Autor: Jorge Hessen
Que tal Doutrina dos Espíritos ou kardecismo?
O questionamento que intitula este texto foi enviado a mim por um leitor dos artigos relacionados no site http://jorgehessen.net. Em verdade, há muitos confrades que têm identificado o gravíssimo desgaste da palavra “Espiritismo” e sugerem a sua modificação para “Doutrina dos Espíritos”, ou “Doutrina Espírita”, ou até mesmo “Kardecismo” (e seus derivados), que são termos que vêm sendo popularizados no Brasil devido, justamente, ao místico sincretismo religioso, que remete as pessoas a confundirem Espiritismo com ocultismo, esoterismo, exoterismo, teosofia, orientalismo, umbandismo, xamanismo, exorcismo e outros similares, por isso é comum ouvirmos de alguns adeptos: “sou kardecista”. (!?)
Uma das leitoras do site nos escreveu o seguinte: “sempre que alguém pergunta qual a minha religião eu respondo: Sou Kardecista, justo para diferençar dos equívocos quanto ao termo Espírita. Já que estão fazendo tamanha confusão com a nossa doutrina, quem sabe se passarmos a dizer que somos Kardecistas, com o tempo, isso cairá em lugar comum e a diferença ficará patenteada, naturalmente.” Não me animei a contra-argumentá-la de imediato, até porque, tempos atrás, jamais admitiria essa hipótese, pois Espiritismo só existe UM. No entanto, e embora consciente de que o Espiritismo não foi obra do homem, mas dos Espíritos Superiores, e que Kardec, por isso mesmo, foi, apenas, o instrumento de que a espiritualidade maior se serviu para transmitir novas diretrizes de amor e paz à Humanidade, nada obsta que cheguemos ao fato concreto de que o sufixo “ismo”, em seu pseudônimo, seja disseminado para designar o movimento religioso (Espiritismo) por ele codificado, ou seja, o termo Kardecismo distinguiria a doutrina por si só. Como exemplo dessa ordem, podemos citar o Darwinismo, o Platonismo, o Socratismo, etc., e quem nos garante que os métodos desses grandes vultos da História tenham sido particularíssimos, isto é, sem a inspiração de Espíritos Superiores? É óbvio que foram inspirados. Portanto, nada mais justo, oportuno e conveniente que estudemos essa possibilidade, “também”, pois os espíritos superiores, por serem Superiores, representam a permanente tranquilidade interna ante as atitudes que promovam e dignifiquem o legítimo pensamento espírita. Urge que se faça a distinção, pois não podemos admitir que a Doutrina Espírita caminhe com luzes na essência e obscurantismo na sua aplicação prática. É um fato real e digno de nossa atenção.
Cremos ser importante buscarmos mecanismos responsáveis para que seja evitada a confusão, que tem trazido sérios prejuízos à expansão equilibrada do Espiritismo no Brasil. Recordemos que, no século XIX, Kardec criou o termo Espiritismo, exatamente, para diferenciar do espiritualismo em voga. Há, no entanto, quem interprete seja a Terceira Revelação obrigada a miscigenar-se com todas as peripécias aventureiras e com todos os exotismos religiosos, sob pena de fugir aos impositivos da fraternidade que veicula. Temos que nos acautelar sobre esse lisonjeiro ecletismo, buscando dignificar a Doutrina que nos consola e liberta, vigiando-lhe a pureza e a simplicidade. Não se trata de “inovar” coisa alguma, uma vez que não sugerimos qualquer modificação em seu conteúdo, e nem poderíamos, mas adequar o seu título identificador, de forma a manter a doutrina bem distinta das demais e não retardar, ainda mais, o seu curso programado, superando pouco a pouco a triste realidade que ora presenciamos.
O tema é de relevante interesse para o movimento espírita brasileiro, razão pela qual é urgente toda atenção dos órgãos “unificadores”. Razões há de sobejo, pois, em quase todos os lugares que se pratica o mediunismo, atribui-se ao Espiritismo. Existem instituições que afixam placas e faixas nos seus pórticos com inscrições do tipo: “centro espírita caboclo beltrano”, “tenda espírita pai sicrano”, “cabana espírita vovô fulano”, “associação espírita ramayana”, “vidente espírita mãe fulana de tal” e milhares de outras situações de crenças e até charlatanismos que têm arranhado o projeto da Doutrina Espírita. Apropriam-se “constitucionalmente” [liberdade de crença] do termo criado por Allan Kardec e propagam suas ideologias. Há, por essa razão, um exagerado uso e, até, abuso da palavra Espiritismo no Brasil. A rigor, tudo que é atinente a “espíritos” tem sido confundido com “Espiritismo” e, nesse marasmo ideológico, a Doutrina codificada por Allan Kardec permanece sendo ignorada, o que acarreta indiscutíveis prejuízos ao programa da Terceira Revelação. Como sói ocorrer na “pátria do misticismo”, muitos compatriotas creem que o Espiritismo é patrimônio brasileiro, esquecidos de que a Doutrina Espírita é patrimônio da Humanidade e deve ser preservada a todo custo. Infelizmente, das duas, uma: ou o termo “Espiritismo” cai no desuso ou toda a doutrina cai no descrédito. O que é pior? Sim, porque já estamos sentindo os efeitos negativos da utilização livre do nome “espírita”, quando deveria ser intocável o seu significado original, sem desvirtuar a finalidade de tão rica e abençoada doutrina.
