Autora: Claudia Gelernter
Diálogo comum do cotidiano, nos dias atuais: Uma filha e sua mãe estão na cozinha, sentadas, comendo um delicioso pedaço de bolo, com leite e café. A criança, demonstrando certa angústia, comenta: “Mamãe, tenho medo de morrer”. De olhos arregalados e coração descompassado, a mãe bate três vezes na madeira da mesa e afirma, com voz firme: “Imagine, menina! Vire essa boca pra lá! Você tem uma vida inteira pela frente, não vai acontecer nada de mal com você!”.
A filha silencia e aprende, com esta atitude, três conceitos:
1. O assunto morte deve ser evitado.
2. A morte é algo distante, só acontece com os de longe ou quando estamos bem velhinhos.
3. Certos rituais, como, por exemplo, bater três vezes na mesa, pode ajudar a afastar a morte de nossas vidas.
Ou seja, a criança acabou de aprender três mentiras que possivelmente irá difundir para as próximas gerações.
Agora imaginemos que a prima da menina de nossa história veio a desencarnar dias após a cena descrita acima. Então, bastante aflita com aquela situação inusitada, a menina, chorando, pergunta: “Para onde foi a minha prima?” E a mãe, ansiosa, responde: “Não fique triste, querida… não chore! Ela está bem… ela se tornou uma estrelinha e estará para sempre brilhando no céu. À noite, iremos até a janela e poderemos vê-la”. Neste momento a menina aprendeu dois novos conceitos:
1. Não devemos expressar nossa tristeza por causa da morte de alguém.
2. Quem morre vira estrela, fica imóvel e brilha à noite. Nada de brincadeiras, nem bolo de chocolate, nem abraços da mãe. Acabou tudo. Sobrou apenas o brilho na noite escura…
Philippe Ariès, historiador francês, especialista da era medieval no ocidente conta-nos que, no passado, a morte era um evento público e social. Portanto, fazia parte da vida de todos, do cotidiano, sendo algo a ser pensado, refletido, elaborado. Naquela época os homens que pereciam devido a doenças ou mesmo pela guerra, conheciam a trajetória da própria morte – o ultimo suspiro era aguardado no leito, num evento previamente organizado pelo próprio moribundo. A família participava ativamente do processo de morrer de seu familiar; os rituais eram cumpridos com manifestações de tristeza e dor, inclusive pelas crianças.
O moribundo tinha direito de morrer entre as pessoas mais significativas, era assistido, e tinha, portanto, o que chamamos de uma ‘morte digna’, podendo fechar ciclos, falar de seus anseios, de seus desejos – caso tivesse tempo para isso.
Na era medieval, o terrível era a morte repentina, pois nesta situação tornava-se difícil, se não impossível, as homenagens (Paiva, 2011). Vivíamos uma intensa e profunda representação da morte sem culpa – a morte era domesticada, familiar, quase encenada. Amigos e parentes do morto reuniam-se para assisti-lo em sua hora derradeira – “durante séculos a morte era um espetáculo público que ninguém pensaria em esquivar-se” (Ariès, 2003, p.22).
Falar sobre a morte, hoje em dia, é algo temeroso, antiquado
As pessoas reconheciam a morte de si mesmo. Porém, isso se transformou. Do final do século XVIII em diante a morte passou a ser a ‘morte do outro’. Passou a ser vista como uma violação, uma ruptura, um fracasso, um interdito e, na impossibilidade de impedi-la, decidimos silenciá-la. Passamos a colocá-la do lado de fora da vida, algo a ser escondido, camuflado. Sendo assim, falar sobre a morte, hoje em dia, é algo feio, temeroso, antiquado. Por outro lado, existe uma banalização da morte. As crianças recebem jogos onde matam pessoas e com isso, paradoxalmente, ganham mais vidas. Na TV os documentários mostram vários tipos de mortes, todas com apelo de espetáculo, num desfilar de desesperos alheios.
Por que será que isso aconteceu? Em que momento passamos a esconder e a negar a morte próxima a nós e a banalizamos no contexto social? Quando foi que decidimos que seria melhor hospitalizar o doente para que ele morresse longe de casa e, na maior parte das vezes, com apenas um acompanhante ao lado do leito, enquanto nos perdemos, assustados, com imagens nas TVs e nos jornais? Por que temos tanto medo de falar sobre o inevitável, deixando de refletir sobre tantas possibilidades?
