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Como nasceu o Diabo

Autor: Rogério Coelho

(…) Acreditar que Deus haja criado um ser eternamente votado ao mal, sabotador contumaz de Sua obra, é atitude ingênua que tange as raias da
mais sórdida blasfêmia 

François C. Liran

Satã, Demo, Belzebu, Coisa Ruim, Lúcifer, o Bicho, Pé-Rachado, Capeta, Belfegor, tais as denominações pelas quais se notabilizou o Diabo, sendo esta última (Belfegor) cunhada por Jean Weier, que imprevidentes autoridades da Igreja permitiram se espalhasse nos círculos católicos para nomear os titulares antípodas do Bem, dando-lhes (pasmem!) “status” de rivais de Deus!  Até mesmo Goethe, para o seu Fausto aumentou as já abundantes denominações para o indigitado Senhor das Trevas, chamando-o Mefistófeles, senhor dos vândalos e perversos…

Ser temível engendrado por mentes adoecidas e encharcadas pelos interesses subalternos, lenda viva e verdadeiro anti-herói, cuja figura se conserva até hoje no imaginário cristão, tal criatura malfazeja tem sido excelente auxiliar das religiões medievais e contemporâneas que necessitam desse tipo de terrorismo para que sejam aquietadas suas ingênuas ovelhas nos estreitos e áridos apriscos dogmáticos. Tal terrorismo adquire contornos dramáticos quando, extrapolando as fronteiras do mundo físico, invade o Mundo Espiritual, no qual, através de ideoplastias, as criaturas desencarnadas portadoras de clichês mentais criados e nutridos por elas mesmas, acabam ficando frente a frente com essa demoníaca Entidade, que na verdade é a fantasia de algum Espírito mau que dessa forma se mostra para aterrorizar sua indefesa e crédula vítima[1].

As mesmas instruções eclesiásticas que mandaram queimar livros espíritas na fogueira aprovaram (coerentemente) o livro de autoria de Collin de Plancy que traz a descrição minuciosa de diversos demônios. 

Clichês mentais 

Silas1 explica que as ideias macabras da magia aviltante, quais sejam as da bruxaria e do demonismo que as igrejas denominadas cristãs propagam, a pretexto de combatê-los, mantendo crendices e superstições, ao preço de conjurações e exorcismos, geram os clichês mentais demoníacos nos desencarnados de cérebros fracos e desprevenidos que acoroçoam tais absurdos, estabelecendo epidemias de pavor alucinatório. Por outro lado, as inteligências desencarnadas, entregues à perversão, valem-se desses quadros mal contornados que a literatura fetichista ou a pregação invigilante distribuem na Terra, a mancheias, e imprimem-lhes temporária vitalidade, assim como um artista do lápis se aproveita dos debuxos de uma criança, tomando-os por base nos desenhos seguros com que passa a impressionar o ânimo infantil.

Torna-se, portanto, evidente e fácil de “reconhecer que cada coração edifica o inferno em que se aprisiona, de acordo com as próprias obras. Assim, temos conosco, os diabos que desejamos, segundo o figurino escolhido ou modelado por nós mesmos”, conclui Silas.

Ora, se Deus é a Infinita Bondade, (e disso não podemos duvidar), como a partir d`Ele, o Sumo Bem, poderia ter surgido um Ser que Lhe fosse a antítese?Tal a polêmica surgida no seio da Igreja Católica na baixa Idade Média.  Mas Santo Agostinho (hoje redimido pelo conhecimento espírita) deu, àquele tempo, uma solução que satisfez às “lúcidas” cabeças medievais: livre-arbítrio.

Segundo esse Pai da Igreja, quanto mais próxima uma criatura está de Deus, maior a sua inteligência e sua liberdade de escolha. E no uso de tal liberdade até mesmo os Avatares da mais alta hierarquia, criações mais perfeitas do Todo-Poderoso, podem escolher livremente entre o certo e o errado.    

Lúcifer 

Assim, o Diabo outro não é senão o Anjo de Luz (Lúcifer) que fez a escolha errada (!?), levando com ele toda uma coorte de áulicos e turiferários. Tal teoria agostiniana não prevalece nos dias de hoje quando o Espiritismo vem nos explicar que o Espírito não retrograda[2].

