Revista Espírita, agosto de 1858
As contradições que, muito frequentemente, se encontram na linguagem dos Espíritos, mesmo sobre questões essenciais, foram até hoje, para certas pessoas, uma causa de incerteza sobre o valor real de suas comunicações, circunstância da qual os adversários não deixaram de tirar partido. À primeira vista, essas contradições parecem, com efeito, devem ser uma das principais pedras de tropeço da ciência espírita. Vejamos se elas têm a importância que lhe prestam.
Perguntaremos primeiro, qual ciência, em seu início, não apresentou semelhantes anomalias? Que sábio, em suas investigações, não foi muitas vezes confundido por fatos que pareciam transtornar as regras estabelecidas? Se a Botânica, a Zoologia, a Fisiologia, a Medicina, nossa própria língua disso não oferecem milhares de exemplos, e suas bases desafiam toda contradição? É comparando os fatos, observando as analogias e as disparidades, que se chega, pouco a pouco, a estabelecer as regras, as classificações, os princípios: em uma palavra, a constituir a ciência. Ora, se o Espiritismo apenas desabrocha, não é espantoso que ele se sujeite à lei comum, até que seu estudo esteja completo; só então se reconhecerá que, aqui, como em todas as coisas, a exceção vem quase sempre confirmar a regra.
Os Espíritos, de resto, nos disseram, em todos os tempos, que não devemos nos inquietar com algumas dessas divergências, e que, dentro em pouco, todo mundo será conduzido à unidade de crença. Essa predição se cumpre, com efeito, cada dia, à medida que se penetra mais além das causas desses fenômenos misteriosos, e que os fatos são mais bem observados. Já as dissidências que surgiram na origem tendem, evidentemente, a se enfraquecer, pode-se mesmo dizer que elas não são senão o resultado de opiniões pessoais isoladas.
Se bem que o Espiritismo esteja na Natureza, e que tenha sido conhecido e praticado desde a mais alta antiguidade, constata-se que em nenhuma outra época foi assim universalmente difundido como nos nossos dias. É que outrora dele não se fazia senão um estudo misterioso no qual o vulgo não estava iniciado; conservou-se por uma tradição que as vicissitudes da Humanidade e a falta de meios de transmissão, enfraqueceram insensivelmente. Os fenômenos espontâneos que não cessaram de se produzir, de vez em quando, passaram desapercebidos, ou foram interpretados segundo os preconceitos e a ignorância dos tempos, ou foram explorados em proveito de tal ou tal crença. Estava reservado ao nosso século, onde o progresso recebe um impulso incessante, revelar uma ciência que não existia, por assim dizer, senão no estado latente. Não foi senão há poucos anos que os fenômenos foram seriamente observados; o Espiritismo é, pois, uma realidade, uma ciência nova que se implanta pouco a pouco no espírito das massas, à espera de que tome uma posição oficial. No início, essa ciência pareceu bem simples; para as pessoas superficiais, ela não consistia senão na arte de fazer girar as mesas; mas uma observação mais atenta mostrou-a bem diferente, complicada pelas suas ramificações e suas consequências, do que se havia suposto. As mesas girantes são como a maçã de Newton que em sua queda encerra o sistema do mundo.
Chegou ao Espiritismo o que chega no início de todas as coisas: os primeiros não puderam ver tudo; cada um viu de seu lado e se apressou em comunicar suas impressões sob seu ponto de vista, segundo suas ideias ou prevenções. Ora, não se sabe que, segundo o meio, o mesmo objeto pode parecer quente a um, ao passo que um outro o achará frio?
Tomemos, ainda, uma outra comparação das coisas vulgares, pelo fato dela mesma parecer trivial, a fim de que compreendamos.
