Autor: Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
A vida moderna, no campo e na cidade, já não é compatível com determinados ritmos de movimentos, atividades e decisões. Parece que o tempo é mais curto e que, portanto, não chega para os afazeres que cada pessoa tem de realizar.
A agitação é evidente, quer nos que trabalham, nos que estudam e até nos que já se encontram na situação de reforma, isto é, fora da atividade profissional que exerceram ao longo de uma vida, pelo menos para a maioria das pessoas. Ouve-se dizer a todos eles que o tempo não lhes chega, quando se lhes solicita alguma intervenção numa outra atividade, num qualquer trabalho, serviço ou mesmo um favor. O mundo mudou em poucas décadas.
Neste contexto também é comum ouvir-se, designadamente em certas camadas da população, quando se lhes pede para refletir sobre um determinado assunto, respostas do gênero: “não tenho tempo”, “não sei pensar sobre isso”, “isso é muito complicado”, mesmo e estranhamente em pessoas adultas.
A verdade, porém, poderá ser bem diferente, porque, de fato, pensar implica um esforço, uma análise, uma crítica, e a sua fundamentação, enfim, uma tomada de posição que, por vezes, poderá ser incômoda e até prejudicial para interesses menos claros e, eventualmente, menos éticos e/ou na melhor das hipóteses, menos conveniente e oportuno.
Ao contrário dos antepassados, as máquinas de hoje resolvem aqueles problemas que na antiguidade eram solucionados pelos homens, que publicamente se assumiam, sujeitando-se às respectivas consequências. Talvez a hipocrisia, o cinismo e o egoísmo não fossem tão acentuados como hoje, todavia, verifica-se, com significativa rapidez, que urge pensar, refletir sobre um conjunto cada vez mais vasto e complexo de situações que afetam a humanidade. Incutir a todos os cidadãos em geral, e à juventude em particular, o gosto pela reflexão, cultivar o pensamento e análise crítica, será um processo que, em poucas gerações, poderá dar os seus frutos, certamente positivos.
Vive-se muito com um cérebro que não pensa, isto é, a pessoa dotada de poderosos instrumentos, como são o pensamento, a reflexão, a análise, mas que de fato, por várias circunstâncias – proliferação da tecnologia, preguiça, currículos escolares e agentes educativos que não obrigam, facilitismo por parte de muitos encarregados de educação e tantos outros educadores, desmotivação –, não os querem utilizar, logo, a intervenção pessoal, direta, genuína e emocional é substituída pela artificialidade da técnica. O défice de cidadania e o verdadeiro cidadão vão-se diluindo em tecnologia e robotização.
A prosseguir-se neste caminho, em que até a escola, o professor, o relacionamento interpessoal, a emoção, o sentimento e a reação presencial são substituídos por toda uma tecnologia a distância, também a preparação do cidadão poderá sofrer grandes transformações, porque educar para a cidadania através dum processo presencial, recorrendo ao pensamento crítico, ao debate e à conclusão fundamentada, face aos argumentos em confronto, não será tarefa fácil para um computador.
Na verdade e em boa lógica: «A cidadania requer aprendizagem e exige participação, a qual, por sua vez, é fator inerente à criação de comunidades humanas. Num contexto social estimulante, que vai muito para além das fronteiras das escolas, a coragem de nos expormos à multiplicidade de influências resultante da articulação e da interação entre instituições formativas diversas é, seguramente, a principal condição para que todos nós, durante toda a vida, possamos aprender e desenvolver atitudes e competências de cidadania. » (FONSECA, 2001:38).
Continua-se a escrever muito em todo o mundo democrático sobre cidadania, direitos humanos, democracia e todo um conjunto de valores próprios da civilização que se pretende para este novo século, todavia, toda esta produção literária não tem vindo a ser total e objetivamente acompanhada pelas correspondentes atitudes práticas no terreno.
