Autor: Paulo Henrique de Figueiredo
Como bem viu o filósofo Herculano Pires, o espiritismo tem sido considerado como uma “seita comum, carregada de superstições. Muitos o veem como uma tentativa de sistematização de crendices populares, onde todos os absurdos podem ser encontrados”, concluindo o filósofo espírita que:
“Na verdade os seus próprios adeptos não o conhecem (…). O espiritismo, nascido ontem, nos meados do século passado, é hoje o grande desconhecido dos que o aprovam e o louvam e dos que o atacam e o criticam” (Curso dinâmico de Espiritismo – O grande desconhecido, p.11).
Sejam opositores ou simpatizantes, adeptos ou divulgadores, muitos desconhecem o verdadeiro espiritismo. A teoria revolucionária dos espíritos está esquecida.
Na época de Kardec, a igreja perdia força em função da não aceitação da imposição dogmática quando o pensamento racional despontava como recurso fundamental na busca do conhecimento das leis universais. Por outro lado, o materialismo que invadiu a universidade desde a revolução francesa (os chamados ideólogos, como Tracy, Volney) havia caído em descrédito, sua fria doutrina não trazia esperança, as novas gerações a repudiavam pela falta de perspectivas futuras ao considerar a humanidade uma espécie animal, onde todos lutam entre si motivados pelo egoísmo, até a morte que seria seu fim.
Desde as primeiras décadas do século 19, um núcleo de pensadores da universidade parisiense, no campo das ciências humanas, buscou construir uma filosofia espiritualista livre de dogmas e racional. Baseada numa construção de ideias por meios científicos, como a introspecção (examinando os valores psicológicos internos) e o ecletismo (associação de hipóteses históricas numa sólida teoria espiritualista racional), na construção da psicologia, da lógica, da moral e da estética. Além do estudo dos primeiros princípios, pela metafísica e teodiceia – o estudo de Deus. Toda essa nova área acadêmica do século 19 se denominava como sendo as ciências filosóficas. Foi entre elas que Allan Kardec classificou o Espiritismo:
“O Espiritismo, como eu disse, está fora de todas as crenças dogmáticas, com as quais não se preocupa; não o consideramos senão como uma ciência filosófica.” (Revista Espírita de 1859, p. 129).
Os espiritualistas racionais da universidade francesa, como Royer-Collard, Victor Cousin, Jouffroy, Paul Janet, estudavam a moral racional independente de qualquer religião formal. Considerando que Deus existe, e sendo nós, suas criaturas, almas imortais, há uma lei universal que rege o mundo moral. Essa lei está presente em nossas consciências, como assegurou Rousseau. Esse foi o pensamento adotado pelos espiritualistas dos tempos de Kardec, estudado na universidade e na escola, representando a “moral racional” e uma “religião natural “. Desse modo, surgida na época em que os dogmas caiam no descrédito, a teoria espírita é moderna, progressista, liberal, adequada para extinguir os equívocos do velho mundo, de tal forma que:
“Não é o Espiritismo que cria a renovação social, é a maturidade da Humanidade que faz dessa renovação uma necessidade.” (Revista Espírita de 1866, 196).
Como demonstramos, a regeneração da humanidade ocorrerá progressivamente, pela conscientização do homem novo. Desse modo, a doutrina espírita representa a moral racional e a religião natural.
Enfim, a vocação revolucionária do espiritismo para a renovação social está na mudança de paradigma quanto ao princípio moral, trocando da postura heterônoma (que é característica tanto das religiões dogmáticas como da orientação materialista) para a moral autônoma. Vejamos, então, uma definição dessas duas morais:
Autonomia
“O estado de direito, a autonomia da consciência individual, o progresso moral e intelectual, o reinado do amor e da justiça, será o futuro para o qual o espiritismo dá a base fundamental” (RE70, p.91).
Tradicionalmente, as religiões positivas, a escola tradicional e os governos, desde
o inicio da civilização, submetem as pessoas à autoridade pela obediência passiva,
ditando o modo de agir sob o regime do castigo e da recompensa, conforme o
princípio da heteronomia. Por sua vez, a autonomia moral e intelectual pressupõe o uso da razão e do senso moral para o autogoverno e o desenvolvimento da personalidade. Enquanto pensadores como Rousseau, Kant, Piaget, Paulo Freire, fundamentaram a educação pela liberdade como fator de transformação da humanidade, o espiritismo revela que a autonomia é a lei natural que rege a relação do espírito com a humanidade universal. A moral espírita se fundamenta na lei da escolha das provas, que torna cada espírito responsável por sua própria evolução moral e intelectual no decorrer das reencarnações, sendo fantasiosa a ação arbitrária de Deus castigando ou recompensando, como se ajuizava nas doutrinas religiosas e sociais do velho mundo.
Heteronomia
“O dogma da fé cega é que produz hoje o maior número dos incrédulos, porque ela pretende impor-se, exigindo a abdicação de uma das mais preciosas prerrogativas do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio.” (ESE, p.302).
O conceito de heteronomia propõe que o indivíduo deve agir por submissão a
uma lei que lhe é externa e imposta, sob o regime do castigo e da recompensa.
Os animais, que não possuem pensamento racional, podem ser condicionados pelo treinamento. A natureza do espírito humano, porém, é autônoma e está relacionada com o livre-arbítrio e o senso moral, que desenvolve progressivamente pelo uso de sua razão e da liberdade de escolha e de crença. Esse é o fundamento moral tanto da moral de Jesus quanto do espiritismo.
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