Para melhor compreendermos a atualidade, precisamos voltar um pouco nossos olhos ao passado. No século XIX, após o advento do iluminismo, com as suas ideias inovadoras, surge um movimento batizado como positivismo, idealizado pelo sociólogo francês Auguste Comte. Nestes novos tempos, a única forma aceitável de conhecimento eram os nascidos a partir das ciências dita ‘naturais’, através das observações empíricas. Iniciou para o mundo a era do intelecto, em contraposição às regras teológicas da era medieval. Apenas através do uso da razão o homem poderia se aproximar da verdade. Não existiria, segundo esta nova forma de pensar, outro meio para isso. Então, baseado nas ciências médicas, onde o bom era o limpo, o higiênico, o puro, o saudável, iniciou-se um movimento de higiene social, onde a morte torna-se incabível por denunciar um fracasso da ciência, do bom, do saudável. A morte passa a ser vista como um erro, um distúrbio, algo sujo que deve ser escondido.
No século XX, a hospitalização dos doentes terminais e a distanásia¹ tornaram-se práticas comuns. E assim é.
Hoje, continuamos evitando falar da morte, com medo de que ela venha e nos leve embora. Temos receio de sentir a angústia da nossa própria finitude, então decidimos que não temos de comentar sobre isso.
E, entre os espíritas, como é falar sobre a morte? Para nós, a morte só diz respeito ao corpo, mas, mesmo assim, mesmo sabendo desta bênção que é a vida após a vida, muitos espíritas continuam respondendo as perguntas relativas à morte de maneira parecida com a mãe de nossa história: “Credo! Vira esta boca pra lá!”. Poucos aceitam esta possibilidade com tranquilidade, acatando que esta é uma realidade inevitável e que é preciso refletir sobre ela. Poucos respondem: “Pode ser que tenhamos de partir ainda hoje, realmente, então é melhor nos organizarmos todos os dias para isso”.
É urgente levar o tema morte para as escolas
Outro aspecto a ser salientado é a percepção do despreparo que os profissionais da saúde, de um modo geral, apresentam para lidar com o fenômeno da morte². Durante o período de seu mestrado, Dra. Lucélia Paiva, psicóloga com atuação clínica, hospitalar e educacional, deparou-se com esta realidade. Os profissionais relataram seu despreparo nas questões da morte, o que gerava grande angústia – e o pior – uma angústia negada, não falada, não compartilhada e, portanto, não elaborada. A defesa destes profissionais muitas vezes é o isolamento, uma distância psíquica, com a finalidade de blindagem emocional – o que os ‘protege’ das perdas, tornando-os, em contrapartida, pouco humanizados. “A exclusão das emoções, por vezes, é transformada por meio da racionalização, numa técnica científica, aparentemente necessária ao bom desempenho do trabalho. Estamos falando da pretensa “neutralidade”, a qual justifica a falta de relacionamento com o paciente, protegendo o profissional do sofrimento frente à morte do outro. Porém, este fenômeno também o afasta da vida e da consciência de sua mortalidade.” (Quintana, 2009). Foi por este motivo que em sua tese de doutorado, Dra. Lucélia lançou um novo olhar sobre estas questões, indicando a urgência de se levar o tema morte para as escolas, entendendo que já de crianças precisamos ter contato com esta realidade, de acordo com nossa faixa etária, numa linguagem específica, dentro de um contexto onde a criança possa expor suas dúvidas, suas angústias e anseios, recebendo, em contrapartida, as informações de que necessita, o acolhimento para seguir adiante, mais fortalecida para dar conta, ao longo de sua vida, das tantas situações de perda que certamente acontecerão. Munidas destas ferramentas, poderão, no devido momento, escolher suas profissões de tal forma que, cientes dos desafios associados, estas não sejam fonte de enorme angústia, ao mesmo tempo em que sua atuação no mundo possa ser mais eficaz, mais completa, mais humana.
Mas como podemos falar sobre a morte com crianças, se este tema nos causa tanta dor, tanto sofrimento? De que forma podemos passar conceitos, permitindo reflexões, com tanta ansiedade associada?
