Revista Espírita, setembro de 1859
Um dos nossos correspondentes de Boulogne, a propósito da entrevista de Voltaire e Frédéric, que publicamos no último número da Revista, nos dirige a seguinte, comunicação que aqui inserimos com tanto maior bom grado porque ela apresenta um lado eminentemente instrutivo do ponto de vista espírita. Nosso correspondente fá-la preceder de algumas reflexões que nossos leitores ficarão contentes por não as omitir.
“Se jamais um homem, mais que um outro, deve sofrer os castigos eternos, esse homem é Voltaire. A cólera, a vingança de Deus persegui-lo-ão para sempre. Eis o que nos dizem os teólogos da velha escola.
“Agora que dizem os mestres da teologia moderna? Pode ocorrer, dizem, que desconheçais o homem, não menos que o Deus do qual falais; guardai para vós vossas baixas paixões de ódio e de vingança e não enlameais com elas vosso Deus. Se Deus se inquieta por esse pobre pecador, se toca o inseto, isso será para arrancar seu ferrão, para reconduzir a ele uma cabeça exaltada, um coração extraviado. Dizemos, além disso, que Deus sabe ler nos corações, de outro modo que vós, encontra ali o bem onde não encontrais senão o mal. Se dotou esse homem de um grande gênio, foi para o bem da raça, não para a sua infelicidade. Que importam, pois, essas primeiras extravagâncias, esses passos de livre condutor entre vós? Uma alma dessa tempera não poderia, em quase nada, fazer outras: a mediocridade serlhe-ia impossível no que quer que fosse.
Agora que está orientado, qual um potro indomável e jogou as patas e os dentes na sua pastagem terrestre, que vem a Deus como corcel dócil, mas sempre grande, soberbo para o bem tanto quanto fora para o mau. No artigo que segue, veremos por quais meios operou-se essa transformação; veremos nosso garanhão do deserto, a crina ainda alta, as narinas ao vento, fazer sua corrida através dos espaços do Universo. Foi que ali, ele, o pensamento soerguido, encontrou essa liberdade que era sua essência, e se deu a plenos pulmões dessa respiração de onde tirava sua vida! Que lhe aconteceu? Ele se perdeu, ele se confundiu; o grande pregador do nada enfim encontrou o nada, mas não como ele o compreendia; humilhado, decaído por si mesmo, ferido em sua pequenez, ele que se acreditava tão grande foi aniquilado diante de seu Deus; ei-lo com a face ao chão; espera sua sentença; essa sentença é:
Reabilita-te, meu filho, ou vai-te, miserável! Encontrar-se-á o veredito na comunicação que se segue.
“Esta confissão de Voltaire terá maior valor na Revista Espírita porque ela o mostra sob seu duplo aspecto. Vimos alguns Espíritos naturalistas e materialistas que, de cabeça alterada, tanto quanto seu mestre, mas sem ter seu coração, persistiam em glorificar-se em seu cinismo. Que estes permaneçam no inferno tanto quanto lhes agrada desafiar o céu, a zombar de tudo o que faz a felicidade do homem, é lógico, é seu lugar próprio; mas encontramos lógica também em que aqueles que reconhecem seus erros lhes recolham o fruto. Também, ter-se-á a bondade de crer que não nos pomos como apologistas do velho Voltaire; aceitamo-lo somente em seu novo papel e nos regozijamos com a sua conversão, a qual glorifica a Deus, e não pode deixar de impressionar profundamente aqueles que, hoje ainda, se deixam arrastar por seus escritos. Ali está o veneno, aqui está o antídoto.
“Esta comunicação, traduzida do inglês, foi extraída da obra do juiz Edmonds, publicada nos Estados Unidos. Ela toma a forma de uma conversação entre Voltaire e Wolsey, o célebre cardeal inglês do tempo de Henrique VIII. Dois médiuns foram impressionados separadamente para transmitirem esse diálogo.”
Voltaire. – Que imensa revolução no pensamento humano ocorreu desde que deixei a Terra!
Wolsey. – Com efeito, essa infidelidade que censuráveis então, aumentou desmesuradamente desde aquela época. Não é que ela tenha maiores pretensões hoje, mas é mais profunda e mais universal, e ao menos que seja detida, ela ameaça tragar a Humanidade no materialismo, mais do que o fez durante séculos.