A imaginação de Santo Agostinho (bem entendido o Santo Agostinho encarnado na Idade Média, ainda não iluminado pelas claridades do Espiritismo) vai mais longe: com seu conceito filosófico de LUZ (do “Fiat Lux” bíblico), localiza nas claridades do dia o momento inicial da atuação divina. Por contraste, a noite e sua escuridão passam a incorporar as horas demoníacas, o período temporal de maior vigor do mal, originando aí a expressão “Espírito das Trevas”.

Essa diabólica figura mitológica, conservada no sal insosso dos dogmas gerados no útero estéril da Igreja, experimentou o auge da sua fama e glória com São Tomás de Aquino, que a colocou em um pedestal de importância tão marcante que a sua presença na religião acaba rivalizando e, não raro, superando a presença de Deus, criando, então, um clima de terror.

Em uma pregação de menos de vinte minutos, determinados líderes (cegos guiando cegos) religiosos mencionam a palavra “diabo” não poucas dezenas de vezes, ficando bastante esmaecida ou totalmente nula as figuras de Deus e de Jesus.

Faz-se necessário voltar séculos no tempo para podermos assistir ao nascimento do Diabo, porque já ao tempo de Jesus, segundo apontamento feito por Marcos, O Meigo Rabi foi acoimado de parceria com ele[3]“(…) pelo príncipe dos demônios expulsa os demônios”.

O Diabo é o anti-herói criado com a finalidade de amedrontar o povo ignorante para tê-lo submisso aos dogmas absurdos e manter o “status” da casta sacerdotal com seu parasitismo ancestral.  

O daimon de Sócrates 

A palavra demônio, de “daimon”, originária da Grécia clássica, não possuía a conotação atual de gênio das trevas.  Lembra-nos o Mestre Lionês[4] que este verbete não era tomado à má parte na antiguidade tal como o temos conhecido nos tempos contemporâneos, uma vez que não designava exclusivamente seres malfazejos, mas todos os Espíritos em geral, dentre os quais se destacavam os Espíritos Superiores chamados deuses, e os menos elevados, ou demônios propriamente ditos, que se comunicavam diretamente com os homens.

Sócrates dizia ser íntimo de um “daimon” de quem aprendia altos conceitos filosóficos, e afirmava que, após a morte, o daimon (entenda-se Espírito protetor) que nos fora designado durante a vida leva-nos a um lugar onde se reúnem todos os que têm de ser conduzidos ao Hades, para serem julgados.

O Mestre Lionês teve o zelo de estudar este tema à exaustão nos capítulos IX e X do livro básico: “O Céu e o Inferno”, onde, com sua habitual, contundente e insofismável lógica, conclui que a crença na existência de tal Ser resultaria no seguinte trágico e inadmissível corolário: Deus enganou-Se, logo só podemos, com a Igreja, absurdamente concluir: Deus não é infalível (!?).

Com o escopro de seu raciocínio lúcido, Allan Kardec leva-nos à raiz do berçário do Diabo ao levantar a velha questão do Bem e do Mal. Diz ele[5]: “provada e patente a luta entre o bem e o mal, triunfante este muitas vezes sobre aquele, e não se podendo racionalmente admitir que o mal derivasse de um benéfico poder, concluiu-se pela existência de dois poderes rivais no governo do mundo.  Daí nasceu a doutrina dos dois princípios, aliás, lógica numa época em que o homem se encontrava incapaz de, raciocinando, penetrar a essência do Ser Supremo.

Como compreenderia, então, que o mal não passa de estado transitório do qual pode emanar o bem, conduzindo-o à felicidade pelo sofrimento e auxiliando-lhe o progresso?  

O bem o e o mal 

Os limites do seu horizonte moral, nada lhe permitindo ver para além do seu presente, no passado como no futuro, também não lhe permitiam compreender que já houvesse progredido, que progrediria ainda individualmente, e muito menos que as vicissitudes da vida resultavam das imperfeições do ser espiritual nele residente, o qual preexiste e sobrevive ao corpo, na dependência de uma série de existências purificadoras até atingir a perfeição.