Dra. Lucélia Paiva propõe, em seu livro A Arte de Falar da Morte Para Crianças, que utilizemos a literatura infantil para abordarmos este tema. Citando Torres (1999), afirma que “para falar de morte com as crianças, é importante que se utilize uma linguagem simples e direta com elas, bem como uma informação real acerca da morte, pois elas têm uma compreensão literal da linguagem”. E complementa: “(…) As histórias estimulam a imaginação e ajudam a criança a trabalhar com coisas com as quais não consegue lidar. Ela coloca suas próprias emoções na história”. (Paiva, 2011). Nós, espíritas, temos condições de ajudá-las a lidar com estas questões, desde bem cedo, utilizando dos recursos literários, do acolhimento, da escuta compreensiva, aliados ao conhecimento adquirido com a Doutrina que abraçamos.
Segundo Jesus, aqueles que se apegam à vida a perderão
Herculano Pires, o filósofo espírita, em sua obra Educação para a Morte, mostra como o ser humano deve ser educado, não só para esta vida, mas também preparando-se, através do seu aperfeiçoamento intelectual e moral, para as próximas existências, dentro do longo processo evolutivo. Logo na introdução da obra lemos que “para os materialistas, o título ‘Educação para a Morte’ significa ‘Educação para o Nada’. Para aquele, no entanto, que entrevê a imortalidade da alma, esse título torna-se grandioso, pois ele compreende que a morte nada mais é do que o término de uma experiência material e o retorno à vida livre do Espírito”. Mais adiante, no primeiro parágrafo do primeiro capítulo, o autor deixa claro o objetivo de seus escritos: “Vou me deitar para dormir. Mas posso morrer durante o sono. Estou bem, não tenho nenhum motivo especial para pensar na morte neste momento. Nem para desejá-la. Mas a morte não é uma opção, nem uma possibilidade. É uma certeza. Quando o Júri de Atenas condenou Sócrates à morte ao invés de lhe dar um prêmio, sua mulher correu aflita para a prisão, gritando-lhe: “Sócrates, os juízes te condenaram à morte”. O filósofo respondeu calmamente: “Eles também já estão condenados”. A mulher insistiu no seu desespero: “Mas é uma sentença injusta!”. E ele perguntou: “Preferias que fosse justa?”. A serenidade de Sócrates era o produto de um processo educacional: a Educação para a Morte. É curioso notar que em nosso tempo só cuidamos da Educação para a Vida. Esquecemo-nos de que vivemos para morrer. A morte é o nosso fim inevitável. No entanto, chegamos geralmente a ela sem o menor preparo”. (Pires, 1996).
A educação para a morte seria, portanto, um “processo educacional que tende a ajustar os educandos à realidade da Vida, que não consiste apenas no viver, mas também no existir e no transcender”. (Pires, 1996). Nada tem a ver com saber de que forma conquistar o espaço no céu. Também não se trata de preparar-se apenas para o último momento, mas, cientes da nossa finitude, refletir sobre a vida que queremos levar, o que precisamos fazer, onde e de que forma desejamos ir… Isso tudo é, fundamentalmente, uma educação para a morte que se traduz na forma de sermos no mundo, em educação para a vida. E mais: para a vida além desta vida, e assim por diante.
Por isso Jesus ensinou que aqueles que se apegam à própria vida a perderão, e os que a perdem, na verdade, a ganharão. (Marcos, 8:35). Só quando nos damos conta de que precisaremos deixar a vida e que precisamos, no agora, trabalhar por nossa transcendência, é que teremos ‘vida em abundância’, ou seja, a verdadeira vida, a vida do Espírito – nossa verdadeira existência.
As muitas mortes em uma vida
Até aqui discutimos, ainda que superficialmente, a necessidade de falarmos sobre a morte física – o in extremis vitae. Porém, nós, seres humanos, somos impulsionados para a evolução através de mil e uma mortes em apenas uma existência, num desfilar de ciclos, de processos que se iniciam e se acabam, tornando-nos mais experientes, mais maduros, de acordo com nossa forma de enfrentamento diante de tais finalizações.
No momento da concepção, embora muitos sinalizem que ali se inicia uma nova vida, podemos afirmar que, concomitantemente, ocorreu uma morte – o final de uma fase para o Espírito imortal, onde ele tem de abrir mão de sua verdadeira casa para adentrar nas densas garras do mundo físico, perdendo sua lucidez espiritual para passar a agir dentro de brumas espessas, diminuindo sobremaneira sua percepção de realidade maior. Em muitos casos só o esquecimento do passado permite um realinhar menos traumático para o reencarnante.
