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Estudo sobre os possessos de Morzine

Revista Espírita, dezembro de 1862

Causas da obsessão e meios de combate. Artigo I

As observações que fizemos sobre a epidemia que se abateu, e que se abate ainda, sobre a comuna de Morzine, na Alta Saboia, não nos deixam nenhuma dúvida quanto à causa. Mas, para apoiar nossa opinião, devemos entrar em explicações preliminares que melhor destacarão a analogia desse mal com os casos idênticos, cuja origem não poderia oferecer dúvidas a quem esteja familiarizado com os fenômenos espíritas e reconheça a ação do mundo invisível sobre a Humanidade.

Para tanto, faz-se mister remontar à fonte do mesmo fenômeno e seguir-lhe a gradação, desde os casos mais simples, e ao mesmo tempo explicar como ele se processa. Daí deduziremos muito melhor o meio de combater o mal. Posto que já tenhamos tratado do assunto no Livro dos Médiuns, no capítulo da obsessão, e em diversos artigos desta Revista, aduziremos algumas considerações novas, que tornarão a coisa mais fácil de entender.

O primeiro ponto acerca do qual é importante compenetrar-se é o da natureza dos Espíritos, do ponto de vista moral. Não sendo os Espíritos senão as almas dos homens, e não sendo bons todos os homens, não é racional admitir-se que o Espírito de um perverso de súbito se transforme. Do contrário seria desnecessário o castigo na vida futura. A experiência confirma essa teoria, ou melhor, a teoria é fruto da experiência. Com efeito, mostram-nos as relações com o mundo invisível, ao lado de Espíritos sublimes de sabedoria e de conhecimento, outros ignóbeis, ainda com todos os vícios e paixões da Humanidade.

Após a morte, a alma de um homem de bem será um bom Espírito, da mesma forma que um bom Espírito, encarnando-se, será um homem de bem. Pela mesma razão, ao morrer, um homem perverso dará um Espírito perverso ao mundo invisível, e um Espírito perverso, encarnando-se, não poderá ser um homem virtuoso, e isso até que o Espírito não se tenha depurado ou experimentado o desejo de se melhorar, porque, a partir do momento em que entrou no caminho do progresso, pouco a pouco ele se despoja de seus maus instintos e gradativamente se eleva na hierarquia dos Espíritos, até atingir a perfeição acessível a todos, pois Deus não pode ter criado seres eternamente votados ao mal e à infelicidade.

Assim, os mundos visível e invisível se penetram alternadamente e incessantemente um no outro, se assim podemos dizer, e alimentam-se mutuamente, ou, melhor dizendo, esses dois mundos na realidade constituem um só, em dois estados diferentes. Essa consideração é muito importante para melhor compreenderse a solidariedade que existe entre eles.

Sendo a Terra um mundo inferior, isto é, pouco adiantado, resulta que a imensa maioria dos Espíritos que a povoam, tanto no estado errante quanto encarnados, deve compor-se de Espíritos imperfeitos, que fazem mais mal que bem. Daí a predominância do mal na Terra. Ora, sendo a Terra, ao mesmo tempo, um mundo de expiação, é o contato do mal que torna os homens infelizes, pois se todos os homens fossem bons, todos seriam felizes. É um estado ainda não alcançado por nosso globo, e é para tal estado que Deus quer conduzi-lo. Todas as tribulações aqui experimentadas pelos homens de bem, quer da parte dos homens, quer da dos Espíritos, são a consequência desse estado de inferioridade. Poder-se-ia dizer que a Terra é a Botany-Bay dos mundos. Aí se encontram a selvageria primitiva e a civilização, a criminalidade e a expiação.

É, pois, necessário imaginar-se o mundo invisível como formando uma população incontável, compacta, por assim dizer, que envolve a Terra e se agita no espaço. É uma espécie de atmosfera moral, da qual os Espíritos encarnados ocupam a parte inferior, onde se agitam como num vaso. Ora, assim como o ar das partes baixas é pesado e malsão, esse ar moral é também malsão, porque corrompido pelas emanações dos Espíritos impuros. Para resistir a isso são necessários temperamentos morais dotados de grande vigor.

