Autores: Ely Matos e Ricardo Baesso de Oliveira
A dinâmica do discurso, as técnicas de comunicação e as formas de apresentar e disseminar ideias retratam seu tempo e evoluem como todas as coisas. Assim, é necessário refletirmos se o ensino e a divulgação do Espiritismo têm-se adequado à linguagem da nova sociedade, por alguns denominada como pós-industrial ou pós-moderna.
Buscando promover meditações sobre o tema, apresentamos neste texto algumas propostas, com o objetivo de motivar reflexões. O cuidado com a forma de apresentação da Doutrina Espírita remonta a Allan Kardec. O codificador do Espiritismo registrou, na primeira parte de O Livro dos Médiuns (O método), a necessidade de avaliarmos a maneira onde melhor se ministre o ensino da Doutrina Espírita, para levar com mais segurança à convicção.
Nossas propostas se referem aos itens seguintes e são desenvolvidas ao longo do texto:
- Formato da apresentação
- Conteúdo do discurso
- As lições do Evangelho
- Rigor nas informações
- Kardec como prioridade
- Obras subsidiárias
- Uso da razão
- Responsabilidade com a vida
- A questão do mérito
- Indulgência com o próximo
- Linguagem otimista
- Questões sociais
- Conhecimento limitado
- O perigo do ufanismo
- Relacionamento com as ciências e religiões
- A diversidade dos espíritas
Formato da apresentação
As exposições espíritas devem ser mais curtas, com espaço para a participação ativa do público. Os participantes não devem apenas propor perguntas, mas também apresentar ideias e comentários. Um espaço ativo de fala motiva o ouvinte a expressar seu pensamento sem receio de crítica ou zombaria. O que fala precisa ouvir para conhecer melhor. O que ouve tem sempre o que dizer e sua fala torna o diálogo mais dinâmico, o que maximiza a evolução do conhecimento.
O Livro dos Médiuns, item 18
Não constitui ensino unicamente o que é dado do púlpito ou da tribuna. Há também o da simples conversação. Ensina todo aquele que procura persuadir a outro, seja pelo processo das explicações, seja pelo das experiências.
Conteúdo do discurso
O discurso (tanto escrito quanto falado) deve ser mais simples e objetivo, menos formal, menos rebuscado, com palavras e termos adequados ao público. Longas descrições evangélicas ou relatos extensos de fatos e histórias, que ocupam longo tempo da fala, devem ser evitados. É preciso avaliar com cuidado a necessidade de se apresentar dados históricos, datas e citações clássicas, que demonstram erudição, mas acrescentam quase nada ao esclarecimento coletivo.
O Livro dos Espíritos, item 627
O ensino dos Espíritos tem que ser claro e sem equívocos, para que ninguém possa pretextar ignorância e para que todos o possam julgar e apreciar com a razão.
O Livro dos Médiuns, item 267
Os Espíritos superiores se exprimem com simplicidade, sem prolixidade. Têm o estilo conciso, sem exclusão da poesia das ideias e das expressões, claro, inteligível a todos, sem demandar esforço para ser compreendido. Têm a arte de dizer muitas coisas em poucas palavras, porque cada palavra é empregada com exatidão.
As lições do Evangelho
As lições do Evangelho são complementares ao ensino moral da Doutrina Espírita. Assim como fez Kardec, é preciso transpor Jesus da Palestina dos primórdios da era cristã e trazê-lo para a atualidade, colocando-o junto ao homem atormentado e pouco esclarecido de nossos dias. As lições, passagens e parábolas do Evangelho devem ser contextualizadas e explicadas a partir dos princípios fundamentais do Espiritismo, como fez Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo.
O Evangelho segundo o Espiritismo – Introdução
O essencial era pô-lo [Jesus] ao alcance de todos, mediante a explicação das passagens obscuras e o desdobramento de todas as consequências, tendo em vista a aplicação dos ensinos a todas as condições da vida.
O Livro dos Espíritos, item 627
Jesus empregava amiúde, na sua linguagem, alegorias e parábolas, porque falava de conformidade com os tempos e os lugares. Faz-se mister agora que a verdade se torne inteligível para todo mundo.