Para alguns confrades de índole “light ou clean” (!?), o tema ecoa como algo obscuro, subjetivo. Lembremos-lhes que nenhum espírita sincero se coloca como imprescindível, não tenta impor sua vontade, e nem considera que seu ponto de vista seja o mais acertado e que deva ser aceito por todos, esperando adesões sem questionamentos. É elementar afirmar-lhes que não somos donos da verdade. Nossa opinião, nosso ponto de vista é apenas um ponto de vista pessoal, resultante de observação pessoal que é diferente da experiência dos outros, que – sabemos – não pode ser desprezada e nem aceita passivamente.
Doutrina Espírita é o conjunto de princípios e leis, revelados pelos Espíritos Superiores, contidos nas obras de Allan Kardec, a saber: O Livro dos Espíritos, publicado em 1857; O Livro dos Médiuns, publicado em 1861; O Evangelho segundo o Espiritismo, publicado em 1864; O Céu e o Inferno, publicado em 1865; A Gênese, publicado em 1868.
O vocábulo Espiritismo, neologismo criado por Allan Kardec, compreende a doutrina transmitida pelos Espíritos. Propõe conceitos novos e profundos a respeito de Deus, do Universo, dos Homens, dos Espíritos e das Leis que regem a vida. “O Espiritismo é uma Ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.” (1) Vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a existência e a natureza do mundo espiritual e as suas relações com o mundo corpóreo. “O Espiritismo realiza o que Jesus disse do Consolador prometido: conhecimento das coisas, fazendo que o homem saiba donde vem, para onde vai e por que está na Terra; atrai para os verdadeiros princípios da lei de Deus e consola pela fé e pela esperança.” (2) Trazendo conceitos novos sobre o homem e tudo o que o cerca, o Espiritismo toca em todas as áreas do conhecimento, das atividades e do comportamento humanos, abrindo uma nova era para a regeneração da Humanidade. Pode e deve ser estudado, analisado e praticado em todos os aspectos fundamentais da vida, tais como: científico, filosófico, religioso, ético, moral, educacional e social. O Espiritismo não impõe os seus princípios. Ao contrário, convida os interessados em conhecê-lo a submeterem os seus ensinos ao crivo da razão, antes de aceitá-los.
Diante do exposto, lembramos que todo Centro Espírita só deva ter vínculo com o genuíno Cristianismo, razão por que a Doutrina Espírita é reconhecida como sendo o Cristianismo Redivivo, e não com outros credos, seitas e rituais, pois não resulta de qualquer forma de sincretismo religioso. Não há espaço no Espiritismo para diferentes ramificações ou categorias, como: “alto” ou “baixo” Espiritismo; de “mesa branca”; “azul”, “rosa”, “preta”, etc., ou outras do gênero; bem como, não se adota a prática de adoração a objetos “milagrosos”. Uma instituição, legitimamente fundamentada em Kardec não tem corpo sacerdotal, não adota e nem usa, em suas reuniões ou sessões: paramentos, roupas brancas, bebidas alcoólicas, incensos, fumos de qualquer espécie, altares, imagens de “entidades” e/ou “santos”, andores, velas, procissões, talismãs, amuletos, sacramentos, concessões de indulgência, horóscopos, cartomancia, pirâmides, cristais, búzios, rituais, canto de hinos nas reuniões públicas ou quaisquer outras formas de culto exterior.
O Centro Espírita, genuinamente embasado em Kardec, é um núcleo de amor e tem tripla finalidade, atuando como Templo, Hospital e Escola. Aí, nesse local, promove-se o estudo metódico e sistemático da Doutrina Espírita e do Evangelho; organiza-se a evangelização da criança; divulgam-se as obras básicas e complementares, através de livros e de outros meios de comunicação; programam-se estudos sobre mediunidade, com orientações e atividades mediúnicas. Nesse quesito, ressalte-se que prática mediúnica espírita só é aquela que é exercida com base nos princípios da Doutrina Espírita e dentro da moral cristã contida em O Evangelho segundo o Espiritismo, roteiro para a evolução segura de todos os homens. Uma instituição espírita mantém trabalhos de atendimento fraterno, pelo diálogo, com orientação e esclarecimento às pessoas que buscam apoio e consolação. Executa o serviço de assistência social. Incentiva e orienta para a implantação do culto do Evangelho Lar. (3)
Destacamos, mais uma vez, pela relevância do tema em questão, que um centro espírita não tem “chefes”, “sacerdotes”, “gurus”, ou “lideres espirituais”, e sim, trabalhadores de boa vontade, que reconhecem Jesus como o único Mestre, e Kardec, como um dos seus discípulos mais fiéis. A clareza da Doutrina Espírita é a sua própria essência, e é isso que lhe dá força, para que atinja, diretamente, a inteligência e ative o raciocínio. Nada tem de misteriosa, e seus adeptos não possuem qualquer segredo que seja oculto ao povo. Tem como orientação segura os livros básicos citados acima. Revela, ainda, o que somos, de onde viemos e para onde vamos, qual o objetivo da existência terrena e qual a razão da dor e do sofrimento. É importante frisar que toda prática espírita é gratuita, dentro do princípio do Evangelho: “Dai de graça o que de graça recebestes”. Como já citamos, a prática espírita é realizada sem nenhum culto exterior, dentro do princípio cristão de que Deus deve ser adorado em espírito e verdade. Um autêntico Centro Espírita tem que funcionar como se fosse um verdadeiro pronto-socorro espiritual, tal qual refrigério em favor das almas em desalinho, e não um reduto de promessas ilusórias. A Casa Espírita tem que estar preparada para receber um contingente, cada vez maior, de pessoas perdidas no lodaçal de suas próprias imperfeições, e que estão nos vales sombrios da ignorância.