Digamos, entre parênteses, que tal estado de coisas é inerente aos mundos inferiores, mas que esses mundos seguem a lei do progresso e, atingindo a idade precisa, Deus os saneia, deles expulsando os Espíritos imperfeitos, que não mais aí se reencarnam e são substituídos por outros mais adiantados, que farão reinar a felicidade, a justiça e a paz. É uma revolução desse gênero que no momento se prepara.

Examinemos, agora, o modo de ação recíproca dos encarnados e desencarnados.

Sabemos que os Espíritos são revestidos de um envoltório vaporoso, que lhes forma um verdadeiro corpo fluídico, ao qual damos o nome de perispírito, e cujos elementos são tirados do fluido universal ou cósmico, princípio de todas as coisas.

Quando o Espírito se une a um corpo, aí vive com seu perispírito, que serve de ligação entre o Espírito, propriamente dito, e a matéria corpórea. Ele é o intermediário das sensações percebidas pelo Espírito. Mas esse perispírito não é confinado no corpo, como numa caixa. Por sua natureza fluídica, ele irradia exteriormente e forma em torno do corpo uma espécie de atmosfera, como o vapor que dele se desprende. Mas o vapor que se desprende de um corpo malsão é igualmente malsão, acre e nauseabundo, o que infecta o ar dos lugares onde se reúnem muitas pessoas perversas. Assim como esse vapor é impregnado das qualidades do corpo, o perispírito é impregnado das qualidades, ou seja, do pensamento do Espírito, e irradia tais qualidades em torno do corpo.

Agora outro parêntese para responder de imediato a uma objeção oposta por alguns à teoria que o Espiritismo dá sobre o estado da alma. Acusam-no de materializar a alma, ao passo que, segundo a religião, a alma é puramente imaterial. Como a maior parte das outras, essa objeção provém de um estudo incompleto e superficial. Jamais o Espiritismo definiu a natureza da alma, que escapa às nossas investigações. Ele não diz que o perispírito constitui a alma. O vocábulo perispírito significa positivamente o contrário, pois especifica um envoltório em torno do espírito.

O que diz a respeito O Livro dos Espíritos?“Há no homem três coisas: a alma, ou espírito, princípio inteligente; o corpo, envoltório material; o perispírito, envoltório fluídico semimaterial, que serve de laço entre o espírito e o Corpo”. Do fato que, com a morte do corpo, a alma conserva o envoltório fluídico, não se pode deduzir que tal envoltório e a alma sejam uma só e mesma coisa, da mesma forma que não são uma só e a mesma coisa o corpo e a roupa ou a alma e o corpo.

A Doutrina Espírita nada tira à imaterialidade da alma. Ela apenas lhe dá dois envoltórios, em vez de um, durante a vida corpórea, e só um após a morte do corpo, o que é, não uma hipótese, mas um resultado da observação, e é com o auxílio desse envoltório que melhor se compreende a sua individualidade e melhor se explica a sua ação sobre a matéria.

Voltemos ao nosso assunto.

O perispírito, por sua natureza fluídica, é essencialmente móvel, elástico, se assim se pode dizer. Como agente direto do Espírito, ele é posto em ação e projeta raios, pela vontade do Espírito. Por esses raios ele serve à transmissão do pensamento, porque, de certa forma, está animado pelo pensamento do Espírito.

Sendo o perispírito o laço que une o Espírito ao corpo, é por seu intermédio que o Espírito transmite aos órgãos, não a vida vegetativa, mas os movimentos que exprimem a sua vontade. É também por seu intermédio que as sensações do corpo são transmitidas ao Espírito. Destruído o corpo sólido pela morte, o Espírito não age mais e não percebe mais senão por seu corpo fluídico, ou perispírito. Por isso age mais facilmente e percebe melhor, considerando-se que o corpo é um entrave. Tudo isso é resultado da observação.