Rigor nas informações
É preciso cuidado e rigor ao passar informações de outros campos de estudo e de outras disciplinas, tais como a Biologia, a Psicologia, a Antropologia, a Física, entre outras. Devemos evitar a apresentação de dados equivocados ou desatualizados, extraídos de fontes não confiáveis. Em caso de dúvidas, é preferível omitir a informação: não podemos, nos estudos espíritas, apresentar informações incorretas.
O Livro dos Espíritos, Introdução, item 13
O estudo do Espiritismo é imenso; interessa a todas as questões da metafísica e da ordem social; é um mundo que se abre diante de nós. Será de admirar que o efetuá-lo demande tempo, muito tempo mesmo?
Revista Espírita, dezembro/1867
[…] a luz não pode tornar-se sombra; a verdade não pode tornar-se erro. (Arago)
Revista Espírita, novembro/1859
[…] tais publicações têm o inconveniente de induzir em erro as pessoas que não estão em condições de examiná-las e discernir o verdadeiro do falso. O erro de certos autores é escrever sobre um assunto antes de tê-lo aprofundado suficientemente.
Kardec como prioridade
É necessário apresentar Kardec de forma prioritária, rigorosa, atenciosa e cuidadosa. Porém, é preciso observar o contexto científico e filosófico de sua época; muitas análises feitas por Kardec são datadas, ou seja, consideram o conhecimento e a cultura existentes na Europa em meados do século XIX. É importante também considerar as dificuldades vivenciadas por ele no contato com médiuns inexperientes e Espíritos de variada natureza evolutiva.
Obras póstumas – parte II – A minha primeira iniciação no Espiritismo
Conduzi-me, pois, com os Espíritos, como houvera feito com homens. Para mim, eles foram, do menor ao maior, meios de me informar e não reveladores predestinados. Tais as disposições com que empreendi meus estudos e neles prossegui sempre. Observar, comparar e julgar, essa a regra que constantemente segui.
Tendo-me as circunstâncias posto em relação com outros médiuns, sempre que se apresentava ocasião eu a aproveitava para propor algumas das questões que me pareciam mais espinhosas. Foi assim que mais de dez médiuns prestaram concurso a esse trabalho.
Obras subsidiárias
Ao apresentar ideias e conceitos de obras subsidiárias (mediúnicas ou não), é preciso compreender que cada uma delas retrata o pensamento do próprio autor. No caso de obras mediúnicas, sabemos que a mensagem sofre natural influência do médium e que o autor espiritual também é influenciado pela cultura e conhecimento de sua época. Elas podem ser estudadas, mas não possuem autoridade doutrinária em si mesma.
O Evangelho segundo o Espiritismo – Introdução
[…] com relação a tudo o que seja fora do âmbito do ensino exclusivamente moral, as revelações que cada um possa receber terão caráter individual, sem cunho de autenticidade; que devem ser consideradas opiniões pessoais de tal ou qual Espírito e que imprudente fora aceitá-las e propagá-las levianamente como verdades absolutas.
Uso da razão
Devemos nos eximir de apresentar informações que firam a razão, que remetam a reencarnações passadas de personalidades conhecidas, que venham de relatos “mediúnicos” fantasiosos e que nada acrescentam ao conhecimento espírita.
O Livro dos Espíritos, conclusão, item VI
Sua força [do Espiritismo] está na sua filosofia, no apelo que dirige à razão, ao bom senso. Na antiguidade, era objeto de estudos misteriosos, que cuidadosamente se ocultavam do vulgo. Hoje, para ninguém tem segredos. Fala uma linguagem clara, sem ambiguidades. Nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Quer ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos de fazer-se que os homens conheçam a verdade. Longe de se opor à difusão da luz, deseja-a para todo o mundo. Não reclama crença cega; quer que o homem saiba por que crê. Apoiando-se na razão, será sempre mais forte do que os que se apoiam no nada.
O Livro dos Médiuns, item 267
Toda heresia científica notória, todo princípio que choque o bom senso, aponta a fraude.
A previsão de qualquer acontecimento para uma época determinada é indício de mistificação.