Apesar das apropriações indébitas do termo espírita, embora sem conivência, pois cada coisa deve estar em seu devido lugar, todavia os espíritas, respeitamos todas as religiões, valorizamos todos os esforços para a prática do bem, trabalhamos pela confraternização entre todos os homens, independentemente, de raça, cor, nacionalidade, crença ou nível cultural e social, e reconhecemos que, segundo Kardec, “o verdadeiro homem de bem é o que cumpre a lei de justiça, de amor e de caridade, na sua maior pureza”.(4) Sabemos, com as ressalvas descritas no texto, que toda crença é respeitável, quando sincera e conducente à prática do bem. Condenáveis são as crenças que conduzam ao mal. Não podemos faltar com a caridade e atentar contra a liberdade de pensamento. Contudo, os equívocos que se promovem em nome do “Espiritismo” precisam ser corrigidos em nome do projeto confiado a Allan Kardec, no século XIX. Doutra forma, o projeto do movimento espírita brasileiro perderá o sentido e se fracionará, ainda mais, e em se enfraquecendo, tenderá a se extinguir nos ares densos do misticismo inócuo.
É importante não esquecermos de que nas pequeninas concessões vamos descaracterizando o projeto da Terceira Revelação. Por essa razão, Espírita deve ser o nosso caráter, ainda mesmo que nos sintamos em reajuste, depois da queda. Espírita deve ser a nossa conduta, ainda mesmo que estejamos em duras experiências. Espírita deve ser o nome do nosso nome, ainda mesmo que respiremos em aflitivos combates conosco mesmo. Espírita deve ser o claro adjetivo de nossa instituição, ainda mesmo que, por isso, nos faltem as passageiras subvenções e honrarias terrestres.
Repito, mais uma vez, e para finalizar: Nossa intenção com este artigo não é mudar coisa alguma, mesmo porque, não temos poder para tanto, mas sugere que o uso dos termos Kardecismo ou Kardecista não signifique atentar contra a doutrina, ou, ainda, que não sejam motivo de críticas severas ou indignação, pois esses termos estão, intrinsecamente, associados ao termo Espiritismo.
Kardec criou os termos “Espiritismo e Espírita” para que a Doutrina dos Espíritos ficasse bem distinta de tudo que pudesse confundi-la e, também, por não ser o autor, mas o codificador. Sua preocupação maior não era com a autoria, pois sua consciência ética e espiritual jamais o permitiria trair os benfeitores que o assistiam, mas inquietava-se, e com razão, com a confusão que pudesse gerar o sentido múltiplo de alguns vocábulos, como, por exemplo, as palavras “espiritual, espiritualista e espiritualismo”, que, como ele próprio disse, no item I, da Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita, em O Livro dos Espíritos, “dar-lhes uma nova acepção para aplicá-las à doutrina dos Espíritos seria multiplicar as causas já numerosas de anfibologia”. Daí, eu pergunto: e hoje? A mesma inquietação dele, àquela época, é nossa hoje. Então, quais termos ele usaria, hoje, para que a doutrina se mantenha distinta? Sim, porque, atualmente, a constatação da precípua ideia de Kardec é outra, e todos nós sabemos disso. O Espiritismo está sendo confundido e deturpado. Então, quais seriam esses termos? É um caso a pensar e uma pergunta a fazer aos nossos confrades.
Fontes
(1) Kardec, Allan. O que é o Espiritismo, RJ: Ed. FEB, 1999 – Preâmbulo
(2) Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo, RJ: Ed. FEB, 1999 – cap. VI
(3) Evangelho em Família é a reunião dos familiares com propósito de estudar os ensinamentos do Cristo, para melhor vencerem as dificuldades do caminho, uma vez que se apoiam mutuamente no mesmo entendimento desta maravilhosa doutrina que tem um objetivo só para todos: assimilar as lições de Jesus e pô-los em prática para alcançar a paz integral.
(4) Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, RJ: Ed.Feb, 2000, comentário da questão 918.
O consolador – Ano 4 – N 170 – Artigos