Autora: Maria de Lurdes Duarte
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.”, art. 1º da Declaração Universal dos direitos Humano, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948.
“Os Estados Partes comprometem-se a assegurar e promover a plena realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência.”, Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pela ONU a 13 de dezembro de 2006.
Tantos anos passados desde a elaboração e a adoção destes dois documentos fundamentais para a construção de uma vida de relação positiva na sociedade, baseada no respeito mútuo, a harmonia, a cooperação, que conceda, a todos em conjunto e a cada um em particular, o direito de ser feliz, é caso para nos colocarmos algumas questões:
Estarão os objetivos a ser atingidos?
Estará a humanidade a caminhar efetivamente para a busca conjunta de soluções que nos levem a um mundo melhor, onde todos se sintam parte integrante de pleno direito?
Se não, o que estará a falhar?
São algumas das muitas questões que nos ocorrem e nos devem preocupar a todos. Como ensina o Espiritismo, somos todos cocriadores com o Pai. O que quer isto dizer? Num mundo em constante mutação, que caminha (ou deve caminhar) no sentido do progresso, cada passo, cada ação, cada decisão, cada pensamento de cada um de nós, coletiva ou individualmente, contribui positiva ou negativamente para a construção do mundo que Deus nos tem destinado: um mundo de paz, equilíbrio, harmonia, onde os valores cristãos prevaleçam e contribuam para a felicidade e aperfeiçoamento constante. Ou para o atraso no alcance desse destino, caso a nossas contribuições sejam negativas, destrutivas, em vez de construtivas.
Nós espíritas (convictos, estudiosos ou simplesmente simpatizantes) vivemos ansiando pelo anunciado mundo de regeneração e sonhamos vir, um dia, a habitar um mundo feliz e “perfeito”. O problema é que, maioritariamente, vivemos à espera. À espera do dia em que esse dia chegará. Esquecemo-nos desse pormenor tão importante: somos todos cocriadores com o Pai. Deus não nos dará de presente, como num passe de mágica, um mundo melhor do que o que temos, como se fosse um prémio por um merecimento que, convenhamos, não temos. Somos nós que temos de o construir, passo a passo, paulatinamente, com o nosso esforço, com a mudança de atitudes, com o evoluir de crenças, convicções e mentalidades que presidem à mudança nas leis humanas e, mais importante que tudo, às mudanças nas atitudes quotidianas de cada um de nós. Estamos neste mundo atual por merecimento: não merecemos estar num melhor. Nesse seguimento, também só nos mudaremos para um melhor (que poderá muito bem ser a Terra, se assim todos quisermos), quando o merecermos.
Continuando na mesma linha de pensamento, temos de ter bem presente a ideia de que jamais subiremos na escala evolutiva sozinhos. Temos o nosso crescimento individual, pelo qual somos inteiramente responsáveis, que temos vindo a empreender desde há milénios, desde que fomos criados por Deus. Mas temos, também há milénios, caminhado em conjunto, desde que fomos colocados neste planeta Terra que nos acolheu e nos serve de lar. Tem sido uma jornada coletiva, em que cada ação de um contribui para a ascensão ou retardamento de todos. É uma responsabilidade mútua porque somos irmãos nos trilhos da vida, cabendo a cada um uma quota parte de trabalho para benefício coletivo. Para isso, nascemos dentro de uma família, previamente estruturada no Plano Espiritual, com as caraterísticas que nos fazem falta para as aprendizagens específicas de que necessitamos. Para isso, nascemos dentro de uma sociedade, num dado país, numa dada comunidade mais ou menos alargada (escola, trabalho, vizinhos…) que nos proporcionarão as experiências que tenderão, se devidamente aproveitadas, a fazer-nos evoluir, moral e intelectualmente.
Se pensássemos evoluir sozinhos, seria um puro ato de egoísmo, precisamente um dos piores entraves ao conceito de evolução e uma das causas (podemos mesmo dizer a principal) do nosso retardamento atual.