Responsabilidade com a vida
Todos nós temos imensa responsabilidade em relação a todos os seres vivos do planeta e com a condição de habitabilidade da Terra. Se a progressão espiritual implica a passagem pelos organismos menos complexos da natureza, e se os animais estão destinados, um dia, a fazer parte da humanidade, todos temos o dever de auxiliar o cumprimento dessa lei natural, evitando tudo o que possa contrariá-la.
O Livro dos Espíritos, item 132
[…] por uma admirável lei da Providência, tudo se encadeia, tudo é solidário na Natureza.
A questão do mérito
Ao conceito de mérito pessoal, devemos associar sempre o de mérito coletivo: a evolução é solidária. Ninguém cai sozinho! Ninguém se ergue sem apoio! Tudo o que favorece ou retarda a evolução de outrem e a evolução geral favorece ou retarda a evolução de qualquer membro da coletividade.
O Livro dos Espíritos, item 132
[…] concorrendo para a obra geral, ele próprio se adianta.
O Livro dos Espíritos, item 889
[…] se uma boa educação moral lhes tivesse ensinado a praticar a Lei de Deus, não teriam caído nos excessos que ocasionaram a sua perdição. É disso, sobretudo, que depende a melhoria do vosso globo.
Indulgência com o próximo
Precisamos desenvolver uma fala mais compassiva ante os que “caíram”. Nenhum de nós dispõe de recursos mentais para ajuizar corretamente sobre a real responsabilidade de cada indivíduo em suas escolhas e atitudes. Nós não dispomos de uma adequada compreensão das motivações do ato, de seus agravantes e atenuantes.Precisamos sempre lembrar que no mundo há muito mais ignorância do que culpabilidade.
O Evangelho segundo o Espiritismo – cap. 10, item 13
“Atire-lhe a primeira pedra aquele que estiver isento de pecado”, disse Jesus. Essa sentença faz da indulgência um dever para nós outros, porque ninguém há que não necessite, para si próprio, de indulgência. Ela nos ensina que não devemos julgar com mais severidade os outros, do que nos julgamos a nós mesmos, nem condenar em outrem aquilo de que nos absolvemos. Antes de profligarmos a alguém uma falta, vejamos se a mesma censura não nos pode ser feita.
Linguagem esperançosa
Podemos evitar o uso de uma linguagem pessimista, focada no mal, nos vícios e paixões. As evidências de que a humanidade está melhorando moralmente estão indiscutivelmente estabelecidas. O discurso de que vivemos tempos onde os vícios e paixões predominam, além de apresentar um conceito equivocado, dissemina o pessimismo, que estimula um estado de espírito sombrio.
O Livro dos Espíritos, item 784
Bastante grande é a perversidade do homem. Não parece que, pelo menos do ponto de vista moral, ele, em vez de avançar, caminha aos recuos?
Enganas-te. Observa bem o conjunto e verás que o homem se adianta, pois que melhor compreende o que é mal, e vai dia a dia reprimindo os abusos.
O Livro dos Espíritos, conclusão, item IV
Desde que é incontestável o movimento progressivo, não há que duvidar do progresso vindouro.
Questões sociais
Há necessidade de desenvolver um discurso proativo, no que se refere às questões sociais. É preciso assumir profundo desprezo pelas desigualdades sociais e divisões fictícias da sociedade; podemos e devemos contribuir para a desaparição completa dos preconceitos de gênero, casta, religião, etnias e fronteiras. Como nos mostra o estudo espírita, a pobreza e a miséria são problemas humanos e a solução desta absurda e inaceitável condição social passa pelas mudanças no comportamento e nas instituições humanas.
Obras Póstumas – parte II – Futuro do Espiritismo
O Espiritismo é chamado a desempenhar imenso papel na Terra. Ele reformará a legislação ainda tão frequentemente contrária às leis divinas; retificará os erros da História.
O Livro dos Espíritos, conclusão, item IV
Quando, porém, conseguir a soma de gozos que o progresso intelectual lhe pode proporcionar, verificará que não está completa a sua felicidade. Reconhecerá ser esta impossível, sem a segurança nas relações sociais, segurança que somente no progresso moral lhe será dado achar.