Suponhamos agora duas pessoas próximas uma da outra, cada qual envolvida por sua atmosfera perispiritual, ─ permitam-nos o neologismo. Esses dois fluidos põem-se em contato e se penetram um no outro. Se eles forem de natureza antipática, repelem-se, e os dois indivíduos sentirão uma espécie de mal-estar ao se aproximarem um do outro, sem se darem conta disso. Se, ao contrário, forem movidos por um sentimento bom e benevolente, carregarão consigo um pensamento benevolente que atrai. É por isso que duas pessoas se compreendem e se adivinham sem se falarem. Um certo não sei quê por vezes diz que a pessoa que temos diante de nós deve estar animada por tal ou qual sentimento. Ora, esse não sei quê é a expansão do fluido perispiritual da pessoa em contato com o nosso, espécie de fio elétrico condutor do pensamento. A partir daí compreende-se que os Espíritos, cujo envoltório fluídico é muito mais livre do que no estado de encarnação, não necessitam de sons articulados para se entenderem.

O fluido perispiritual do encarnado é, pois, acionado pelo Espírito. Se, por sua vontade, o Espírito, por assim dizer, dardeja raios sobre outro indivíduo, os raios o penetram. Daí a ação magnética mais ou menos poderosa, conforme a vontade; mais ou menos benfazeja, conforme sejam esses raios de natureza melhor ou pior, mais ou menos vivificante, porque eles podem, por sua ação, penetrar os órgãos e, em certos casos, restabelecer o estado normal. Sabe-se qual é a influência das qualidades morais do magnetizador.

Aquilo que pode fazer um Espírito encarnado, dardejando seu próprio fluido sobre uma pessoa, pode igualmente fazê-lo um desencarnado, porque ele tem o mesmo fluido. Assim, ele pode magnetizar e, de acordo com sua natureza boa ou má, sua ação será benéfica ou malfazeja.

Assim, facilmente nos damos conta da natureza das impressões que recebemos, conforme o meio onde nos encontramos. Se uma reunião for composta de pessoas animadas por maus sentimentos, elas enchem o ar ambiente com fluido impregnado de seus pensamentos. Daí, para as almas boas, um mal-estar moral análogo ao malestar físico causado pelas exalações mefíticas: aalma fica asfixiada. Se, ao contrário, as pessoas tiverem intenções puras, encontramo-nos em sua atmosfera como se num ar vivificante e salubre. Naturalmente, o efeito será o mesmo num ambiente cheio de Espíritos, conforme sejam bons ou maus.

Isso bem compreendido, chegamos sem dificuldade à ação material dos Espíritos errantes sobre os Espíritos encarnados, e daí, à explicação da mediunidade.

Se um Espírito quer agir sobre uma pessoa, dela se aproxima e envolve-a, por assim dizer, com o seu perispírito, como se fosse um manto. Os fluidos se penetram; os dois pensamentos e as duas vontades se confundem, e então o Espírito pode servir-se daquele corpo como se fora o seu próprio; fazê-lo agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, etc. Esses são os médiuns. Se o Espírito for bom, sua ação será suave e benéfica, e ele só provocará boas coisas; se for mau, provocará maldades; se for perverso e maldoso, ele o constrange como numa armadilha; paralisa até mesmo a vontade e a razão, que abafa sob seus fluidos, assim como se apaga o fogo sob um lençol d’água; incita-o a pensar, falar e agir por ele, conduzindo-o, contra sua vontade, a atos extravagantes ou ridículos. Numa palavra, ele magnetiza o indivíduo e o leva a uma espécie de catalepsia moral, transformando-o em instrumento cego de sua vontade. Tal é a causa da obsessão, da fascinação e da subjugação, que se mostram em diversos graus de intensidade.

É ao paroxismo da subjugação que geralmente se dá o nome de possessão. Deve notar-se que, nesse estado, muitas vezes o indivíduo tem consciência do ridículo daquilo que faz, mas é constrangido a fazê-lo, como se um homem mais vigoroso que ele o constrangesse, contra sua vontade, a mover os braços, as pernas, a língua.

Eis um curioso exemplo.