Voltaire. – Infidelidade em quê e contra quem? Está na lei de Deus e do homem? Pretendes me acusar de infidelidade porque não me submeti aos estreitos preconceitos de seitas que me rodeavam? É que minha alma estava a pedir uma amplidão de pensamento, um raio de luz, além das doutrinas humanas. Sim, minha alma nas trevas tinha sede de luz.
Wolsey. – Também eu não quis falar senão da infidelidade que se vos imputava, e, ah! não sabeis que muito essa imputação vos pesa ainda. Eu me permito não vos censurar, mas vos dirigir as queixas, porque vosso desprezo pelas doutrinas de hoje, em tanto que estas não eram senão materiais e inventadas pelos homens, não poderiam lesar Espíritos semelhantes ao vosso. Mas essa mesma causa que agia sobre o vosso Espírito, operava igualmente sobre outros, os quais eram muito fracos e muito pequenos para alcançarem os mesmos resultados que vós. Eis, portanto, como aquilo que, em vós, não era senão uma negação dos dogmas dos homens, se traduzia nos outros em reino de Deus. Foi dessa fonte que se espalhou, com uma rapidez assustadora, a dúvida sobre o futuro do homem. Eis também porque o homem, limitando as suas aspirações a este único mundo, caiu cada vez mais no egoísmo e no ódio ao próximo. É a causa, sim, a causa desse estado de coisas que importa procurar porque uma vez encontrada, o remédio será comparativamente fácil. Dizei-me: conheceis essa causa?
Voltaire.- Minhas opiniões, tais como foram dadas ao mundo, foram marcadas, é verdade, por um sentimento de amargura e de sátira; mas, notai bem, quando eu tinha o Espírito importunado, por assim dizer, por uma luta interior. Eu olhava a Humanidade como me sendo inferior em inteligência e em penetração; não a via senão como marionetes que poderiam ser conduzidas por todo homem dotado de uma vontade forte, e me indignava por ver essa Humanidade que se arrogava uma existência imortal, estar repleta de elementos ignóbeis. Era necessário, portanto, crer que um ser dessa espécie partira da Divindade, e que poderia, por sua medíocre mão, assenhorar-se da imortalidade? Essa lacuna entre duas existências tão desproporcionadas me chocava, e eu não podia preenchê-la. Eu não via senão o animal no homem, não o Deus.
Reconheço que, em alguns casos, minhas opiniões tiveram tendências deploráveis; mas tenho a convicção de que, em outros aspectos, tiveram o seu lado bom. Elas chegaram a reerguer várias almas que estavam degradadas na escravidão; elas quebraram as cadeias do pensamento e deram asas às grandes aspirações. Mas, ah! eu também, que planava tão alto, perdi-me como os outros.
Se em mim a parte espiritual estivesse tão desenvolvida quanto a parte material, raciocinaria com mais discernimento; mas confundindo-as, perdi de vista essa imortalidade da alma que eu procurava, e que não pedia mais do que encontrar; também, dominado que estava com a minha luta com o mundo, com isso cheguei, quase apesar de mim, a negar a existência de um futuro. A oposição que eu fazia às tolas opiniões e à cega credulidade dos homens, impeliam-me a negá-lo ao mesmo tempo, e a contrapor todo o bem que a religião cristã poderia fazer. Entretanto, por infiel que fosse, sentia que era superior aos meus adversários; sim, bem além da importância de sua inteligência; a bela face da Natureza revelava-me o Universo, inspirava-me o sentimento de uma vaga veneração, misturado ao desejo de uma liberdade ilimitada, sentimento que jamais estes experimentaram, agachados que estavam nas trevas da escravidão.
Minhas obras têm, portanto, seu lado bom, porque sem elas o mal que viria para a Humanidade poderia ser pior, sem oposição nenhuma. Vários homens não quiseram mais a sua subjugação; muitos deles se libertaram, e se o que eu preguei lhes deu um único pensamento elevado, ou lhes fez dar um único passo no caminho da ciência, não foi abrir-lhes os olhos quanto à sua verdadeira condição? O que eu lamento é ter vivido tanto tempo na Terra sem saber o que poderia ser, e o que poderia fazer. O que eu não faria, se fosse abençoado com as luzes do Espiritismo, que despertam hoje no Espírito dos homens!
