A tarefa de educar é a mais importante que podemos exercer na atual encarnação. Primeiro, educando-nos, ou seja, realizando esforços para melhorarmo-nos, pois somente educa quem, de fato, consegue exemplificar em palavras e atos o que ensina.
Nesta entrevista, apresentamos uma conversa que realizamos com o mestre Pestalozzi, naturalmente utilizando-nos de seus escritos para montagem do texto, na verdade a Carta de Stans, documento muito importante para a educação, onde ele revela suas ideias, seus princípios e sua metodologia de trabalho. A Carta de Stans é verdadeiro documento pedagógico, onde temos Pestalozzi com todo sentimento, com todo ardor pela educação, e onde encontramos a base de tudo o que ele viria posteriormente a desenvolver no Instituto de Iverdon. Vamos à entrevista:
REE – A política exercida pelos homens pode mudar o cenário da educação?
Pestalozzi – Nunca acreditei na exterioridade da forma política, mas acredito que alguns conceitos trazidos pelos políticos à ordem do dia e alguns interesses suscitados, podem acarretar aqui e ali alguma coisa verdadeiramente boa para a humanidade.
REE – Isso quer dizer que ao falar da educação popular, não entende que ela deva ser feita pelo governo?
Pestalozzi – Trouxe à baila, o quanto pude, meus velhos anseios de educação popular e confiei-os, primorosamente, com toda a envergadura em que os concebia, ao Diretório (governo provisório da Suíça). Eu e Legrand (membro do Diretório) concordávamos que a formação popular podia ter maior eficácia, atingindo um número apreciável das crianças mais pobres, dando-lhes educação completa, se essas crianças não fossem retiradas do seu meio, mas se tornassem, ao contrário, por meio da educação, muito mais atadas a ele. O governo me apoiou quando da tragédia de Unterwalden (1798), e pude ali instalar um Instituto (Orfanato de Stans), mas logo perdi o apoio governamental, era preciso investir o dinheiro em outras ações, e não na educação.
REE – Essa experiência foi dramática, educando crianças órfãs, pobres, abandonadas, vítimas da guerra…
Pestalozzi – A completa ausência de formação escolar era o que menos me preocupava. Confiante nas faculdades da natureza humana, que Deus colocou também nas crianças mais pobres e mais desprezadas, eu não tinha apenas aprendido em experiências anteriores que essa natureza desdobra as mais formosas potencialidades e capacidades em meio ao lodo da rudeza, do embrutecimento e da ruína, mas via nas minhas próprias crianças irromper essa força viva, mesmo em meio a toda sua brutalidade. Eu sabia o quanto a própria miséria e as necessidades da vida contribuem para mostrar aos homens a relação essencial das coisas, para desenvolver a mente sadia e o bom senso e para estimular energias – que parecem estar no fundo da existência, cobertas de imundície, mas que, se limpas do lodo ao redor, brilham intensamente.
REE – E qual era seu objetivo nesse instituto, na verdade um orfanato de crianças pobres?
Pestalozzi – Elevar as crianças da lama e transplantá-las para um ambiente simples, mas puro, doméstico, onde as relações fossem as de uma família. Eu estava convencido de que apenas isso era preciso, e essas disposições naturais despontariam num sentido elevado, com energia superior, para se provarem capazes de tudo o que satisfaz o espírito e corresponde à mais profunda tendência do coração.
REE – E o senhor teve apoio acadêmico?
Pestalozzi – Não havia ninguém nessa terra de Deus que quisesse partilhar o meu ponto de vista a respeito das aulas e da orientação das crianças. Quanto mais instruída e cultivada era a maior parte das pessoas, menos me entendiam e menos se mostravam capazes de se firmar, nem ao menos teoricamente, nos pontos inciais a que eu procurava retornar. Todas as suas ideias a respeito da organização, das necessidades do empreendimento, etc., eram totalmente estranhas às minhas. Resistiam sobretudo à ideia e à possibilidade de não se recorrer a nenhum recurso artificial, de se usar apenas como recurso educativo a natureza à volta das crianças, as necessidades diárias e sua atividade, sempre animada.
REE – Pelo que entendemos o senhor usou o Orfanato de Stans como um laboratório para provar a certeza de sua teoria. Foi isso mesmo?
Pestalozzi – Eu pretendia provar, com minha experiência, que as vantagens da educação familiar devem ser reproduzidas pela educação pública e que a segunda só tem valor para a humanidade se imitar a primeira.
