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Benevolência é beneficência?

Autora: Maria Eny Rossetini Paiva

Lembro-me de ter, mais ou menos, 16 anos quando perguntei ao orientador de nossa Mocidade Espírita, onde estava a beneficência na definição de Caridade de O Livro dos Espíritos:

– A questão que estamos estudando diz que Caridade é benevolência para com todos, indulgência com as faltas alheias e perdão das ofensas. Indaguei: onde fica a caridade com os pobres, dando-lhes comida, roupa etc.?

– A beneficência está incluída na benevolência – respondeu prontamente o orientador, que na época tinha o nome pomposo de mentor da mocidade.

Na ignorância de meus verdes anos, aceitei de pronto. Como todos os jovens daquela época, fazia a Campanha da Fraternidade Auta de Souza. Pedia alimentos e depois ia, com alguns casais mais velhos, às residências dos necessitados. Fazia preces, provia suas necessidades mais urgentes, auxiliava quando possível em questões de saúde. Algumas vezes, encaminhávamos alguns para o serviço doméstico ou de faxina. Voltava para casa muito feliz, achando que estava buscando a “salvação” espírita, fazendo a caridade.

Hoje, na terceira idade, com tantos anos de estudo e compreensão, acho muito complicado reduzir a caridade à beneficência.

Talvez seja por isso, devido a essa visão míope da caridade que, em minhas palestras e andanças por muitas cidades, tive a oportunidade de ouvir, pasma, declarações como:

– “Acabo de chegar da Inglaterra, onde já há grupos espíritas. Infelizmente não se pode fazer lá o exercício da caridade; o Estado provê a quase tudo. Temos a esperança de que um dia precisemos auxiliar os mais pobres”.

Comentando com meu esposo o absurdo da colocação, ouvi dele que em extensa obra assistencial, dirigida por pessoa de sua família, ao levar um latino-americano para visitar as dependências, este (o visitante) também declarara:

– “Que pena que em meu país não haja pobres. Nós não temos como vocês a oportunidade de praticar a caridade”.

Muitos anos se passaram para que eu entendesse o que nos leva a essa visão deturpada da caridade e porque insistimos apenas no assistencialismo como caridade, quando, na verdade, não é o que nos ensina a espiritualidade superior.

Ainda nesse ano (2012), contaram-me que no Congresso Espírita do Uruguai uma brasileira, quando teve a oportunidade de ouvir irmãos nossos do Uruguai, declarou que lá não há pobreza, porque o governo uruguaio provê saúde, educação e alimentação básica para os necessitados, e indagou o que faziam para praticar a caridade. Os espíritas uruguaios explicaram-lhe que, em algumas cidades, atraem jovens de bairros com problemas de agressividade, famílias desajustadas e outros, para aulas de educação artística, com música, pintura e ensino de capoeira. Começam realizando tal trabalho, em ruas, e outros locais e, assim, atraem as crianças e jovens para a continuidade dessas aulas nas Casas Espíritas, onde recebem também doutrina e explicações de nossa missão na vida e o porquê vivemos.  Nos poucos Centros Espíritas do Uruguai (pouco mais de uma dezena) ensinam a esses jovens também ética e conduta moral.

Quando um dos brasileiros falou, apontando essa situação de bem-estar social, provido pela assistência governamental como ideal, ouviu contestações de outros brasileiros, dizendo que no Brasil sempre haverá pobres, e que nunca deixaremos de tê-los, porque há muita corrupção.

Nosso brasileiro respondeu então:

– Corrupção existe em todos os governos do mundo. Com certeza, deve haver quem faça isso aqui, no Uruguai. O que precisamos é ter a coragem de fazer “PREPONDERAR O BEM”, combatendo a corrupção, organizando a sociedade para denunciar e combater os que a fazem. Alguns municípios como Bauru, por exemplo, contam com Organizações não governamentais, vigiando e denunciando contratos, desvios, e conseguindo providências do judiciário ou dos poderes municipal, estadual ou federal, prevenindo e evitando corrupção.

Segundo me contou essa senhora, o espírita brasileiro, indignado, falou diante de todo grupo que, em grande parte dos centros espíritas, muitas pessoas que trabalham voluntariamente levam, algumas vezes, doações recebidas para si ou pessoas de sua família, empregados ou vizinhos. Justificam essa apropriação indébita, do que é dado aos pobres, porque estão trabalhando sem receber nada e merecem pegar uma ou outra coisa. Em feiras, nossos voluntários, que auxiliam a venda e organização, querem descontos grandes nos preços e escolhem antes de abrir o mais bonito pelo menor preço.

Os uruguaios, educadamente, não comentaram nossos problemas internos, mas concordaram que, se um governo com o povo estabelecer controles, organizar as instituições, denunciar a falta de prestação de contas, a corrupção diminuirá drasticamente.

 Mesmo com corrupção, países diversos têm o estado de bem-estar social, que garante aos necessitados e até à população em geral, o mínimo para uma vida digna.

Quando O Evangelho segundo o Espiritismo, em duas mensagens do Espírito Cáritas, exorta os espíritas, em 1864, a realizarem a beneficência, costurando para a pobreza, na França, levando comida e orando com eles, é preciso que percebamos que essa exortação se devia à exploração de que eram vítimas os operários franceses na época de Kardec. Crianças pequenas, mães, pais caminhavam seis léguas até as fábricas, onde trabalhavam em condições insalubres de dez a doze horas por dia. O salário era insuficiente, não havia nenhum seguro, ninguém recebia férias, assistência médica e alimentação. A miséria da população de Paris fazia pena e várias são as chamadas de Kardec, na Revista Espírita, para que auxiliassem os espíritas a minorar o sofrer dos trabalhadores de Paris.

Férias e outros direitos trabalhistas só foram introduzidos na França a partir de 1936, quando governaram os socialistas e comunistas em uma Frente Popular.

Os Espíritos, tanto em O Evangelho segundo o Espiritismo, como em O Livro dos Espíritos, não se cansam de dizer que é preciso dar serviço, estudo e profissão aos pobres, que é preciso educá-los. Chegam a dizer, na questão 813 de O Livro dos Espíritos, que há pessoas que não querem trabalhar e só por sua culpa passam necessidade, mas, se tivessem sido educadas pela sociedade, não estariam nessa situação. Em momento nenhum aceitam culpar o pobre por sua situação de miséria, nem dizem que a miséria, a exploração só sucede a Espíritos que foram ricos em outra vida. Dizem mesmo que a sociedade é muitas vezes a principal culpada dessa situação.

Ademais, a questão 888 de O Livro dos Espíritos esclarece que “uma sociedade que se baseie na lei de Deus e na justiça deve prover a vida do fraco sem que haja para ele humilhação. Deve assegurar a existência dos que não podem trabalhar sem lhes deixar a vida à mercê do acaso e da boa vontade de alguns”. A mesma questão esclarece que, pedindo esmola, “o homem se degrada física e moralmente: embrutece-se”. (negritamos)

No prosseguimento da lição, os Espíritos dizem como deve ser dada a esmola e nos pedem que não desprezemos a ignorância dos miseráveis e seus vícios, mas que os moralizemos e instruamos. Com certeza isso não se faz com rápidas visitas, mas com um trabalho de educação e de planejamento que só se consegue fazer com brandura e benevolência.

A benevolência pode acompanhar a beneficência, mas sempre deve ter por objetivo ir muito além dela. “A verdadeira caridade é sempre bondosa e benévola.” 

O consolador – Ano 6 – N 294

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