Incrédulo e incerto entrei no mundo dos Espíritos. Só minha presença bastava para banir todo vislumbre de luz que pudesse esclarecer minha alma obscurecida; fora a parte material de meu ser que se desenvolveu na Terra; quanto à parte espiritual, ela se perdera no meio de meus descaminhos procurando a luz; ela se achava presa como numa jaula de ferro. Altivo e zombador, eu aí iniciava, não conhecendo, nem me importando em conhecer, esse futuro que tanto combatera quando no corpo. Mas fazemos aqui está confissão: sempre encontrei, em minha alma, uma pequena voz que se fazia ouvir através das barreiras materiais, e que pedia a luz. Era uma luta incessante entre o desejo de saber e uma obstinação em não saber. Assim, pois, minha entrada ficou longe de ser agradável, não vinha descobrir a falsidade, a coisa nenhuma das opiniões que sustentara com toda a força de minhas faculdades? O homem se achava imortal, afinal de contas, eu não poderia deixar de ver e deveria existir um Deus, um Espírito imortal, que estava acima e que governava esse espaço ilimitado que me rodeava.
Como eu viajasse sem cessar, sem me conceder nenhum repouso, a fim de me convencer que isso poderia muito bem, ainda, ser um mundo material, ali onde eu estava, minha alma lutou contra a verdade que me esmagava! Não pude me realizar como Espírito que acabara de deixar sua morada mortal! Não tive aí ninguém com quem pudesse entabular relações, porque recusara a imortalidade a todos. Não existia repouso para mim: eu estava sempre errante e incerto; o Espírito em mim, tenebroso e amargo, talhado do maníaco, impossibilitado de seguir alguma coisa ou deter-se.
Foi, eu o digo, zombador e desconfiado que abordei o mundo espírita. Primeiro fui conduzido para longe das habitações dos Espíritos, e percorri o espaço imenso. Em seguida, me foi permitido lançar os olhos sobre as construções maravilhosas das moradas espíritas e, com efeito, elas me pareceram surpreendentes; fui impelido, aqui e ali, por uma força irresistível; tive que ver, e ver até que minha alma transbordasse pelos esplendores, e derrotada diante do poder que controlava tais maravilhas. Enfim, quis me esconder e me agachar no oco das rochas, mas não pude.
Foi nesse momento que meu coração começou a sentir a necessidade de se expandir; uma associação qualquer tornou-se urgente, porque eu queimava para dizer o quanto fora induzido ao erro, não por outros, mas pelos meus próprios sonhos. Não me restava mais a ilusão quanto à minha importância pessoal, porque eu não sentia senão muito o quanto era pouca coisa nesse grande mundo dos Espíritos. Estava, enfim, de tal modo caído de desgosto e de humilhação, que me foi permitido juntar-me a alguns dos habitantes. Foi dali que pude contemplar a posição que me fizera na Terra, e o que disso resultou, para mim no mundo espírita. Eu vos deixo o acreditar se essa apreciação me foi risonha.
Uma revolução completa, um transtorno total ocorreu no meu organismo espírita, e professor que fora, tornei-me o mais ardente aluno. Com a expansão intelectual que trazia comigo, quanto progresso fiz! Minha alma se sentia iluminada e abraçada pelo amor divino; suas aspirações rumo à imortalidade, de comprimidas que estavam, tomaram impulsos gigantescos. Eu via o quanto meus erros foram grandes, e o quanto a reparação a fazer deveria ser grande para expiar tudo o que fizera ou dissera, que pudera seduzir e enganar a Humanidade. Como são magníficas essas lições da sabedoria e da beleza celestes! Elas ultrapassam tudo o que imaginara na Terra.
Em resumo, vivi bastante para reconhecer, na minha existência terrestre, uma guerra encarniçada entre o mundo e a minha natureza espiritual. Lamentei profundamente as opiniões que promulguei e que deveram desencaminhar muitos do mundo; mas, ao mesmo tempo, foi penetrado de gratidão pelo Criador, o infinitamente sábio, que eu me sinto haver sido um instrumento com ajuda do qual os Espíritos dos homens puderam se portar na direção do exame e do progresso.