Leu-se, ultimamente, em vários jornais: “O cogumelo tem uma produção das mais bizarras; delicioso ou mortal, microscópico ou de uma dimensão fenomenal, ele confunde, sem cessar, a observação do botânico. No túnel de Doncastre, tem um cogumelo que se desenvolve há doze meses, e não parece ter atingido sua última fase de crescimento; atualmente, mede 13 pés de diâmetro. Chegou sobre uma peça de madeira; é considerado como o mais belo espécime de cogumelo que tem existido. A classificação é difícil, porque as opiniões estão divididas.” Assim, eis a ciência confundida pela chegada de um cogumelo que se apresenta sob um novo aspecto. Isso nos provocou a reflexão seguinte. Suponhamos vários naturalistas observando, cada um de seu lado, uma variedade desse vegetal; um dirá que o cogumelo é um criptógamo comestível procurado pelos cozinheiros; um segundo, que é venenoso; um terceiro, que é invisível a olho nu; um quarto, que pode atingir até 45 pés de circunferência etc.; são todas afirmativas contraditórias, antes de quaisquer outras, e pouco próprias para fixarem as ideias sobre a verdadeira natureza dos cogumelos. Depois, virá o quinto observador que reconhecerá a identidade dos caracteres gerais e mostrará que essas propriedades tão diversas não constituem, em realidade, senão variedades de subdivisões de uma mesma classe. Cada um tinha razão de seu ponto de vista; todos estavam errados concluindo do particular para o geral, e por tomar a parte pelo todo.
O mesmo ocorre com respeito aos Espíritos. São julgados segundo a natureza das relações que se teve com eles, onde de uns fizeram demônios, e de outros anjos. Depois, se apressou em explicar os fenômenos, antes de ser visto, e cada um o fez à sua maneira e, naturalmente, em tudo procurando as causas do que se fazia objetos de suas preocupações; o magnetista tudo relacionou com a ação magnética, o físico com a ação elétrica etc. A divergência de opiniões, em matéria de Espiritismo, vem, pois, de diferentes aspectos sob os quais foi considerado. De que lado está a verdade? É o que o futuro demonstrará; mas a tendência geral não poderia ser duvidosa: um princípio domina, evidentemente, e liga, pouco a pouco, os sistemas prematuros. Uma observação menos exclusiva os ligará todos à fonte comum, e cedo se verá que, em definitivo, a divergência está mais no acessório do que no fundo.
Compreende-se muito bem que os homens erijam teorias contrárias sobre as coisas; mas o que pode parecer mais singular, é que os próprios Espíritos possam se contradizer foi isso sobretudo que, desde início, lançou uma espécie de confusão nas ideias. As diferentes teorias espíritas têm, pois, duas fontes: umas desabrocharam nos cérebros humanos; as outras foram dadas pelos Espíritos. As primeiras emanaram de homens que, muito confiantes em suas próprias luzes, creram ter em mão a chave daquilo que procuram, ao passo que, o mais frequentemente, não encontram senão uma chave mestra. Isso nada tem de surpreendente; mas que, entre os Espíritos, uns digam branco e outros negro, eis o que pareceria menos concebível, e que hoje é perfeitamente explicado. Fez-se, desde o princípio, uma ideia completamente falsa da natureza dos Espíritos. Foram figurados como seres à parte, de uma natureza excepcional, nada tendo em comum com a matéria, e devendo tudo saber. Eram, segundo a opinião pessoal, seres benfazejos ou malfazejos, uns tendo todas as virtudes, os outros, todos os vícios, e todos, em geral, uma ciência infinita, superior à da Humanidade. Na novidade das manifestações recentes, o primeiro pensamento que veio à maioria foi o de ver nisso um meio de penetrar em todas as coisas ocultas, um novo modo de adivinhação menos suspeito do que os procedimentos vulgares.
Quem poderia dizer o número daqueles que sonharam com uma fortuna fácil pela revelação de tesouros escondidos, com descobertas industriais ou científicas, que não teriam custado, aos inventores, senão o trabalho de escrever os procedimentos sob o ditado dos sábios do outro mundo! Deus sabe, também, quantas decepções e desapontamentos! Quantas pretensas receitas, mais ridículas umas do que as outras, foram dadas pelos falsários do mundo invisível! Conhecemos alguns que pediram um procedimento infalível para tingir os cabelos; foi-lhes dada a fórmula de composição, espécie de enceramento que fez da cabeleira uma massa compacta, da qual o paciente teve todas as dificuldades do mundo para se livrar. Todas essas esperanças quiméricas deveram se desvanecer à medida que melhor se conheceu a natureza desse mundo e o objetivo real das visitas que nos fazem seus habitantes. Mas, então, para muita gente, qual era o valor desses Espíritos que não tinham nem mesmo o poder de proporcionar alguns pequenos milhões sem nada fazer? Não poderiam ser Espíritos. A essa febre passageira sucedeu a indiferença; depois, em alguns, a incredulidade. Oh! quantos prosélitos os Espíritos teriam feito se tivessem podido fazer vir o bem dormindo! Teriam adorado o próprio diabo se tivessem sacudido sua bolsa.