Depois, no momento do nascimento [sob o ponto de vista deste mundo], o Espírito é obrigado a deixar o estado de homeostase, típico do ventre materno, onde não lhe falta alimento, a temperatura é constante, os sons abafados, para entrar num outro mundo, muito mais agressivo, com necessidades, variações, ameaças. Apesar do acolhimento materno, as sensações desagradáveis são constantes neste novo contexto.
Seguindo nosso desenvolvimento, vamos deixando a fase de bebês para nos tornarmos cada dia mais autônomos: aprendemos a nos comunicar, vamos construindo novos saberes através de nossas experiências e, dependendo do meio onde estivermos inseridos, mais as tendências que trazemos em nosso íntimo, podemos aprender a lidar com as perdas que vão acontecendo ao longo dos anos, de uma forma saudável.
Vamos crescendo fisicamente e, no âmbito psicológico, entre os seis e nove anos de idade, podemos compreender os três componentes básicos do conceito de morte: a universalidade, a não-funcionalidade e a irreversibilidade (Kovács, 1992). Aprendemos, sob o ponto de vista material, que todos morremos e que, quando isso acontece, não funcionamos mais [o corpo]. E que isso não tem volta… Não dá para “desmorrer”. (Kovács, 1992).
Em pouco tempo nos vemos às portas da adolescência. Novamente saímos de uma fase para entrar em outra, ainda mais complicada. Se até aqui possuíamos a proteção fornecida pelo que chamaremos de latência das tendências do material inconsciente³, a partir de agora nossas tendências eclodirão, rápidas e muita vez assustadoras. Temos de enfrentar o luto pelo corpo infantil perdido e ao mesmo tempo tentar dar conta daquilo que surge em nós, inesperadamente, impulsionando-nos para determinadas respostas emocionais, nunca imaginadas. É neste momento que muitos pais se perguntam: “Quem é este meu filho que não mais reconheço?”.
Da adolescência até a entrada no mundo adulto são poucos anos. Novos desafios à frente: o enfrentamento do mundo profissional, a constituição de uma nova família, os cuidados com os filhos que chegam etc. Todas as experiências encontram ressonância na Lei Maior – Lei Divina ou Natural – na qual estamos imersos. Portanto, tudo o que nos acontece até aqui e depois desta fase tem um porquê, um objetivo, uma meta que, se compreendida, tornar-se-á mais fácil de ser concretizada.
Seguimos a valsa da vida e, se ainda encarnados, tornamo-nos idosos. Vamos nos aproximando da reta final de nossa existência corporal, tendo de lidar com os lutos relacionados com esta fase, como, por exemplo, a aposentadoria, que altera radicalmente a identidade das pessoas. Precisamos deixar de ser esse ou aquele profissional [médico, advogado etc.] para nos apresentarmos ao mundo como ‘aposentados’. E junto desta perda da antiga identidade profissional, segue a perda de funções do corpo, da vitalidade, da mobilidade, da memória etc. Perde-se ainda, em muitos casos, a segurança material ou ainda o respeito dos familiares que veem nos idosos apenas um peso a ser carregado pela sociedade, sem nada de positivo a realizar pelo mundo [problema da cultura ocidental, como um todo].
Enfim, como pudemos perceber, se levarmos em conta apenas os ciclos naturais de desenvolvimento, teremos diversos lutos a serem elaborados, de acordo com a fase que estivermos vivenciando. Entretanto, em cada fase teremos de enfrentar não apenas as perdas relacionadas ao estágio em que nos encontramos, mas muitas outras que surgirão, inesperadas, a nos convocar fechamentos abruptos de situações, vivências, empenhos. Falo das diversas mortes simbólicas, além das de ordem física ou parental. Pessoas significativas que desencarnam ou que se afastam de nosso convívio, situações financeiras que se alteram, desligamentos profissionais, perda de objetos importantes etc. são alguns dos exemplos comuns do nosso cotidiano. A forma como lidamos com todos estes fechamentos é individual e depende, essencialmente, de nossa formação, de nossa capacidade para lidar com estes desafios existenciais.