Nota. Não acrescentaremos nenhuma reflexão nesta comunicação, da qual cada um apreciará a profundeza e alta importância e onde se encontra toda a superioridade do gênio. Nunca talvez um quadro mais grandioso e mais impressionante foi dado do mundo espírita, e da influência das ideias terrestres sobre as ideias de além-túmulo. Na conversa que publicamos no nosso último número, encontramos o mesmo fundo de pensamentos, embora menos desenvolvidos e, sobretudo, menos poeticamente exprimidos. Aqueles que não se apegam senão à forma dirão, sem dúvida, que não reconhecem o mesmo Espírito nessas duas comunicações, e que a última, sobretudo, não lhes pareça à altura de Voltaire; de onde concluirão que uma das duas não é dele.
Seguramente, quando nós o chamamos, ele não nos trouxe sua certidão de nascimento, mas quem veja abaixo da superfície, será tocado pela identidade de vistas e de princípios que existe entre essas duas comunicações, obtidas em épocas diversas, a uma tão grande distância, e em línguas diferentes. Se o estilo não for o mesmo, não há contradição no pensamento, e é o essencial. Mas se foi o mesmo Espírito que falou nessas duas comunicações, por que foi tão explícito, tão poético numa, ao passo que foi tão lacônico, tão vulgar na outra? Fora preciso não estudar os fenômenos espíritas para disso não se dar conta. Isso prende-se à mesma causa que faz que o mesmo Espírito dê formosas poesias por um médium, e não possa ditar um único verso por um outro. Conhecemos médiuns que não são poetas, pelo menos do mundo, e que obtêm versos admiráveis, como há outros que jamais aprenderam a desenhar e que fazem em desenho coisas maravilhosas. É necessário, pois, reconhecer que, abstração feita das qualidades intelectuais, há nos médiuns aptidões especiais que os tornam, para certos Espíritos, instrumentos mais ou menos flexíveis, mais ou menos cômodos. Dizemos para certos Espíritos, porque os Espíritos têm também suas preferências, fundadas sobre razões que nem sempre conhecemos; assim, o mesmo Espírito será mais ou menos explícito, segundo o médium que lhe sirva de intérprete, e sobretudo segundo o hábito que tem dele servir-se; porque é certo, por outro lado, que um Espírito que se comunica frequentemente pela mesma pessoa o faz com maior facilidade que aquele que vem pela primeira vez. O impulso do pensamento, portanto, pode ser entravado por uma multidão de causas, mas quando é o mesmo Espírito, o fundo do pensamento é o mesmo, embora a forma seja diferente, e o observador um pouco atento reconhece-lo-á facilmente em certos traços característicos. Narraremos, a esse respeito, o fato seguinte:
O Espírito de um soberano, que desempenhou no mundo um papel importante, chamado em uma de nossas reuniões, iniciou por ato de cólera rasgando o papel e quebrando o lápis. Sua linguagem esteve longe de ser benevolente, porque se achava humilhado por vir entre nós, e perguntou se acreditávamos que ele deveria se abaixar para nos responder. Acreditou, entretanto, que, se o fazia, era como constrangido e forçado por uma força superior à sua; mas se isso dependesse dele não o faria. Um dos nossos correspondentes da África, que não tinha nenhum conhecimento do fato, escreveu-nos que, em uma reunião da qual fazia parte, quiseram evocar o mesmo Espírito. Sua linguagem foi sob todos os pontos idêntica: “Credes, disse ele, que se fosse voluntariamente, viria aqui, nesta casa de negociantes, que talvez um dos meus súditos não gostaria de morar? Eu não vos respondo; isso me lembra meu reino onde era tão feliz; eu tinha autoridade sobre todas as minhas gentes, agora é necessário que eu seja submisso.” O Espírito de uma rainha que, durante sua vida, não se distinguiu pela bondade, respondeu no mesmo círculo: “Não me interrogueis mais, pois me aborreceis; se tivesse ainda o poder que tive na Terra, vos faria muito se arrependerem, mas zombais de mim, da minha miséria, agora que não posso nada sobre vós; sou bem infeliz!” – Não está aí um curioso estudo de costumes espíritas?