As elites que normalmente controlam partes significativas de determinados setores – política, economia, finanças, técnico-científicas e religiosas, entre outras – não abrem mão dos poderes que detêm e, pelo contrário, reforçam as suas posições, pelo menos até ao dia em que as maiorias, cada vez mais pobres e excluídas, decidam democrática e legalmente, pela votação, manifestarem o seu descontentamento. Tem sido assim ao longo da história democrática e Portugal é a prova disso mesmo, quando não soube ou não quis dialogar com o povo colonizado.
Assiste-se, nesta segunda década do século XXI, a uma grande indiferença por parte de algumas camadas da população, designadamente, no contexto da formação profissional, que uma parte significativa de formandos, entre os 18/20 e 51/55 anos, quanto aos módulos de Cidadania e Empregabilidade e Cidadania e Profissionalidade, alegando alguns que tais matérias não têm interesse para as suas atividades profissionais, revelando, afinal, com estes comportamentos que, de fato, existe um longo caminho a percorrer, porque, de contrário, tais comentários já não se fariam. Significa, também uma certa obsessão pelas matérias tecnológicas que, sendo essenciais para resolver problemas práticos do dia a dia e que, sem as quais, hoje seria impossível viver, ainda assim não constituem toda a vida do ser humano.
A formação integral da pessoa humana deve ser uma preocupação permanente para toda a sociedade em geral e para a pessoa em particular. Sujeitar os valores da pessoa à técnica poderá ser um grave risco cujas consequências serão sempre imprevisíveis.
Contra certos valores materiais se opõem outros, que vêm acompanhando a pessoa e, pelos quais, «Cresce, porém, ao mesmo tempo a consciência da dignidade exímia da pessoa humana, superior a todas as coisas. Seus direitos e deveres são universais e inalienáveis. É preciso, portanto, que se tornem acessíveis ao homem todas aquelas coisas que lhe são necessárias para levar uma vida verdadeiramente humana, tais são: alimentos, roupa, habitação, direito de escolher livremente o estado de vida e de construir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à proteção da vida particular, à justa liberdade, também em matéria religiosa. » (GALACHE-GINER-ARANZADI, 1969:36).
A civilização da sociedade moderna assenta (ou deverá assentar) em valores ancestrais que em nenhuma circunstância e por quaisquer motivos pode ignorar. A cidadania, com os seus diferentes valores de coragem, tolerância, solidariedade, liberdade, democracia, altruísmo, entre outros, certamente será uma referência e, por si só, um expoente axiológico máximo que todos, sem exceção, deveriam interiorizar e praticar em cada instante da vida, com seriedade e, por que não, com profissionalismo.
Qualquer que seja a civilização, na circunstância a ocidental, os seus valores existem, devem ser conhecidos, reconhecidos e exercidos, o que implica uma aprendizagem desde bem cedo na vida. A família, a escola e a Igreja, a comunidade, a empresa, seguramente, serão os primeiros intervenientes neste longo processo.
Ainda que científica e/ou culturalmente se possa contestar que a cidadania é um valor da civilização, a verdade é que, por exemplo, a civilização ocidental, tal como outras, comporta valores e práticas inerentes à cidadania e, talvez por ser um tema, alegadamente, mais elitista, se verifiquem algumas dificuldades na difusão dos respectivos valores e depois na sua prática. A verdade, todavia, é que qualquer pessoa tem condições para assimilar e desenvolver comportamentos cívicos, com toda a sinceridade e eficácia, desde que se predisponha a tal atitude.
Em bom rigor, «Um novo e forte espírito de cidadania precisa ser desenvolvido nas escolas, nas empresas, em maior número de comunidades, nos condomínios, nos clubes de serviço, nas associações de bairro, nas associações de pais e mestres, nas Igrejas, nos sindicatos. Necessário se faz alertar para que sejam evitadas lideranças de quem pretenda de maneira oportunista, tirar proveitos políticos e insistir em dar ao movimento caráter ideológico político. » (RESENDE, 2000:202).