Para compreender como do mal pode resultar o bem é preciso considerar não uma, porém, muitas existências; é necessário apreender o conjunto do qual — e só do qual— resultam nítidas as causas e respectivos efeitos.

O duplo princípio do bem e do mal foi, durante muitos séculos, e sob vários nomes, a base de todas as crenças religiosas. Vemo-lo assim sintetizado em Oromase e Arimane entre os persas, e em Jeová e Satã entre os hebreus. Todavia, como todo soberano deve ter ministros, as religiões geralmente admitiram potências secundárias, ou bons e maus gênios. Os pagãos fizeram deles individualidades com a denominação genérica de deuses e deram-lhes atribuições especiais para o bem e para o mal, para os vícios e para as virtudes. Os cristãos e os muçulmanos herdaram dos hebreus os anjos e os demônios.Conclui-se, portanto, facilmente que a doutrina dos demônios tem origem na antiga crença dos dois princípios: o Bem e o Mal”.

O fato que permitiu a gênese da doutrina dos demônios foi a total ignorância medieval que então existia acerca dos verdadeiros atributos de Deus: Único, Eterno, Imutável, Imaterial, Onipotente, Soberanamente Justo e Bom, Infinito em todas as Perfeições.Tal o eixo em torno do qual – necessariamente – precisa girar todo e qualquer conceito filosófico ou doutrinário que queira alinhar-se com a verdade e com a lógica. 

O Deus Hebraico 

Em um périplo na história das civilizações antigas com o historiador Carlos Roberto F. Nogueira, com base em seu livro: “O Diabo no Imaginário Cristão”, EDUSC, e na companhia de Sávio Laterce, mestrando em Filosofia pela IFCS-UFRJ, em sua excelente reportagem publicada no Jornal do Brasil, edição de 30.06.2001, podemos observar a eterna e interminável luta do Mal contra o Bem, com seus respectivos exércitos e armas de combate, bem como a nítida característica anfibológica dos deuses, vez que entre os antigos povos orientais, certos deuses já incorporavam potências destruidoras, negativas, e – invariavelmente – portavam a especificidade típica da lógica do mito que os marcava: a ambiguidade.   Baal era, ao mesmo tempo, o deus mesopotâmio do furação e da fecundidade. Hades representava a divindade grega que protegia os ladrões e também a que guardava os rebanhos. Apolo, o deus grego da beleza, da música e do equilíbrio, tinha a sua faceta obscura ligada a rituais de adivinhação, à falta de clareza nas palavras e a punições sumárias.

Até mesmo o Deus hebraico do Velho Testamento segue essa mesma linha: é bom, mas só com aqueles que Lhe são bons ou simpáticos, tendo um forte lado ciumento e vingativo.  O motivo para tamanha dicotomia não é difícil de pressentir: os relatos de origem do Universo em diferentes culturas revelam que é preciso unir forças construtivas, organizadoras, com difusos jorros criativos multidirecionados para a realização da tarefa. 

A cultura hebraica que legou herança à religião cristã banhou-se no caldo cultural jorrado da rica fonte dos primitivos e ancestrais cultos.  

“O povo judaico, – explica Laterce[6] – ligado por raízes à Mesopotâmia e ao politeísmo, definiu, em torno do século VI a.C., Javé como Deus único e mais perfeito que os deuses de outras culturas. Acossados permanentemente por persas, babilônios e mesopotâmios, o exterior e o desconhecido têm para os hebreus o caráter de ameaça. O estrangeiro vira o lugar das divindades de segunda ordem e também o território do adversário, que em hebraico significa satã.Mas, junto com a promessa do além e a ideia dualista de dois mundos – influências de persas e caldeus – surgem as noções de Céu e Inferno, a divisão mais marcada de bem e mal e também alguns mitos que narram a viagem para um mundo superior, celeste… O Deus é único, mas o mal está disperso em um grupamento de Entidades.”

Segundo Carlos Roberto Nogueira, a concentração do mal em uma personagem só fica visível no Novo Testamento. Aí satã (substantivo) passa a ser Satã (nome próprio). De um adversário (com “a” minúsculo) vira Adversário (com “A” maiúsculo).  O modelo do inimigo de Jesus, aquele que coloca Sua bondade à prova, está composto.