Ao lado desses sonhadores encontraram-se pessoas sérias que viram, nesses fenômenos, outra coisa além do vulgar observou atentamente, sondaram os recônditos desse mundo misterioso, e reconheceram facilmente, nesses fatos estranhos, senão novos, um fim providencial da mais elevada ordem. Tudo mudou de face quando se soube que esses mesmos Espíritos não são outros que aqueles que viveram na Terra, e dos quais, em nossa morte, iremos aumentar o número; que não deixaram, neste mundo, senão seu envoltório grosseiro, como a lagarta deixa a sua crisálida para se tornar borboleta. Não pudemos de isso duvidar, quando vimos nossos parentes, nossos amigos, nossos contemporâneos virem conversar conosco, e nos darem as provas irrecusáveis de sua presença e de sua identidade.
Considerando as variedades, tão numerosas, que a Humanidade apresenta, sob o duplo ponto de vista intelectual e moral, e a multidão que, cada dia, emigra da Terra para o mundo invisível repugna à razão crer que o estúpido Samoiedo, o feroz canibal, o vil criminoso, sofram na morte uma transformação que os coloque no nível do sábio e do homem de bem. Compreendeu-se, pois, que podia e devia haver Espíritos mais ou menos avançados, e, desde então, foram explicadas, muito naturalmente, essas comunicações tão diferentes, das quais umas se elevam até o sublime, ao passo que outras se arrastam na poeira. Compreendeu-se melhor ainda quando, deixando de crer nosso pequeno grão de areia perdido no espaço, o único habitado entre milhões de globos semelhantes, soube-se que, no Universo, não ocupa senão uma classe intermediária, vizinha do mais baixo escalão; que haveria, pois, consequentemente, seres mais avançados que os mais avançados entre nós, e outros ainda mais atrasados do que os nossos selvagens. Desde então, o horizonte intelectual e moral se estendeu, como ocorreu com o nosso horizonte terrestre quando se descobriu a quarta e a quinta partes do mundo; a força e a majestade de Deus, ao mesmo tempo, se engrandeceram aos nossos olhos, do finito ao infinito. Desde então, também foram explicadas as contradições na linguagem dos Espíritos, porque compreendeu-se que, seres inferiores em todos os pontos, não poderiam nem pensar e nem falar como seres superiores; que não poderiam, por consequência, nem tudo saber, nem tudo compreender, e que Deus deveria reservar unicamente aos seus eleitos o conhecimento dos mistérios que a ignorância não poderia alcançar.
A escala espírita, segundo os próprios Espíritos e a observação dos fatos, nos dá, pois, a chave de todas as aparentes anomalias da linguagem dos Espíritos. É preciso, por hábito, chegar a conhecê-los, por assim dizer, à primeira vista, e poder lhes assinalar a classe segundo a natureza de suas manifestações; é preciso poder dizer, se necessário, a um que é mentiroso, a outro que é hipócrita, a este que é mau, àquele que é engraçado, etc., sem se deixar prender nem à sua arrogância, nem à sua fanfarrice, nem às suas ameaças, nem aos seus sofismas, nem mesmo às suas lisonjas; é o meio de afastar essa turba que pulula, sem cessar, ao nosso redor, e que se afasta quando não se sabe atrair, para si, senão Espíritos verdadeiramente bons e sérios, assim como fazemos com relação aos vivos. Esses seres ínfimos estarão sempre devotados à ignorância e ao mal? – Não, porque essa parcialidade não estaria nem segundo a justiça, nem segundo a bondade do Criador, que proveu à existência e ao bem-estar do menor inseto. Por uma sucessão de existências, é que se elevam e se aproximam dele, em se melhorando. Esses seres inferiores não conhecem Deus senão de nome; não o veem e não o compreendem, do mesmo modo que o último dos camponeses, no fundo de suas urzes, não vê e não compreende o soberano que governa o país que habita.