Numa pequena reunião em Bordeaux, em meio a uma evocação, o médium, um jovem de caráter suave e perfeita urbanidade, de repente começa a bater na mesa, levanta-se com olhar ameaçador, mostrando os punhos aos assistentes, proferindo pesadas injúrias e querendo atirar-lhes um tinteiro. A cena, tanto mais chocante quanto inesperada, durou aproximadamente dez minutos, depois do que o moço retomou a calma habitual e desculpou-se do que se havia passado, dizendo que sabia muito bem o que havia dito e feito, mas que não pudera impedir.

Quando tomamos conhecimento do fato, pedimos explicação numa sessão da Sociedade de Paris. Foi-nos respondido que o Espírito que o havia provocado era mais farsista do que mau, e que simplesmente queria divertir-se com o pavor dos assistentes. O que prova a veracidade da explicação é que o fato não se repetiu, e que o médium continuou a receber excelentes comunicações, como antes.

É importante esclarecer o que provavelmente excitou a verve daquele Espírito brincalhão. Um antigo dirigente da orquestra do teatro de Bordeaux, o Sr. Beck, tinha experimentado, durante vários anos antes de morrer, um fenômeno singular. Todas as noites, ao sair do teatro, parecia-lhe que um homem lhe saltava às costas, cavalgando às suas espáduas, até chegar à porta da casa. Aí o suposto indivíduo descia e o Sr. Beck se achava livre.

Nessa reunião, quiseram evocar o Sr. Beck e pedir-lhe uma explicação. Foi então que o Espírito farsista houve por bem substituí-lo e fazer o médium representar uma cena diabólica, pois nele encontrou, sem dúvida, as necessárias disposições fluídicas para secundá-lo.

Aquilo que nesta circunstância não passou de acidental, por vezes toma um caráter de permanência, quando o Espírito é mau, porque para ele o indivíduo se torna verdadeira vítima, à qual ele pode dar a aparência de verdadeira loucura. Dizemos aparência, porque a loucura propriamente dita sempre resulta de uma alteração dos órgãos cerebrais, ao passo que neste caso os órgãos estão tão intactos quanto os do jovem de quem acabamos de falar. Não há, pois, loucura real, mas aparente, contra a qual os remédios da terapêutica são impotentes, como o prova a experiência. Além do mais, eles podem produzir o que não existe. As casas de alienados contam com muitos doentes de tal gênero, para os quais o contato com outros alienados só poderá ser muito prejudicial, porque esse estado denota sempre uma certa fraqueza moral. Ao lado de todas as variedades de loucura patológica, convém, pois, acrescentar a loucura obsessiva, que requer meios especiais. Mas como poderá um médico materialista estabelecer essa diferença, ou mesmo admitila?

Bravo! irão exclamar os nossos adversários. Não se pode demonstrar melhor os perigos do Espiritismo, e nós temos razão em proibi-lo.

Um instante! O que dissemos prova precisamente a sua utilidade.

Credes que os maus Espíritos que pululam entre os seres humanos esperaram ser chamados a fim de exercerem sua influência perniciosa? Como os Espíritos existiram desde o início dos tempos, também desde o início dos tempos representaram o mesmo papel, pois esse papel está em sua natureza. Prova disso está na existência de grande número de pessoas obsedadas, ou possessas, se quiserdes, antes que se cogitasse de Espíritos, ou que, em nossos dias, jamais ouviram falar de Espiritismo e de médiuns. A ação dos Espíritos, bons ou maus, é, pois, espontânea. A dos maus produz uma porção de perturbações na economia moral e mesmo física que, por ignorância da verdadeira causa, são atribuídas a causas errôneas. Os maus Espíritos são inimigos invisíveis, tanto mais perigosos quanto menos se suspeita de sua ação. Pondo-os a descoberto, o Espiritismo vem revelar uma nova causa de certos males da Humanidade. Conhecida a causa, não se buscará mais combater o mal por meios que, sabemos agora, são inúteis, mas procurar-se-ão outros mais eficazes.

Ora, quem levou à descoberta dessa causa? A mediunidade. Foi pela mediunidade que esses inimigos ocultos traíram sua presença. Ela fez para eles o que fez o microscópio para os infinitamente pequenos: revelou todo um mundo.