Gregos. Com a unificação religiosa realizada por Roma no século 4 d.C., o Cristianismo, de seita perseguida (lembremos que Paulo de Tarso até ter sua visão divina no deserto sírio era um soldado romano que caçava cristãos), passa a perseguir: transforma-se no culto oficial e obrigatório de todo Império. Pleno de correntes divergentes em seu começo, ganha cada vez mais o aspecto fechado e generalista do catolicismo (católico = universal). Pagão passa a ser todo o passado e o presente alheio ao Império Romano.

Com o crescente poderio latino cristão, temos um caso à parte: a tentativa de extermínio de toda a tradição cultural grega. Algumas manifestações são facilmente visíveis, como os oráculos destruídos e os narizes e braços quebrados das esculturas gregas, tal como o fizeram hodiernamente os líderes religiosos do Afeganistão, destruindo as enormes estátuas representativas do Budismo. Quaisquer formas de cultos paralelos ligados à fecundidade e à Natureza, como as festas rurais sagradas da primavera, passam a ser terminantemente proibidos. Só que a interdição muitas vezes era sem sucesso. Por não conseguir coibir essas práticas da forma como gostaria, o cristianismo usa as armas do inimigo.  Mantém o Deus único lá em cima, mas produz uma multiplicidade em um nível mais baixo: os santos.

É evidente que os santos de hoje são os sucedâneos dos antigos ídolos pagãos, uma vez que a Igreja não conseguiu erradicar a idolatria.  É a velha história: se não se pode com o inimigo, melhor unir-se a ele.   Nem mesmo as antigas festas rurais deixaram de acontecer: foram substituídas pelas festas urbanas que sobreviveram até hoje. Basta ver o que acontece ao redor das Igrejas católicas nos meses de maio e junho. 

Demonologia 

Então, na verdade, o que temos hoje em dia não difere do que os pagãos tinham a seu tempo. Era de fato necessário o advento do “Consolador prometido” para colocar ordem na Casa Planetária que nos acolhe.

Apesar do destaque crescente que o demônio vai ganhando dentro do Cristianismo, até aí a vitória de Deus sobre o Diabo é considerada incontestável.  Este último existe no mundo para ser superado e dar mais glória ao poder absoluto celestial. O quadro só muda em um momento histórico bem posterior com outro grande teórico da religião cristã: São Tomás de Aquino.

Estamos no século XIII e a Igreja Católica vive o apogeu de seu domínio territorial, político e econômico. Para se manter assim, precisa demonstrar seu poder com cada vez mais visibilidade, poderíamos mesmo dizer: com atrevida e violenta ostensividade. Nesse contexto, e nessa imperiosa necessidade de a Igreja sustentar seu domínio escravocrata, São Tomás de Aquino potencializa a figura do Diaboem uma ordem tal que, a partir das simbologias do folclore popular, inventa uma ciência para combatê-lo: a demonologia. Nesse festival de ignorância os católicos ainda conseguem ser superados pelos ditos Evangélicos (protestantes) onde a “mise-en-scène” dos pastores raia pela violência na tentativa de expulsar o dito cujo do corpo das apavoradas ovelhas de seus dóceis rebanhos de raciocínio frusto e ancilosado.

Assim, passam a existir regras bem definidas para identificação do personagem do mal, que só poderia ser derrotado com a imprescindível ajuda da fé cristã.  Assim o Diabo ganha contornos físicos mais precisos, inclusive com a ajuda de grandes pintores que trabalhavam para a Igreja com exclusividade, não economizando os recursos para colorir com as cores fortes da ignorância os painéis infernais destinados a apavorar. 

Bode expiatório 

“O hibridismo homem/animal” – continua esclarecendo Laterce1–, “forma dos antigos povos orientais representarem o sobrenatural, vai ser a base para compor uma figura essencialmente deformada. Uma presença recorrente são as patas de bode, que era o animal escolhido por muitas culturas pré-cristãs para rituais de sacrifício e louvor aos deuses (daí a expressão bode expiatório).