O Livro dos Espíritos, conclusão, item VI
É exato que elas [ideias espíritas] se erguem contra os abusos que nascem do orgulho e do egoísmo. Mas, se é certo que desses abusos há quem aproveite, à coletividade humana eles prejudicam. A coletividade, portanto, será favorável a tais ideias, contando-se lhes por adversários sérios apenas os interessados em manter aqueles abusos.
Conhecimento limitado
Na apresentação do conhecimento espírita, é importante libertar-se da pretensão de tudo conhecer e da tentação de responder a todas as questões. Reconhecer a própria ignorância não apenas demonstra modéstia intelectual, mas dá confiabilidade ao discurso. É certo que há questões que o Espiritismo não pode responder de forma absoluta e definitiva. Constatar a incapacidade relativa de nossas faculdades atuais de saber e de compreender demonstra nobreza de caráter.
O Livro dos Médiuns, item 110
Longe estamos de considerar como absoluta e como sendo a última palavra a teoria que apresentamos. Novos estudos sem dúvida a completarão, ou retificarão mais tarde.
O perigo do ufanismo
Nós, espíritas, precisamos nos precatar contra o perigo do ufanismo. Muitos caminhos conduzem a Deus e o melhoramento da humanidade é um processo coletivo movido por forças distintas; o Espiritismo é mais uma destas forças. Acreditar ingenuamente que todos se tornarão espíritas no futuro é desconhecer a diversidade inerente dos seres humanos, nas suas experiências sociais, culturais e religiosas.
O Livro dos Espíritos, item 982
A crença no Espiritismo ajuda o homem a se melhorar […], mas ninguém diz que, sem ele, não possa ela ser conseguida.
Relacionamento com as ciências e religiões
O Espiritismo, enquanto campo que estuda o ser humano como um ser espiritual, não combate nem substitui as ciências e religiões existentes. Assim, é preciso cuidado ao apresentar o relacionamento do Espiritismo com estes outros movimentos humanos. A Doutrina Espírita tem um objeto e um método próprios de estudo – o Espírito e a mediunidade; assim não deve ser considerada nem “superior” nem “inferior” a outras ciências ou religiões. Pelo contrário, seu objetivo é apresentar conhecimentos que ampliem nosso entendimento sobre nós mesmos e nossa realidade.
O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 1 item 8
A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se.
A diversidade dos espíritas
Naturalmente o Espiritismo é um só, com uma unidade de princípios básicos que são apresentados claramente nas obras de Allan Kardec. No entanto, é preciso reconhecer que há uma diversidade muito grande entre os espíritas. Essa diversidade é natural, considerando as diferenças pessoais, sociais, culturais e intelectuais daqueles que estudam o Espiritismo. Reconhecer e respeitar esta diversidade é fundamental no discurso espírita, como caminho para diminuir as dissenções desnecessárias no movimento. Não se trata de aceitar pontos de vista antidoutrinários, mas de entender as diferentes interpretações (e práticas) dos pontos considerados doutrinários.
O Livro dos Espíritos, Conclusão, item VII
O Espiritismo se apresenta sob três aspectos diferentes: o das manifestações, o dos princípios e da filosofia que deles decorrem e o da aplicação desses princípios. Daí, três classes, ou, antes, três graus de adeptos: 1º) os que creem nas manifestações e se limitam a comprová-las; para esses, o Espiritismo e uma ciência experimental; 2º) os que lhe percebem as consequências morais; 3º) os que praticam ou se esforçam por praticar essa moral.
Conclusão
Certamente as propostas apresentadas não esgotam o tema. Muitas outras questões importantes podem ser levantadas e acreditamos que cada espírita, com a sua própria experiência, tem contribuições a oferecer neste sentido. Além disso, cada proposta poderia ser desenvolvida em várias direções.
Esperamos, no entanto, que estas ideias possam servir de ponto de partida para reflexões por todos que estão na tarefa de apresentar e compartilhar o excelente conhecimento espírita, bem como por todos que se dedicam ao estudo do Espiritismo.
O consolador – Ano 15 – N 746 e N 747 – Especial