Se se estudar com cuidado o caráter de cada uma das classes de Espíritos, se conceberá, facilmente, como ocorre que sejam incapazes de nos fornece notícias exatas sobre o estado de seu mundo. Considerando-se, por outro lado, que há os que, por sua natureza, são levianos, mentirosos, zombeteiros, malfazejos, que outros estão, ainda, imbuídos de ideias e de preconceitos terrestres, compreender-se-á que, em suas relações conosco, podem se divertir às nossas custas, induzir-nos conscientemente em erro por malícia, afirmar o que não sabem, dar-nos pérfidos conselhos, ou mesmo se enganarem, de boa-fé, julgando as coisas sob o seu ponto de vista. Citemos uma comparação.
Suponhamos que uma colônia de habitantes da Terra encontre, um belo dia, o meio de ir se estabelecer na Lua; suponhamos essa colônia composta de diversos elementos da população do nosso globo, desde o Europeu mais civilizado ao selvagem australiano. Eis, sem dúvida, os habitantes da Lua em grande comoção, arrebatados em poderem obter, junto de seus novos habitantes, notícias precisas sobre o nosso planeta, que alguns supunham habitado, mas sem disso terem a certeza, porque entre eles também, há, sem dúvida, pessoas que se creem os únicos seres do Universo. Escolhem-se os recém-chegados, interrogam-nos, e os sábios se apressam em publicar a história física e moral da Terra. Como essa história não seria autêntica, uma vez que vão obtê-la de testemunhas oculares? Um deles recolhe em sua casa um Zelandês que lhe ensina que, neste mundo, é um banquete comer homens, e que Deus permite, uma vez que sacrificam as vítimas em sua honra. Com outro, é um moralista filósofo que lhe fala de Aristóteles e de Platão, e lhe diz que a antropofagia é uma abominação, condenada por todas as leis divinas e humanas.
Aqui é um muçulmano que não come homens, mas que diz buscar sua salvação matando o maior número possível de cristãos; aqui é um cristão que diz que Maomé é um impostor; mais longe, um Chinês, que trata todos os outros de bárbaros, dizendo que, quando há muitas crianças, Deus permite jogá-las no rio; um boêmio traça o quadro da vida dissoluta das capitais; um anacoreta prega a abstinência e as modificações; um faquir indiano se atormenta o corpo impondo-se, durante vários anos, para se abrir as portas do céu, sofrimentos perto dos quais as privações de nossos piores cenobitas constituem sensualidade. – Vem em seguida um bacharel e diz que é a Terra que gira e não o Sol; um camponês que diz que o bacharel é mentiroso porque ele vê o Sol se elevar e se pôr, um Senegalês diz que faz muito calor; um Esquimó, que o mar é uma planície de gelo e que não se viaja senão de trenó. A política não ficou atrás; uns gabam o regime absolutista; outros a liberdade; tal diz que a escravidão é contra à Natureza, e que todos os homens são irmãos, filhos de Deus; tal outro, que as raças são feitas para a escravidão, e são bem mais felizes do que no estado livre etc. Creio os selenitas bem embaraçados para comporem uma história física, política, moral e religiosa do mundo terrestre, com semelhantes documentos. Talvez, pensam alguns, encontrarão mais unidade entre os sábios; interroguemos esse grupo de doutores. Ora, um deles, médico da Faculdade de Paris, centro das luzes, diz que todas as doenças têm por princípio um sangue viciado, é preciso renová-lo, e, por isso, sangrar em qualquer estado de causa. Estais em erro, meu sábio confrade, replica um segundo: o homem não tem nunca muito sangue; tirá-lo, é tirar-lhe a vida; o sangue está viciado, convenho; o que se faz quando um vaso está sujo?
