Autor: Marcus Vinicius de Azevedo Braga
[…] o corpo sim… Assim como a máxima “espírito não tem sexo” oculta várias discussões sobre sexualidade e gênero, e a sentença “espírito não tem idade” desconsidera questões sociais da juventude e da infância, a afirmativa título desse artigo acaba por servir ao mesmo propósito. Abstrair a questão do espírito, como uma coisa neutra, amorfa, descontextualizada, quase um anjo etéreo, é perigoso. Lembremos que uma das grandes inovações da obra Nosso Lar, de Francisco Cândido Xavier, foi apresentar a vida espiritual em um plano concreto, real. O espírito e a matéria não são coisas isoladas, pois na vida encarnada o espírito se relaciona diretamente com o mundo material, não em uma oposição, mas em uma relação complexa e orgânica.
Esse introito é para mostrar que a questão do racismo, atualmente em ampla discussão, também merece uma discussão no campo do Espiritismo. Em especial, o assunto vem à baila por força da decisão exarada recentemente por um Juiz Federal diante de uma ação popular, denegando o pedido de retirada de circulação do livro “Obras Póstumas”, de Allan Kardec, sob o argumento de nele existirem trechos que atentam contra a igualdade entre os povos e raças, em conflito com normas recentes e internacionalmente aceitas, atinentes ao assunto.
O racismo, o preconceito e as guerras por razões étnicas são construções sociais, de processos históricos longos e dolorosos. O nosso país vivenciou séculos de escravidão, em um processo de libertação dos escravos que não foi acompanhado de uma integração dessa massa de indivíduos à sociedade, relegando a eles a pobreza e a discriminação pelas suas práticas culturais, tendo sido perseguidas pela polícia a capoeira e as religiões de matrizes africanas, assim como foi o Espiritismo perseguido pelo governo no início do século XX.
Destarte, é impossível negar essa realidade. A cor da pele representou e representa forma de dominação e de superioridade entre pessoas, em um processo construído, assim como foram as construções religiosas que movimentaram e movimentam guerras. E essa discriminação anda por aí, em nossos corações e falas.
Sobre o assunto da decisão do juiz denegando o recolhimento de “Obras Póstumas”, vejo que a decisão do Juiz Federal foi sábia, bastando para isso ler a sua fundamentação. Essa questão, infelizmente, não é tão simples. O racismo está presente sim em várias obras literárias, por ser uma situação que foi aceita e estimulada pelo senso comum, inclusive em nosso país, desde longa data. Não é a primeira vez que uma obra clássica é arrolada nessa situação, como na famosa mudança de nome do romance de Agatha Cristie, “O caso dos dez negrinhos”, por solicitação dos herdeiros da referida escritora; e mesmo a recente polêmica sobre a obra “As caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato. Nesse sentido, Nota de 1º de junho de 2011 do Conselho Nacional de Educação (CNE/MEC) apresenta lúcido e interessante posicionamento, do qual transcrevo trechos a seguir:
“Uma sociedade democrática deve proteger o direito de liberdade de expressão e, nesse sentido, não cabe veto à circulação de nenhuma obra literária e artística. Porém, essa mesma sociedade deve garantir o direito à não discriminação, nos termos constitucionais e legais, e de acordo com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Reconhecendo a qualidade ficcional da obra de Monteiro Lobato, em especial, no livro Caçadas de Pedrinho e em outros similares, bem como o seu valor literário, é necessário considerar que somos sujeitos da nossa própria época e responsáveis pelos desdobramentos e efeitos das opções e orientações políticas, pedagógicas e literárias assumidas no contexto em que vivemos. Nesse sentido, a literatura, em sintonia com o mundo, não está fora dos conflitos, das hierarquias de poder e das tensões sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza.”
O posicionamento em relação à obra lobatiana se encaixa como uma luva em relação à questão apontada na obra kardequiana. Obviamente, essas assertivas contidas em “Obras Póstumas” não desmerecem a figura de Allan Kardec, que pregou em seus textos a igualdade. Mas não podemos esquecer que Kardec era um ser humano, um homem do seu tempo, imerso em um contexto social. Sair disso é procurar santos encarnados.
Se julgássemos as obras básicas livros sagrados e imutáveis, escritas por seres atemporais e perfeitos, seríamos católicos e não espíritas. Kardec vivia em uma sociedade com valores e com uma visão de mundo próprios e isso pode vir a se expressar nos seus comentários, por motivos óbvios. Mas as análises da obra kardequiana não devem desconsiderar uma visão global. Podemos citar, por exemplo, a afirmativa na “Revista Espírita”, em outubro de 1861, que se contrapõe totalmente a ideias racistas:
“O Espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente todas as distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre as quais só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.”
Considerando-se ainda trechos das obras básicas, outros reforçam o combate ao racismo, como em :
“Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade.” (A Gênese.)
Ou ainda em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, no texto “O Homem de Bem”, quando diz: “O homem de bem é bom, humano e benevolente para com todos, sem distinção de raças, nem de crenças, porque em todos os homens vê irmãos seus“.