Do luto normal ao patológico
Viktor Frankl, psiquiatra austríaco que teve contatos com Freud e Adler, tornou-se médico em 1930. Teve uma vida repleta de grandes desafios, sendo alguns deles impressionantes, como, por exemplo, sua prisão em campos de concentração nazistas. Era judeu, e foi prisioneiro de Auschwitz e Dachau, onde ficou detido por quase três anos. Ao ser libertado, descobriu que havia perdido quase toda sua família – foram mortos seu pai, sua mãe, sua esposa e seu irmão. Contou, em entrevista realizada na África do Sul, no ano de 1985, que quando esteve nestes campos vivenciou muitas dores físicas e emocionais, mas que, em contrapartida, percebeu a necessidade de se encontrar um sentido no sofrimento. Criador da logoterapia4, Frankl ensinava que o sentido da vida pode ser encontrado por uma pessoa através de três caminhos:
1) o exercício de um trabalho que seja importante, ou a realização de um feito, uma missão, que dependa de seus conhecimentos e de sua ação, e que faça com que a pessoa se sinta responsável pelo que faz;
2) o amor a uma pessoa ou a uma causa, uma ideia, o que estabelece uma responsabilidade para com a pessoa amada ou à causa defendida;
3) diante de um sofrimento inevitável, assumir uma postura de buscar um significado e utilidade para a dor, pois, através da experiência, cada pessoa pode contribuir para a vida de outras pessoas.
“Dentro de cada um de nós há celeiros cheios onde nós armazenamos a colheita da nossa vida. O significado está sempre lá, como celeiros cheios de valiosas experiências. Quer sejam as ações que fizemos, ou as coisas que aprendemos, ou o amor que tivemos por alguém, ou o sofrimento que superamos com coragem e resolução, cada um destes eventos traz sentido à vida. Realmente, suportar um destino terrível com dignidade e compaixão pelos outros é algo extraordinário. Dominar seu destino e usar seu sofrimento para ajudar os outros é o mais alto de todos os significados para mim.” (Frankl, 1985).
Portanto, para conseguirmos encontrar este significado maior, precisaremos compreender a importância das perdas em nossas vidas, retirando de tais experiências muito mais que a dor vivida, mas, acima de tudo, um porquê para esta dor existir e os possíveis caminhos, a partir de tal constatação.
No chamado ‘luto normal’, a pessoa elabora a perda, compreendendo que o ciclo se encerrou e, após um período de empobrecimento do mundo a seu redor, com certo sofrimento, o sujeito retoma a vida em suas mãos, buscando ligar-se afetivamente a outras pessoas ou atividades que tragam prazer. Um exemplo clássico são as viúvas que passam a se dedicar a uma causa religiosa. Este processo é tido como normal e as pessoas que aprendem a elaborar suas perdas desta forma [desde a infância] tendem a repetir esta maneira de vivenciarem as situações de luto por toda a vida.
Entretanto, existe outro tipo de luto, muito mais complicado, chamado de ‘luto patológico’.
Neste caso, a pessoa não consegue elaborar a perda satisfatoriamente. A não aceitação da finitude de uma fase ou de uma pessoa ou ainda de um objeto ou relacionamento pode levar o sujeito a um estado de prostração ou revolta constante. Em outros casos, rebaixa-se a autoestima e a pessoa descreve-se como não merecedora de nada de positivo que possa vir do mundo. Trata-se dos casos de melancolia, descritos por Freud em seu texto Luto e Melancolia, de 1914. Segundo o pai da psicanálise, nos casos da melancolia, a pessoa tem um empobrecimento do ego e não consegue dirigir sua energia, sua afetividade para outras pessoas ou atividades. (Freud, 1914). Podemos afirmar, sob a ótica do Dr. Viktor Frankl, que esta pessoa não conseguiu encontrar um sentido no sofrimento.
E, alinhavando com os conhecimentos espíritas, consideramos ainda que as experiências anteriores [de vidas passadas], aliadas à forma que a pessoa aprendeu a lidar com as perdas desde a primeira infância, acabam por orientar a maneira como elabora os tantos lutos que se sucedem durante a existência.
Aceitando a morte para melhorar a vida
Até aqui já falamos sobre a importância de uma educação para a morte, no sentido de se buscar um sentido para a vida. Cabe-nos dizer, ainda, que para isso temos à nossa disposição algumas ferramentas preciosas. Uma delas – o Espiritismo – amplia nossos horizontes à medida que nos descortina a realidade Espiritual – nossa verdadeira natureza, nossos objetivos e necessidades, a importância das relações interpessoais para o nosso desenvolvimento e do mundo à nossa volta, assim como os possíveis resultados destas relações conforme nossa atuação neste mundo. Sabemos, através da Doutrina Espírita, que somos seres em constante transformação, vivendo inúmeras existências, num ir e vir constante, e que, a cada uma destas existências, vamos nos tornando mais maduros, mais esclarecidos e, portanto, mais próximos da perfeição – objetivo final de todos nós.