Ninguém o quebra, mas limpa-o; então purgai, purgai, purgai até a extinção. Um terceiro, tomando a palavra: Senhores, vós, com vossas sangrias, matais os doentes; vós, com vossas purgações, os envenenais; a Natureza é mais sábia que nós; deixai-a fazer e esperemos. – É isso, replicam os dois primeiros, se matamos nossos doentes, vós, vós os deixais morrer. A disputa começa a esquentar quando um quarto, tomando à parte um selenita, levando-o à esquerda, lhe diz: Não os escuteis, são todos ignorantes, verdadeiramente, não sei porque estão na Academia. Segui bem meu raciocínio: todo doente é fraco; portanto, há enfraquecimento de órgãos; isso é a lógica pura, ou não a conheço; portanto, é preciso dar-lhe o tom; para isso não tenho senão um remédio: a água fria, a água fria e não saio daí. – Curais todos os vossos doentes? – Sempre que a doença não é mortal. – Com um procedimento tão infalível, estais, sem dúvida, na Academia?
Coloquei-me três vezes entre eles. Pois bem! acreditais em mim? me repeliram sempre, esses pseudo-sábios, porque compreenderam que os teria pulverizado com minha água fria. – Senhor selenita, disse um novo interlocultor, levando-o à direita: vivemos numa atmosfera de eletricidade; a eletricidade é o verdadeiro princípio da vida; aumentando-a quando não é o bastante, tirando-a quando há demais; neutralizar os fluidos contrários, uns pelos outros; eis todo o segredo. Com meus aparelhos faço maravilhas: lede meus anúncios e vereis!
(1)((1) O leitor compreenderá que nossa crítica não leva senão ao exagero em todas as coisas. Há de bom em tudo, o erro está no exclusivismo que o sábio judicioso sabe sempre evitar. Evitamos com todo cuidado, confundir os verdadeiros sábios, com os quais a Humanidade se honra a justo título, com aqueles que exploram suas idéias sem discernimento; é daqueles que queremos falar. Nosso objetivo é unicamente demonstrar que a própria ciência oficial não está isenta de contradições.)
– Não acabaríamos mais, se quiséssemos relacionar todas as teorias contrárias que foram, alternativamente, preconizadas sobre todos os ramos do conhecimento humano, sem excetuar as ciências exatas; mas foi, sobretudo, nas ciências metafísicas que o campo foi aberto às doutrinas mais contraditórias. Quando um homem de espírito e de juízo (por que não os haveria na Lua?) compara todas essas narrações incoerentes, delas tira esta conclusão muito lógica: que na Terra há países quentes e países frios; que, em certos continentes, os homens se entredevoram; que, em outros, matam aqueles que não pensam como eles, e tudo para a maior glória da sua divindade; que cada um, enfim, fala segundo os seus conhecimentos, e gaba as coisas do ponto de vista de suas paixões e de seus interesses. Em definitivo, que crera de preferência? Pela linguagem se reconhecerá, sem dificuldade, o verdadeiro sábio do ignorante, o homem sério do homem leviano, aquele que julgou daquele que raciocinou em falso; não confundirá mais os bons e os maus sentimentos, a elevação com a baixeza, o bem com o mal, e se dirá: Devo tudo ouvir, tudo escutar, porque na narração, mesmo do mais bruto, posso aprender alguma coisa; mas minha estima e minha confiança não a adquirem senão aquele que delas se mostre digno. Se essa colônia terrena quer implantar seus costumes e seus usos na nova pátria, os sábios repelirão os conselhos que lhes parecerem perniciosos, e se confiarão àqueles que lhes pareçam os mais esclarecidos, em quem não vejam nem falsidade, nem mentiras, e nos quais, ao contrário, reconhecerão o amor sincero ao bem. Faríamos de outro modo se uma colônia de selenitas viesse a se abater sobre a Terra? Pois bem! o que está dado aqui como uma suposição, é uma realidade com relação aos Espíritos que, se não vêm entre nós em carne e osso, não estão menos presentes de um modo oculto, e nos transmitem os seus pensamentos pelos seus intérpretes, quer dizer, pelos médiuns. Quando aprendermos a conhecê-los, os julgaremos pela sua linguagem, pelos seus princípios, e suas contradições nada mais terão que deva nós surpreender, porque veremos que uns são sábios e outros ignorantes; que alguns estão colocados muito baixo, ou são ainda muito materiais para compreenderem e apreciarem as coisas em uma ordem elevada; tal é o homem que, ao pé da montanha, não vê senão alguns passos de si, ao passo que aquele que está no cume descobre um horizonte sem limites.
