aceita quando o Espírito se reintegrar ao mundo espiritual. Lembremos mais uma vez: qualquer ser encarnado, mesmo na fase infantil, já viveu muitas vezes pela misericordiosa lei divina da reencarnação, possuindo um passado extenso de experiências construtivas ou não, sendo mesmo possível possuir maior bagagem de experiências do que seus próprios pais.

A vida é muito preciosa para estar sujeita a circunstâncias fortuitas: “Não se vendem dois pardais por um asse?[1] E, no entanto, nenhum deles cai em terra sem o consentimento do vosso Pai! Quanto a vós, até mesmo os vossos cabelos foram todos contados. Não tenhais medo, pois valeis mais do que muitos pardais” (Mateus 10.29-31)[2].

Como se vê, o Evangelista já havia registrado há 2.000 anos, baseado nos dizeres do Mestre de Nazaré, a impossibilidade de um fato acontecer sem a permissão de Deus, ainda mais um desfecho desta gravidade. Estejamos certos: Ninguém morre ao acaso.

Não existe o conceito de dia, hora e local errados; muito pelo contrário, existem as leis imutáveis de Deus, atuando conforme as escolhas e o uso do livre-arbítrio da criatura, culminando neste fim, não podendo ser visto como azar do indivíduo, e muito menos como injustiça de Deus, em nenhuma hipótese.

Conforme diz André Luiz em Conduta Espírita [3]: “O espírita está informado de que o acaso não existe”, e, acrescentamos, este conceito se aplica plenamente nesta questão em discussão, ou seja, um desfecho com término de uma vida.

Nesta hora, as correntes religiosas não adeptas da reencarnação ficam em uma encruzilhada, pois não conseguem conciliar a bondade, justiça e amor de Deus, atributos por elas aceitos sem discussão, com o fato em si. A princípio, tal fim não poderia de modo algum acontecer, ainda mais se a pessoa vítima da bala perdida era tida como um homem de bem com moralidade e ética a toda a prova aos olhos da sociedade, e em casos de crianças fica mais inaceitável ainda o acontecido. Permanecem na dúvida também se Deus seria onisciente e onipresente, pois cogitam nestas situações, embora relutantemente, que a Divindade estaria talvez “desatenta” ou mesmo ausente naquele particular momento.

É caso totalmente diferente quando um delinquente está de arma em punho junto a outros comparsas, ocorre um tiroteio com a polícia ou outros malfeitores e de longe, em um tiro improvável, o malfeitor é atingido e vem a desencarnar; nessa circunstância houve por parte do criminoso o risco assumido, pois já disse o ditado: “quem está na chuva pode se molhar”.

Outro aspecto muito interessante de se destacar é a inexistência do determinismo sobre qualquer Espírito ter nascido com a específica missão de matar outra pessoa. Ou seja, o indivíduo, esteja ele em qualquer profissão, seja um contraventor ou não, ao acionar o gatilho de uma arma disparando um projétil resultando no desencarne de outro, deverá responder naturalmente às leis civis e inexoravelmente às divinas, caso o disparo tenha sido feito de modo inconsequente.

Não é correto também questionarmos Deus sobre a razão do acontecido, pois, se aceitamos Deus como bom e justo, só nos desejando o bem, com Sua justiça perfeita, superando e muito a falha justiça dos homens, há uma razão explicando o ocorrido, motivo este ligado seguramente ao exercício do livre-arbítrio desse espírito desencarnado, ao longo de suas muitas vidas, conforme ensina o Espiritismo.

Alguns chegam mesmo a questionar por qual razão exatamente aquela pessoa foi atingida. Não seria melhor se um transgressor das leis civis da nossa sociedade tivesse sido colocado em seu lugar?  Considerando Deus como nosso criador e desejoso da mesma felicidade para todas as suas criaturas, ao dizerem isto blasfemam, pois desejam para o próximo, tão filho de Deus quanto aquele atingido pelo projétil, aquilo a lhes desagradar.

Ensina a Doutrina dos Espíritos sobre a existência da fatalidade no instante da morte, mas a forma e dia serão sempre consequência de nossas escolhas e condutas e de modo algum foram por Deus impostas; muito pelo contrário, Deus nos deixou e nos deixa livres para agir, mas ensina e espera: da forma como agirmos, deveremos colher; processo perfeitamente educativo:

Algumas pessoas só escapam de um perigo mortal para cair em outro. Parece que não podiam escapar da morte. Não há nisso fatalidade?

“Fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só o instante da morte o é. Chegado esse momento, de uma forma ou doutra, a ele não podeis furtar-vos.”[4]

Assim, a pessoa desencarnada nesta circunstância, trágica, não resta dúvida sob a ótica materialista, mas não representando a verdadeira desgraça, conforme nos orienta a Doutrina em O evangelho segundo o espiritismo [5], no passado agiu de modo a colher agora os frutos do pleno uso de sua liberdade, e não por um capricho ou desatenção de Deus, opções inaceitáveis e inconcebíveis. Somos e sempre seremos responsáveis pelos nossos atos e, se por determinação da vida alguém querido ou conhecido passar por tal experiência é porque precisava aprender alguma lição, no sentido de educar-se, fechando um ciclo de sua evolução.

Se a bala perdida nos preocupa, entre outros acontecimentos contundentes com possibilidade de nos atingir no futuro, tais como acidentes e doenças graves, lembremos de bem plantar agora para obter uma boa safra amanhã. Ou seja, sejamos melhores hoje, façamos por merecer um futuro mais feliz, criemos ainda nesta vida as condições a ditar bons fatos marcantes nas nossas próximas existências, aqueles desejados para a nossa felicidade e a de todos que nos cercam. Semeemos agora para colher doces e saborosos frutos no porvir.

Entretanto, como posso melhorar-me? Como agir? Por qual modo posso construir um novo fim? Quais sementes devo lançar no terreno da minha vida atual? Lancemos as sementes do serviço, com caridade; cultivemos as virtudes; aremos a nossa vida com a enxada do amor, caminho único para conquistarmos a nossa real salvação.

Referências

1 O “asse” romano correspondia aproximadamente a décima parte de um denário, e como o texto informa, poderia comprar dois pardais.

2 Bíblia de Jerusalém. Nova edição, revista e ampliada. 6 imp. 2010. São Paulo: Editora Paulus. p. 1721.

3 XAVIER, Francisco C.; VEIRA, Waldo. Conduta espírita. Pelos Espíritos Emmanuel e André Luiz. 13. ed. Rio de Janeiro: FEB Editora, 1987. cap. 18.

4 KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3. ed. Comemorativa do Sesquicentenário. Brasília: FEB Editora, 2007. q. 853.

5 O evangelho segundo o espiritismo. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1. imp. Brasília: FEB Editora, 2013. cap. V. item 24 – A desgraça real.

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