Além disso, um deus grego particularmente ameaçador para os dogmas do Cristianismo era Dionísio, patrono da dança, da música, do teatro e da embriaguez; ou seja, o desregramento próprio da efervescência caótica da criação artística.  E qual é a característica mais marcante na aparência de Dionísio?  Suas patas de bode. A presença desses membros inferiores no imaginário popular ajudaria a colocar, de uma só vez, a tradição religiosa grega e oriental em uma íntima conexão com as forças malignas.  Dessa forma o Diabo vira uma obsessão onipresente e vai deixando de ser um indivíduo para se caracterizar como um grupo de combatentes (legião de demônios) e, portanto, qualquer um em qualquer lugar pode estar “possuído”, e consequentemente necessitado da ajuda exorcista da Igreja.

As perseguições da “Santa” Inquisição atingem a todos aqueles que divergem do padrão pré-determinado de cristão, e que no parecer das atentas autoridades eclesiásticas tinham parte com o demo.   Qualquer rebento filosófico que começasse a florescer e despontar acima do rígido contexto dogmático imposto era presto e impiedosamente ceifado. As acusações que via de regra levavam o condenado à morte, constituíam-se nos mais absurdos, banais e arbitrários libelos: uma família foi condenada à fogueira por trocar a roupa de cama numa sexta-feira; ruivos têm na cor dos cabelos um sinal da relação com o fogo dos infernos e deficientes físicos constituem, por analogia, deformados espirituais e esquecidos de Deus, portanto, fogueira neles!… 

Príncipe das trevas 

No século XIV, um movimento “incensado” pela Igreja para aumentar o seu poderio em direção ao Oriente, as Cruzadas (o desenho da suástica nazista é constituído por duas cruzes superpostas, isto é: “cruzadas” – Coincidência?!…), tinha como lema o conceito de Guerra Santa contra o paganismo e como objeto a expulsão dos árabes da região onde nasceu e viveu Jesus.  A composição física do Diabo ganha novos itensbarbicha e tom de pele escuro, característica dos mouros. E assim, nutrido pela placenta da ignorância e dos inconfessáveis interesses subalternos, o Diabo vai sendo adereçado até atingir seu “status quo” atual.

O modelo monárquico absolutista da Idade Média ajuda a compor a ideia do líder de todo o exército demoníaco: Satã é agora o Príncipe das Trevas, o reverso do Cristo, o Anticristo, que um dia reinaria sobre a Terra. Mas havia ainda mais um motivo importantíssimo, desta vez econômico, que navegava nas correntes subterrâneas desse realce das forças demoníacas: a lucrativa venda das indulgências! 

Expliquemos: o Apocalipse bíblico parecia estar se concretizando em virtude da instalação das guerras e do surgimento da peste.  E com os painéis infernais sendo pintados do alto dos púlpitos com as tintas fortes do terror, estava aí criada a dependência necessária da qual a Igreja se utilizou fartamente para obter lucro: passagens garantidas para o Céu podiam ser compradas a partir da venda das indulgências a peso de ouro para os nobres. Aí temos o Diabo nomeado ministro da economia da Igreja. Sem ele, não haveria terrorismo e ninguém se interessaria pelo precioso “passaporte”.

Porém, como não há situação que dure para sempre, a partir do século XVI, com o avanço da ciência moderna e os novos conceitos filosóficos humanistas, temos um decréscimo da importância da religião na vida cotidiana.  Com isso, o Diabo também perdeu espaço…

Hoje, apesar de nosso mundo cada vez mais racionalista e dessacralizado, ele está presente em rituais de algumas correntes protestantes, em cultos satânicos e no mundo da ficção em um número razoável de filmes de qualidade duvidosa, entre os quais se salvam “O Bebê de Rosemary”, de Roman Polanski, e “O Exorcista”, de William Friendkin”. 

Destino da humanidade 

Finaliza Laterce com sabedoria filosófica: “a leitura do Diabo no imaginário cristão leva a pensar que a nossa vontade sempre foi transportar o Mal para um mundo distante de nós, transcendente, só que cada vez mais temos evidências de que ele é mesmo da ordem humana”.