O Espiritismo não atraiu os maus Espíritos. Ele descobriu-os e forneceu os meios de lhes paralisar a ação e, consequentemente, de afastá-los. Ele não trouxe o mal, pois este sempre existiu. Ao contrário, trouxe o remédio ao mal, mostrando-lhe as causas.

Uma vez reconhecida a ação do mundo invisível, ter-se-á a chave de uma porção de fenômenos incompreendidos e a Ciência, enriquecida com essa nova lei, verá novos horizontes se abrirem à sua frente. Quando lá chegará? Quando não mais professar o materialismo, pois este detém seu avanço e lhe interpõe uma barreira intransponível.

Antes de falar do remédio, expliquemos um fato que embaraça muitos espíritas, sobretudo nos casos de obsessão simples, isto é, naqueles muito frequentes, em que o médium não se pode desvencilhar de um mau Espírito que por ele se manifesta obstinadamente, pela escrita ou pela audição, e naquele, não menos frequente, em que, no meio de uma boa comunicação, vem um Espírito imiscuir-se para dizer coisas más. Pergunta-se, então, se os maus Espíritos são mais poderosos que os bons.

Reportemo-nos ao que dissemos no início, sobre a maneira como age o Espírito, e figuremos um médium envolvido, penetrado pelo fluido perispiritual de um mau Espírito. Para que o fluido de um bom Espírito possa agir sobre o médium, é necessário que ele penetre esse envoltório, e sabe-se que dificilmente a luz penetra um nevoeiro espesso. Conforme o grau da obsessão, o nevoeiro será permanente, tenaz ou intermitente e, consequentemente, mais fácil ou menos fácil de dissipar.

Nosso correspondente em Parma, Sr. Superchi, enviou-nos dois desenhos feitos por um vidente, representando perfeitamente essa situação. Num deles vê-se a mão do médium envolta numa nuvem escura, imagem do fluido perispiritual dos maus Espíritos, atravessada por um raio luminoso que vai clarear a mão. É o bom fluido que a dirige e se opõe à ação do mau. No outro, a mão está na sombra, e a luz está em volta do nevoeiro, que ela não pode penetrar. Aquilo que o desenho limita à mão, deve entender-se em relação ao corpo inteiro do médium.

Resta ainda a questão de saber se o bom Espírito é menos

poderoso que o mau. Não é o bom Espírito que é mais fraco. É o médium que não é bastante forte para livrar-se do manto que sobre si foi lançado; para se desembaraçar dos braços que o apertam, com o que ─ é bom dizer ─ por vezes ele se compraz. Nesse caso, compreende-se que o bom Espírito não possa dominar, pois o outro é preferido.

Admitamos, agora, o desejo de se desembaraçar desse envoltório fluídico de que o seu se acha penetrado, como de uma vestimenta impregnada pela umidade. Não bastará o desejo e nem mesmo a vontade é sempre suficiente. Trata-se de lutar contra um adversário. Ora, quando dois homens lutam corpo a corpo, é o de músculos mais fortes que vencerá o outro. Com um Espírito não se luta corpo a corpo, mas de Espírito a Espírito. É ainda o mais forte que será o vencedor. Aqui, a força está na autoridade que se pode exercer sobre o Espírito e tal autoridade está subordinada à superioridade moral.

A superioridade moral é como o sol, que dissipa o nevoeiro pela força de seus raios. Esforçar-se para ser bom; para tornar-se melhor se já se é bom; purificar-se de suas imperfeições; numa palavra, elevar-se moralmente o mais possível, tal é o meio de adquirir o poder de comandar os Espíritos inferiores, para afastá-los. Do contrário, eles zombarão de vossas injunções. (O Livro dos Médiuns, nº. 252 e 279).

Talvez perguntem por que os Espíritos protetores não lhes forçam a retirada. Sem dúvida o podem, e por vezes o fazem. Mas, permitindo a luta, também deixam o mérito da vitória. Se eles deixam pessoas com algum tipo de mérito se debaterem, é para pôr em prova sua perseverança e fazer com que adquiram mais força no bem. É para elas uma espécie de ginástica moral.