Assim, ater-se a um trecho isoladamente, na discussão se o pensamento de Kardec no século XIX tinha traços de racismo é inócua, principalmente por não ser esse para nós um profeta infalível, considerando ainda que o Espiritismo superou esse modelo beatificador. Kardec rompeu com vários modelos daquela época, ainda que a polêmica citação faça jus a toda essa discussão, merecendo, em minha humilde opinião, uma nota explicativa, no entendimento consoante com a posição apresentada pelo Conselho Nacional de Educação. Para melhor exemplificar, segue um excerto do polêmico trecho:
“[…] Ela nos foi sugerida, assim como a sua solução, pela passagem seguinte de um livro muito interessante e muito instrutivo, intitulado: As revoluções inevitáveis no globo e na Humanidade, por Charles Richard.
[…] Passando à beleza das formas, assim se exprime, às páginas 44 e seguintes:
Somente, será bom não esquecer, nessa comparação, que aqui se trata de classes privilegiadas, sempre mais belas do que as outras, e que, consequentemente, os tipos modernos a se opor aos antigos deverão ser escolhidos nos salões, e não na espelunca. Porque a pobreza, ai!, em todos os tempos, e sob todos os aspectos, jamais foi bela, e é precisamente assim para nos fazer vergonha e nos forçar a dela nos libertar um dia.
[…] O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um gato; mas não é belo no sentido absoluto, porque os seus traços grosseiros, seus lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem bem exprimir as paixões violentas, mas não saberiam se prestar às nuanças delicadas dos sentimentos e às modulações de um espírito fino.
[…] Tendo este artigo sido lido na Sociedade de Paris, foi objeto de um grande número de comunicações, apresentando todas as mesmas conclusões.”
O texto de “Obras Póstumas” deixa claro que Kardec cita um artigo famoso na época e sua correspondente teoria (da beleza), comentando inclusive manifestações de espíritos sobre a questão. Por não se tratar de um ponto basilar da doutrina, por não ser a obra citada um “Livro Sagrado” interpretado ao pé da letra pelos espíritas e por ter sido uma citação de forma incidental, podemos concluir – assim como fez o Juiz – que realmente a infeliz sentença não espelha o pensamento kardequiano ou espírita, como corroborado em outras falas de sua obra. Mas isso não o exime de ser um trecho infeliz, ainda mais se interpretado em um contexto isolado.
A questão é que como toda religião tem um tomo sagrado, contendo a palavra de Deus, as pessoas, às vezes, atribuem à obra kardequiana esse sentido literal, o que realmente traria uma aspecto negativo a essa sentença, assim como a Bíblia, mormente o “Velho Testamento”, tem várias passagens sexistas, de discriminação da mulher. Nunca vi uma reflexão religiosa sobre essas visões nos ditos textos sagrados, mas estão ali preconceitos de hoje nos hábitos do povo hebreu de outrora, que pedem o espírito que vivifica e não a letra que mata.
O que não pode, a meu ver, é que nós espíritas, por qualquer motivo, ignoremos que essa discriminação é um fato vivo, social e construído, ocultando-se na neutralidade de um Espírito sem cor. Temos sim responsabilidade com o combate a essa prática antifraterna, que não coaduna com nossos ideais cristãos.
A questão do racismo deve ser pauta de nossos estudos, das discussões da juventude e deve ser entendida como uma expressão do orgulho do ser humano. O Espiritismo deve apregoar a compreensão entre as manifestações culturais e religiosas, dentro da visão de que não serão essas questões que nos serão “cobradas” no retorno à espiritualidade.
O respeito é uma grande arma contra o racismo e devemos exercitá-lo, principalmente em relação aos irmãos de religiões de matriz africana, que, apesar das nítidas diferenças históricas e doutrinárias, têm seus cultos e liturgias que merecem o mesmo respeito e consideração que devemos às tradicionais missas e aos cultos evangélicos.
Confesso que o momento atual é de exaltação e que algumas manifestações soam agressivas quanto à questão do racismo. Mas são formas de trazer à baila a questão e provocar a reflexão coletiva… Essa exaltação se dá, pois a questão do racismo envolve um processo de segregação e de dor arrastado por gerações. Mas isso não nos exime da questão do preconceito, lembrando que a luta contra o racismo é a luta contra as diferenças e não a construção de diferenças – de ambos os lados.
Por fim, longe de esgotar o assunto, que visivelmente carece de produção literária na seara espírita, fica a questão de revisarmos a nossa vivência, o nosso discurso e acharmos ali o racismo escondido. Fundamental também olhar o passado, verificar que essas chagas não se fecharam todas e que as novas gerações, em um novo contexto, devem interpretar os clássicos – que recebem esse nome pelo seu valor – à luz das novas conceituações e das descobertas científicas, entendendo cada fala no seu tempo, mas sabendo que novos tempos demandam novas falas. A ação popular não pode ser fonte de ódio para o movimento espírita e sim de reflexão sobre essa importante questão, que deve ser enfrentada dentro de nós. Esconder-se dela, jamais!…
O consolador – Ano 5 – N 213