Na conclusão de “O Livro dos Espíritos”, Paulo de Tarso deixou a seguinte carta para todos nós, cristãos da atualidade: “gravitar para a unidade divina, eis o destino da humanidade. Para atingi-lo, três coisas são necessárias: a Justiça, o Amor e a Ciência. Três coisas lhe são opostas e contrárias: a ignorância, o ódio e a injustiça. Pois bem! Digo-vos, em verdade, que mentis a estes princípios fundamentais, comprometendo a ideia de Deus, com O lhe exagerardes a severidade. Duplamente a comprometeis, deixando que no Espírito da criatura penetre a suposição de que há nela mais clemência, mais virtude, amor e verdadeira justiça, do que atribuís ao Ser Infinito. Há que se destruir a ideia do inferno, tornando-o ridículo e inadmissível às vossas crenças, como o é aos vossos corações o horrendo espetáculo das execuções, das fogueiras e das torturas da Idade Média. 

Crede-me: ou vos resignais a deixar que pereçam nas vossas mãos todosos vossos dogmas, de preferência a que se modifiquem, ou, então, vivificai-os, abrindo-os aos benfazejos eflúvios que os Bons, neste momento, derramam neles.  

A ideia do inferno, com as suas fornalhas ardentes, com as suas caldeiras a ferver, pôde ser tolerada, isto é, perdoável numa época de ferro; porém, neste século das luzes, não passa de vão fantasma, próprio, quando muito, para amedrontar criancinhas e em que estas, crescendo um pouco, logo deixam de crer. Se persistirdes nessa mitologia aterradora, engendrareis a incredulidade, mãe de toda a desorganização social. Tremo, entrevendo toda uma ordem social abalada e a ruir sobre os seus fundamentos, por falta de sanção penal.  

Castigo, o que é? 

Homens de fé ardente e viva, vanguardeiros do dia da luz, mãos à obra, não para manter fábulas que envelheceram e se desacreditaram, mas para reavivar, revivificar a verdadeira sanção penal, sob formas condizentes com os vossos costumes, os vossos sentimentos e as luzes da vossa época…

Que é o castigo?!  A consequência natural, derivada do desvio da Lei Divina; certa soma de dores necessárias a desgostar o homem da sua deformidade, pela experimentação do sofrimento; o aguilhão que estimula a alma, pela amargura, a se dobrar sobre si mesma e a buscar o porto de salvação.  O castigo só tem por fim a reabilitação, a redenção… Querê-lo eterno, por uma falta não eterna, é negar-lhe toda a razão de ser.

“Oh! Em verdade vos digo, cessai, cessai de pôr em paralelo, na sua eternidade, o Bem, essência do Criador, com o Mal, essência da criatura.  Fora criar uma penalidade injustificável.  Afirmai, ao contrário, o abrandamento gradual dos castigos e das penas pelas transgressões e consagrareis a unidade divina, tendo unidos o sentimento e a razão”.

Criado com fins lucrativos e para atender à ânsia de dominação de uma casta parasita, o Diabo foi morto e sepultado pelo conhecimento espírita que nos informa de maneira límpida e cristalina não ser crível que nosso Pai Celestial, o Deus de Amor e Bondade, possa criar um ser eternamente votado ao mal, afirmando, por outro lado, que todos os Espíritos são criados simples e ignorantes, sendo os maus simplesmente Espíritos de evolução ainda incipiente, mas, suscetíveis de se alcandorarem aos mais altos postos da hierarquia espiritual no decorrer do infinito dos tempos. 

Referências

[1] – XAVIER, Francisco Cândido.  Ação e reação. 5.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 1976,  cap. 4.

[2] – KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 88.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2006, q. 118.

[3] – Marcos, 3:22.

[4] – KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 129.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2009, – Introdução.

[5] – KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. 51.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2003, IX, itens 4 a 6.

[6] – Sávio Laterce é mestrando em Filosofia pela IFCS-UFRJ.

[7] – Sávio Laterce é mestrando em Filosofia pela IFCS-UFRJ.

O consolador – Ano 9 – N 447 e 448 – Especial.

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