Voltando aos Direitos Humanos, gostaríamos de nos focar mais concretamente nos Direitos da Pessoa com Deficiência. Ou seja: da pessoa que, apresentando um desenvolvimento humano atípico, seja por doença ou deformidade física, seja por desajuste mental, problema psíquico, etc., seja ele congénito ou adquirido ao longo da vida, necessita de adaptações, por parte da Sociedade em que se insere, para que possa desenvolver o seu crescimento pleno, viver na liberdade e respeito que as leis acordadas pela maioria dos países (Portugal e Brasil incluídos, felizmente), lhe conferem e convencionaram trabalhar para que se tornem efetivos. As legislações de cada país (pelo menos dos que temos como desenvolvidos e evoluídos, respeitadores dos Direitos Humanos) têm vindo a ajustar-se a este novo paradigma: Mais do que deficiências, existem incapacidades. Incapacidade de mobilidade, incapacidade de utilizar os serviços comuns; incapacidade de aprender dentro dos padrões instituídos, incapacidades de vária ordem e a vários níveis. Essas incapacidades, mais do que inerentes às caraterísticas individuais com que cada um nasce ou desenvolve, são-lhe impostas pelo contexto, pelo meio do qual faz parte mas que não lhe proporciona os recursos adequados. Num planeta de cegos, em que a forma comum de ler fosse o braile, por exemplo, nenhuma criança seria considerada “deficiente” e deixaria de aprender a ler por não ter visão. Num planeta em que todos, em geral, comunicassem por língua gestual, ou por transmissão de pensamento, não haveria surdos. Por isso, sublinho a imprescindibilidade de a Sociedade se adaptar a todos, cada um com as suas diferenças, dando a todos, sem exceção, os recursos de que necessita para aproveitar esta passagem pelo mundo terreno da melhor forma, tendo oportunidade de sair daqui renovado e em melhor situação do que quando aqui chegou. É essa a finalidade da vida. A finalidade de todos, quer nos ajustemos aos moldes padronizados, quer pertençamos a qualquer minoria. Minorias são realidades impostas pela sociedade egoísta.
Quem é esta Sociedade de que falamos? Os governos que têm de fazer as leis? São “os outros”? Somos nós. De nada adiantam as leis muito bem concebidas e promulgadas com as melhores das intenções, se cada um continuar com o seu egoísmo a cultivar discriminações, olhando “o outro” como “o outro que nada tem a ver comigo”. Valores ético-morais como equidade – ver e reconhecer todos como detentores de direitos iguais, mas seres diferentes, portadores de caraterísticas, gostos, modos de vida diferentes e necessidades diferentes) -, respeito mútuo, solidariedade, partilha (inclusive partilha dos desejos de ascensão a mundos mais perfeitos e felizes), empatia (capacidade nos colocarmos no lugar do outro), são os valores da nova Sociedade que muito a custo vamos construindo. São, na realidade, os valores do Evangelho, os valores do Espiritismo. À medida que as sociedades terrenas vão evoluindo, também elas se vão ajustando às Leis Divinas, portanto, aos valores preconizados e ensinados pelo Mestre Jesus, Governador Planetário, e pelo Consolador Prometido – a Doutrina Espírita – que veio recordar e procura reviver a essência dos Seus ensinamentos.
Este tema, segundo nos parece, está bem atual e a precisar de sérias reflexões. Afigura-se-nos muitas vezes (damo-nos conta disso em variadíssimas conversas com diferentes interlocutores) que, na atualidade, somos “invadidos” por cada vez maior número de pessoas que conotamos como “deficientes”. Talvez não seja bem verdade. Isso deve-se, em parte, a uma cada vez maior visibilidade que é dada a essas minorias. Vimos de um tempo, ainda demasiado presente, em que os ditos “deficientes” eram escondidos da comunidade, mantidos em casa pela família, por vergonha, como se fosse um estigma, uma maldição, a par dos escassos recursos que eram dados para que esses cidadãos de direito pudessem usufruir da sua cidadania em pleno, como quaisquer outros. A título de exemplo, há pouco mais se vinte anos, raramente se encontrava uma criança com deficiência numa escola de ensino regular. Na melhor das hipóteses, eram colocadas em escolas especiais; grande número nem sequer tinha direito à educação, por serem consideradas “não educáveis” e permaneciam encerradas em casa. Podemos considerar que ideia de inclusão, apesar de não ser totalmente nova, está agora a desabrochar nas leis, nos locais de trabalho, na educação, nos conceitos de acessibilidade e mobilidade, nas instituições, e nas mentalidades da sociedade que custa a adaptar-se a todos.
Por outro lado, como espíritas, sabemos que o nosso mundo atual está a passar por uma fase decisiva e muitas oportunidades estão a ser dadas a um vasto leque de Espíritos necessitados de expiação e renovação. Também muitos outros Espíritos, mais adiantados, estão descendo ao nosso planeta, para trabalhar no nosso aperfeiçoamento, dando-nos exemplos, fazendo-nos refletir, impulsionando o progresso intelectual e moral, em suma, ajudando-nos na preparação para a transição planetária “iminente”. Nesse sentido, é expectável que surja, entre nós, uma gama variadíssima de pessoas com as mais variadas caraterísticas, minorias entre uma população mais ou menos padronizada, que nos cabe acolher de igual forma, respeitar, ajudar, amar, incluir.