A primeira fonte de contradições está, pois, no grau do desenvolvimento intelectual e moral dos Espíritos; mas está também em outras sobre as quais é útil chamar a atenção. Passamos, dir-se-á, sobre a questão dos Espíritos inferiores; uma vez que assim é, compreende-se que possam se enganar por ignorância. Mas, como ocorre que Espíritos superiores estejam em dissidência? Que tenham, em um país, uma linguagem diferente daquela que têm em outro? Que o mesmo Espírito, enfim, não esteja sempre de acordo consigo mesmo?
A resposta a esta pergunta repousa sobre o conhecimento completo da ciência espírita, e essa ciência não se pode ensinar com algumas palavras, porque ela é tão vasta quanto todas as ciências filosóficas. Não é ela adquirida, como todos os outros ramos do conhecimento humano, senão pelo estudo e a observação. Não podemos repetir aqui tudo o que publicamos sobre este assunto; a ele remetemos, pois, nossos leitores, limitando-nos a um simples resumo. Todas essas dificuldades desaparecem para quem lança, sobre esse terreno, um olhar investigador e sem prevenção.
Os fatos provam que os Espíritos impostores se vestem, sem escrúpulo, de nomes reverenciados para melhor recomendar suas torpezas, o que se faz, também algumas vezes, mesmo entre nós. Do fato de que um Espírito se apresente sob um nome qualquer, isso não é razão para que seja realmente quem pretende ser mas há, na linguagem dos Espíritos sérios, um cunho de dignidade com o qual não se poderia equivocar: ela não respira senão a bondade e a benevolência, e jamais se desmente. A dos Espíritos impostores, ao contrário, por algum verniz que a enfeite, deixa sempre, como se diz vulgarmente, adivinhar seu verdadeiro caráter. Não há, pois, nada de espantoso que, “sob nomes usurpados, Espíritos inferiores ensinem coisas disparatadas. Cabe ao observador procurar conhecer a verdade, e poderá, sem dificuldade, se quiser se compenetrar do que dissemos a esse respeito em nossa Instrução Prática (hoje O Livro dos Médiuns).
Esses mesmos Espíritos lisonjeiam em geral os gostos e as inclinações das pessoas que sabem de caráter bastante fraco e bastante crédulo para escutá-los; fazem ecos de seus preconceitos e mesmo de suas ideias supersticiosas, e isso por razão muito simples, que é de que os Espíritos são atraídos por sua simpatia, pelo Espírito de pessoas que os chamam ou que os escutam com prazer.
Quanto aos Espíritos sérios, igualmente, podem ter uma linguagem diferente segundo as pessoas, mas isso com outro objetivo. Quando julgam útil, e para melhor convencerem, evitam chocar, muito bruscamente, as crenças enraizadas, e se exprimem segundo os tempos, os lugares e as pessoas. Por isso, nos dizem, “não falaremos a um chinês, ou a um maometano, como a um cristão ou ao um homem civilizado, por que não seríamos por eles escutados. Podemos, pois, algumas vezes, parecer entrar na maneira de ver das pessoas, para conduzi-las, pouco a pouco, ao que queremos, quando isso é possível sem alterar as verdades essenciais.” Não é evidente que, se um Espírito quer levar um muçulmano fanático a praticar a sublime máxima do Evangelho: “não façais aos outros o que não gostaríeis que vos fosse feito,” seria repelido se dissesse que foi Jesus quem lhe ensinou? Ora, o que vale mais, deixar o muçulmano em fanatismo ou torná-lo bom dizendo-lhe, momentaneamente, crer que foi Alá quem falou? É um problema cuja solução deixamos ao julgamento do leitor. Quanto a nós, parece-nos que, uma vez tomando-o mais doce e mais humano, ele será menos fanático e mais acessível à ideia de uma nova crença, do que se lhe fosse imposta pela força.