REE – E como o senhor define o ensino escolar?
Pestalozzi – Aos meus olhos, ensino escolar que não abranja todo o espírito, como exige a educação do homem, e que não seja construído sobre a totalidade viva das relações familiares, conduz apenas a um método artificial de encolhimento de nossa espécie.
REE – Ou seja, mais do que o ensino importante é a educação? E os professores devem ser verdadeiros pais?
Pestalozzi – Toda a boa educação exige que o olho materno acompanhe, dentro do lar, a cada dia, a cada hora, toda a mudança no estado de alma de seu filho, lendo-o com segurança nos seus olhos, na sua boca, na sua fronte. E exige essencialmente que a força do educador seja pura força paterna, animada pela presença, em toda a extensão, das circunstâncias familiares.
REE – E foi assim que o senhor fez no instituto?
Pestalozzi – Sobre isso eu construí. Que o meu coração preso às crianças, que a sua felicidade era a minha felicidade; a sua alegria, a minha alegria; elas deviam ler isso na minha fronte; perceber isso nos meus lábios, desde manhã cedinho até tarde da noite, a cada instante do dia.
REE – Como discípulo de Rousseau, o senhor sempre acreditou no desenvolvimento da bondade da criança. No processo educacional como isso pode ser trabalhado?
Pestalozzi – O homem quer o bem com tanto gosto, a criança tem tanto prazer em abrir os ouvidos para o bem! Mas ela não o quer por causa do professor, ela não o quer por causa do educador, ela o quer por si mesma. O bem para o qual o professor deve conduzi-la, não deve ter nenhuma relação com os caprichos e as paixões do professor. É preciso que a natureza da coisa seja boa em si e pareça boa aos olhos da criança. Ela precisa sentir a necessidade da vontade do professor, conforme sua situação e suas carências, antes que ela queira a mesma coisa. Ela quer tudo o que a torna amável, tudo o que lhe traz reconhecimento, tudo o que excita nela grandes expectativas, tudo o que nela gera energias, que a faça dizer: “eu sei fazer”. Mas toda essa vontade não é produzida por palavras, e sim pelos cuidados que cercam a criança e pelos sentimentos e forças gerados por esses cuidados. As palavras não produzem a coisa em si, mas apenas o seu significado.
REE – Desde o início do trabalho no Instituto de Stans sua teoria foi aprovada pela prática?
Pestalozzi – Não. O primeiro efeito dessa teoria e dessa prática, no geral, não foi nada satisfatório, e não poderia sê-lo. As crianças não acreditavam tão facilmente no meu amor. Acostumadas à ociosidade, a uma vida de abandono e embrutecimento, se queixavam de tédio e não queriam ficar.
REE – Nem todas as crianças eram órfãs. Os pais apoiavam seu trabalho?
Pestalozzi – O estado doentio de várias crianças durou longo tempo, e era agravado pela influência dos pais. Retiravam as crianças do instituto e a levavam para a rua, para esmolar. Os pais pensaram logo que me faziam um favor pessoal se seus filhos ficassem, pois acreditavam que aceitara esse trabalho por miséria, por não ter outra coisa melhor a fazer.
REE – Quais foram suas primeiras ações educativas no Orfanato de Stans?
Pestalozzi – Minha meta principal direcionou-se, antes de mais nada, a tornar as crianças irmãs, cultivando os primeiros sentimentos da vida em comum e desenvolvendo suas primeiras faculdades nesse sentido. Com isso, minha intenção era fundir a casa no espírito simples de uma grande comunidade familiar e, sobre a base de tal relacionamento e da predisposição por ele gerada, suscitar em todos um sentimento de justiça e moralidade.
REE – E como conseguiu cultivar esse sentimento?
Pestalozzi – Eu despertava os sentimentos das virtudes antes que se fizessem discursos sobre elas, pois considerava prejudicial tratar com as crianças de alguma coisa enquanto não soubessem do que falavam. Além disso, ligava esses sentimentos a exercícios de autodomínio, para lhes dar imediata aplicação na conduta da vida. Essas experiências me ensinaram que o habituar-se simplesmente às atitudes de uma vida virtuosa faz mais por uma verdadeira educação da capacidade moral que todos os ensinos e pregações não assentados sobre esses recursos.
Revista Educação Espírita – Ano 1 – Número 2