O surgimento de novos valores ou o preconceito por valores tradicionais, por vezes ditos como valores do século passado, eventualmente como estando ultrapassados, é uma situação que assusta muito aqueles que tanto têm feito pelas gerações que se exprimem daquela forma.
Continuando-se a acreditar nas virtualidades da juventude, nas suas potencialidades e na determinação que parece transparecer dos jovens de hoje, no sentido de desejarem um mundo melhor, teme-se que os principais vícios das gerações menos preparadas no passado, quanto aos valores fundamentais, possam contaminar as do presente, desde logo no seio das famílias mais materialistas.
Como grande princípio e desejo universal, também se acredita que a não agressão e o caminho para a paz são estratégias possíveis, respectivamente, numa ótica otimista e de total sinceridade, sabendo-se, porém, que o ser humano nunca está satisfeito com o que possui; que os conflitos, as invejas, as traições e outros malefícios vão continuar, por muitos anos.
Com efeito, «Todos nós sonhamos com uma vida melhor numa sociedade melhor, contudo, tornou-se difícil passar um dia que seja sem nos desiludirmos, sem nos sentirmos desapontados, sem nos sentirmos sugados pelas pessoas mesquinhas e egoístas que nos rodeiam. Parece que uma grande maioria de pessoas só está interessada nos seus ganhos pessoais. Tornam-se rudes e arrogantes, críticas e insensíveis. As suas ações não só nos deprimem, como também nos fazem sentir que não podemos fazer nada para mudar este estado de coisas e que apenas os que estão no poder têm a capacidade de fazer a diferença. » (WEISS, 2000:138).
Defender os valores da civilização, aqui considerada como uma dimensão da pessoa humana, desde logo a partir da sua componente cidadania, é um imperativo categórico, que o mundo não pode descurar sob pena de agravar a já precária situação em muitos pontos do globo.
A educação e formação são, portanto, os instrumentos necessários para que os valores fundamentais, de toda uma civilização, sejam preservados, aprofundados e praticados. Não compreender a importância da cidadania, nesta estratégia, pode significar uma profunda e irrecuperável ruptura com o passado, que em nada beneficia o presente e, certamente, compromete o futuro. Ignorar quaisquer formações no âmbito da cidadania pode levar à automecanização da pessoa, a uma robotização humana, comandada a distância.
Bibliografia:
BENTO, Paulo; QUEIRÓS, Adelaide; VALENTE, Isabel, (1993). Desenvolvimento Pessoal e Social e Democracia na Escola. Porto: Porto Editora.
FONSECA, António Manuel, (2001). Educar para a Cidadania. Motivações, Princípios e Metodologias, Porto: Porto Editora.
GALACHE – GINER – ARANZADI, (1969). Uma Escola Social. 17ª Edição. São Paulo: Edições Loyola.
MARQUES, Ramiro, (2001). Professores, Famílias e Projecto Educativo. 3ª Edição. Porto: Edições ASA.
POLE, Timothy, (1998). Ser Você. Trad. Arlete Dialetachi. São Paulo: Editora Angra, Ltda.
REGO, Arménio, (2003). Comportamentos de Cidadania Docente: na Senda da Qualidade no Ensino Superior, Coimbra: Quarteto Editora.
RESENDE, Enio, (2000). O Livro das Competências. Desenvolvimento das Competências: A melhor Autoajuda para Pessoas, Organizações e Sociedade. Rio de Janeiro: Qualitymark.
TOLEDO, Flávio de, (1986). Recursos Humanos, crise e mudanças. 2ª ed. São Paulo: Atlas.
TRICHES, Ivo José, (2008). “Filosofia versus O Segredo da Humanidade”, in Filosofia, Ciência & Vida, S. Paulo/Brasil: Escala, Ano II, N. 24, p. 51.
WEISS, Brian L., M.D. (2000:17). “A Divina Sabedoria dos Mestres. A Descoberto do Poder do Amor. Tradução António Reca de Sousa. Cascais: Editora Pergaminho.
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo é presidente do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal
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