Só quando aceitarmos nossa finitude, encarando-a de frente, conseguiremos refletir satisfatoriamente sobre a vida que levamos. Com isso não continuaremos mais ‘levando a vida’, mas passaremos a buscar compreender o que a vida realmente espera de nós. Deixaremos de ‘tocar os dias’, numa rotina impensada, como alienados existenciais, para atuarmos no mundo com objetividade, encontrando um sentido para cada nova experiência, sublimando sentimentos, transcendendo.
Só assim, libertos deste dogma ideológico que instituiu ao mundo o silêncio sobre as questões da morte, poderemos seguir adiante, livres para escolher com clareza e responsabilidade aquilo que realmente é importante para nós.
Notas
1. Distanásia é a prática pela qual se prorroga, através de meios artificiais e desproporcionais, a vida de um enfermo incurável. Também pode ser conhecida como “obstinação terapêutica”. (fonte: Wikipédia).
2. Tem-se verificado que alguns profissionais da saúde que não conseguem elaborar as perdas dos pacientes, tendo nelas um conceito de fracasso profissional, exigindo-se mais do que o possível [e ideal], podem apresentar a síndrome de Burnout (do inglês to burn out, queimar por completo), também chamada de síndrome do esgotamento profissional, assim denominada pelo psicanalista nova-iorquino, Freudenberger, após constatá-la em si mesmo, no início dos anos 1970. A dedicação exagerada à atividade profissional é uma característica marcante de Burnout, mas não a única. O desejo de ser o melhor e sempre demonstrar alto grau de desempenho é outra fase importante da síndrome: o portador de Burnout mede a autoestima pela capacidade de realização e sucesso profissional. O que tem início com satisfação e prazer termina quando esse desempenho não é reconhecido. Nesse estágio, necessidade de se afirmar, o desejo de realização profissional se transforma em obstinação e compulsão. (fonte: Wikipédia).
3. Segundo os Espíritos, a infância é o período da vida física mais importante para o aperfeiçoamento do Espírito encarnado, uma vez que suas tendências anteriores estão adormecidas em função do processo reencarnatório. É no período da adolescência, como nos esclarecem os Espíritos na pergunta 385 de O Livro dos Espíritos, que o Espírito encarnado começa a retomar suas características de Espírito eterno em processo de evolução.
4. A Logoterapia é um sistema teórico – prático de psicologia, criado pelo psiquiatra vienense Viktor Frankl, que se tornou mundialmente conhecido a partir de seu livro “Em Busca de Sentido” (Um Psicólogo no Campo de Concentração), no qual expõe suas experiências nas prisões nazistas e lança as bases de sua teoria. De acordo com Allport, “trata-se do movimento psicológico mais importante de nossos dias”. A Logoterapia é conhecida como a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, sendo a Psicanálise Freudiana a Primeira e a Psicologia Individual de Adler a Segunda. (fonte: Wikipédia)
Referências
ARIÈS, P.; A História da Morte No Ocidente. Trad. P. V. Siqueira. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
FRANKL, V.; A Descoberta de Um Sentido No Sofrimento, Entrevista na África do Sul, 1985, disponível no Youtube, http://www.youtube.com/watch?, acessado em 11 de setembro de 2011.
Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.
FREUD, S.; Luto e Melancolia. Edição Standard Brasileiras das Obras Completas de Sigmund Freud, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1917 [1915]/1974.
KARDEC. A.; O Livro dos Espíritos, 1ª edição comemorativa do sesquicentenário, FEB, Rio de Janeiro, 2006.
KOVÁCS, M. J.; (org) Morte e Desenvolvimento Humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
PAIVA, L.E.; A Arte De Falar Da Morte Para Crianças: A Literatura Infantil Como Recurso Para Abordar a Morte Com Crianças e Educadores. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2011.
PIRES, H.; Educação Para a Morte. São Bernardo do Campo: Correio Fraterno do ABC. 5ª edição, 1996.
QUINTANA, A.M.; Morte e Formação Médica: É Possível a Humanização?; in Santos (organizador), F.; A Arte de Morrer – Visões Plurais; Bragança Paulista. SP: Editora Comenius, 2009.
TORRES, W.C.; A Criança Diante da Morte: Desafios; São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 1999.
O consolador – Especial