Por que nascem pessoas deficientes? Por que nascem alguns “perfeitos” e, por doença ou acidente, adquirem caraterísticas incapacitantes? O que nos diz o Espiritismo sobre isso?
“As vicissitudes da vida são de duas espécies, ou, se quisermos, têm duas origens bem diversas, que importa distinguir: umas têm sua causa na vida presente; outras, fora desta vida.”, Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo V, Causas Atuais das Aflições
“As vicissitudes da vida têm, pois, uma causa, e como Deus é justo, essa causa deve ser justa.”, Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo v, Justiça das Aflições
“As tribulações da vida podem ser impostas aos Espíritos endurecidos, ou demasiado ignorantes para fazerem uma escolha consciente, mas são livremente escolhidos e aceites pelos Espíritos arrependidos, que querem reparar o mal que fizeram e tentar fazer melhor. Assim é que aquele que, tendo feito mal a sua tarefa, pede para recomeçá-la, a fim de não perder as vantagens do seu trabalho. Essas tribulações, portanto, são ao mesmo tempo expiações do passado, que castigam, e provas para o futuro, que preparam. Rendamos graças a Deus que, na sua bondade, concede aos homens a faculdade da reparação, e não o condena irremediavelmente pela primeira falta.
Não se deve crer, entretanto, que todo sofrimento por que se passa neste mundo seja necessariamente o indício de uma determinada falta: trata-se frequentemente de simples provas escolhidas pelo Espírito, para acabar a sua purificação e acelerar o seu adiantamento. Assim, a expiação serve sempre de prova, mas a prova nem sempre é uma expiação.”, Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo V, Causas Anteriores das Aflições
Mas, é também o Evangelho segundo o Espiritismo que nos diz:
“O Espírito nasce frequentemente no mesmo meio em que viveu, e se encontra em relação com as mesmas pessoas, afim de reparar o mal que lhes tenha feito.”, capítulo V, Esquecimento do Passado.
Esta integração e interação do Espírito com o meio de que necessita para se reeducar e evoluir, está em consonância com o moderno conceito de “contexto” da psicologia do desenvolvimento humano, segundo a qual o indivíduo se desenvolve num determinado contexto, é por ele influenciado e o influencia. Indivíduo e contexto desenvolvem-se e crescem, influenciando-se mutuamente. Para se compreender as caraterísticas do indivíduo, para além da análise biológica – deficiência como condição de saúde física ou mental, imutável – é necessário conhecer o contexto onde nasceu, cresceu, que o influenciou, que lhe proporciona ou não as condições de superação das incapacidades, em suma onde faz a sua “aprendizagem social”.
Transpondo para a análise à luz do Espiritismo, não importa apenas saber o que o indivíduo é, como pessoa deficiente, mas, acima de tudo, de que modo lhe deveremos proporcionar condições de vida e crescimento moral, intelectual, espiritual. Se, mais uma vez, pensarmos de forma egoísta e individualista, poderemos ser levados a perguntar: Mas por que tem a sociedade que acarretar com a responsabilidade de indivíduos que estão no mundo incapacitados porque estão em expiação? É fácil de responder: Temos responsabilidade coletiva. Ninguém erra sozinho. A pessoa com deficiência, seja qual for o motivo que a levou a essa condição, está e sempre esteve, nesta e noutras vidas que podem ter contribuído para a sua condição atual, integrado numa sociedade – meio, contexto – errou em conjunto com outros (nós) que em grau maior ou menor, influenciaram de algum modo as suas más decisões, por egoísmo, orgulho, falta de amor, desinteresse, incapacidade para ajudar… É justo que essa mesma sociedade contribua, na atualidade, para o resgate desses erros. É uma prova para todos nós; saindo o indivíduo vencedor, toda a comunidade ganhará com essa interação e aprenderá com a experiência coletiva.
Por outro lado, quem nos diz que alguns desses cidadãos, até nem estarão entre nós como expiação, mas acima de tudo, para nos fazerem refletir, aprender, estudar, através da experiência da convivência comum, e com isso, termos mais uma oportunidade de apressar o progresso, seja moral, seja intelectual e científico? Que sabemos nós do passado de cada um (inclusive os nosso), se o esquecimento é realidade inalienável em cada reencarnação?
Disse Jesus que “pobres sempre os tereis convosco”. Podemos igualmente, afirmar que pessoas com deficiência as teremos sempre conosco, enquanto a sociedade não se livrar do mal, do egoísmo, do orgulho. É caso para nos questionarmos: Quem, nós ou eles, terá mais a ganhar com a sua inclusão?
O consolador – Especial