Há verdades que, para serem aceitas, não podem ser lançadas à face sem reserva Quantos males os homens teriam evitado se tivessem sempre agido assim!
Os Espíritos, como se vê, também fazem uso de precauções oratórias, mas, nesse caso, a divergência está no acessório e não no principal. Levar os homens ao bem, destruir o egoísmo, o orgulho, o ódio, a inveja, o ciúme, ensiná-los a praticarem a verdadeira caridade cristã, para eles, é o essencial; o resto virá em tempo útil, e pregam tanto pelo exemplo quanto pelas palavras quando são Espíritos verdadeiramente bons e superiores; tudo neles respira a doçura e a benevolência; a irritação, a violência, a grosseria e a dureza da linguagem, fosse mesmo para dizer boas coisas, jamais são o sinal de uma superioridade real. Os Espíritos verdadeiramente bons não se irritam nem se enfurecem nunca: se não são escutados, vão-se; eis tudo.
Há, ainda, duas causas de contradições aparentes que não devemos passar em silêncio. Os Espíritos inferiores, como dissemos em muitas ocasiões, dizem tudo o que querem sem se importarem com a verdade; os Espíritos superiores se calam ou se recusam a responder quando alguém lhes faz uma pergunta indiscreta, ou sobre a qual não lhes é permitido se explicarem. Nesse caso, disseram-nos, “não insistais nunca, porque são os Espíritos levianos que respondem e que vos enganam, credes que somos nós, e podeis pensar que nos contradizemos. Os Espíritos sérios não se contradizem nunca; sua linguagem é sempre a mesma, com as mesmas pessoas. Se um deles diz coisas contrárias sob um mesmo nome, estejais seguros de que esse não é o mesmo Espírito que fala ou, pelo menos, que não é um bom Espírito. Reconhecereis os bons pelos princípios que ensinam, porque todo Espírito que não ensina o bem não é um bom Espírito, e deveis repeli-lo.”
O mesmo Espírito, querendo dizer a mesma coisa em dois lugares diferentes, não se servirá literalmente das mesmas palavras, para ele o pensamento é tudo; mas o homem, infelizmente, é mais levado a se prender à forma do que ao fundo; é a forma que ele interpreta, frequentemente, ao capricho de suas ideias e de suas paixões, e dessa interpretação podem nascer as contradições aparentes, que também têm a sua fonte na insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas extra-humanas. Estudemos o fundo, escrutemos o pensamento íntimo, e veremos, muito frequentemente, a analogia lá onde um exame superficial nos fazia ver um disparate.
As causas de contradições na linguagem dos Espíritos podem, pois, resumir-se assim:
1º O grau de ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais se dirige;
2° A fraude de Espíritos inferiores que podem, tomando nomes emprestados, dizer, por malícia, ignorância ou maldade, o contrário daquilo que disse alhures o Espírito do qual usurparam o nome;
3º Os defeitos pessoais do médium, que podem influir sobre a pureza das comunicações, alterar ou mascarar o pensamento do Espírito;
4º A insistência para obter uma resposta que um Espírito se recusa a dar, e que, então, é dada por um Espírito inferior;
5º A vontade do próprio Espírito, que fala segundo os tempos, os lugares e as pessoas, e pode julgar útil nem tudo dizer a todo mundo;
6º A insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;
7º A interpretação que cada um pode dar de uma palavra ou de uma explicação, segundo suas ideias, seus preconceitos, ou o ponto de vista sob o qual vê a coisa.
Essas são igualmente dificuldades das quais não se triunfa senão por um estudo longo e assíduo; também jamais dissemos que a ciência espírita fosse uma ciência fácil. O observador sério, que aprofunda todas as coisas com maturidade, paciência e perseverança, haure uma multidão de nuanças delicadas que escapam ao observador superficial. É por esses detalhes íntimos que se inicia no segredo desta ciência. A experiência ensina a conhecer os Espíritos como ensina a conhecer os homens.
Acabamos de considerar as contradições do ponto de vista geral. Em outros artigos, trataremos dos pontos especiais mais importantes.