Eis a resposta que demos ao Sr. P…, coronel do estado-maior do exército austríaco, que nos consultava sobre uma afecção que ele atribuía aos maus Espíritos, desculpando-se por nos chamar de amigo, posto só nos conhecesse de nome:

“O Espiritismo é o laço fraterno por excelência, e tendes razão de pensar que os que partilham essa crença, mesmo sem se conhecerem, devam tratar-se como amigos. Agradeço-vos por terdes tido de mim uma boa opinião e me dardes esse título.

“Sinto-me feliz por encontrar em vós um adepto sincero e devotado a esta consoladora doutrina. Mas, pelo próprio fato de ser consoladora, ela deve dar força moral e resignação para suportar as provas da vida que, no mais das vezes, são expiação. Disto a Revista Espírita vos fornece numerosos exemplos.

“No que concerne à moléstia que sofreis, não vejo prova evidente da influência de maus Espíritos que vos obsidiariam. Admitamo-lo, pois, por hipótese. Só haveria uma força moral a opor a outra força moral, e essa não pode vir senão de vós.

“Contra um Espírito é necessário lutar de Espírito a Espírito, e o mais forte vencerá. Em casos semelhantes é preciso esforçar-se por adquirir a maior soma possível de superioridade pela vontade, pela energia e pelas qualidades morais, para ter o direito de lhe dizer: Vade retro! Assim, se estiverdes nesse caso, não será com a espada de coronel que o vencereis, mas com a espada do anjo, isto é, a virtude e a prece.

“A espécie de terror e angústia que experimentais nesses momentos é um sinal de fraqueza, que o Espírito aproveita.

“Dominai o medo, e com a vontade triunfareis. Tomai a iniciativa resolutamente, como o fazeis ante o inimigo, e crede-me vosso muito dedicado e afeiçoado,

“A. K.”

Sem dúvida certas pessoas prefeririam outra receita mais fácil para expulsar os Espíritos: algumas palavras a pronunciar, ou sinais a fazer, por exemplo, o que seria mais cômodo do que corrigir os próprios defeitos. Lamentamos, mas não conhecemos processo mais eficaz para vencer um inimigo do que ser mais forte que ele. Quando estamos doentes, temos que nos resignar a tomar remédios, por mais amargos que sejam. Mas, também, quando se teve a coragem de tomá-los, como a gente se sente bem e como fica forte! Temos que nos persuadir de que, para alcançar tal objetivo, não há palavras sacramentais, nem fórmulas, nem talismãs, nem sinais materiais quaisquer. Os maus Espíritos se riem e, às vezes, gostam de indicar alguns, que dizem infalíveis, para melhor captar a confiança daqueles de quem abusam, porque então esses, confiantes na virtude do processo, entregam-se sem medo.

Antes de esperar dominar o mau Espírito, é preciso dominar-se a si mesmo. De todos os meios para adquirir a força de consegui-lo, o mais eficaz é a vontade secundada pela prece, a prece de coração, entenda-se, e não de palavras, na qual a boca participa mais que o pensamento. É necessário pedir a seu anjo de guarda e aos bons Espíritos que nos assistam na luta. Mas não basta lhes pedir que expulsem o mau Espírito. É necessário lembrar-se da máxima: Ajuda-te, e o Céu te ajudará; e lhes pedir, sobretudo, a força que nos falta para vencer nossas más inclinações, que para nós são piores que os maus Espíritos, pois são essas inclinações que os atraem, como a podridão atrai as aves de rapina. Orar pelo Espírito obsessor é retribuir-lhe o mal com o bem, e mostrar-se melhor que ele, o que já é uma demonstração de superioridade. Com a perseverança, a gente acaba, na maioria dos casos, por conduzi-lo a melhores sentimentos, transformando o obsessor em reconhecido.

Em resumo, a prece fervorosa e os esforços sérios por se melhorar são os únicos meios de afastar os maus Espíritos, que reconhecem seus mestres naqueles que praticam o bem, ao passo que as fórmulas lhes provocam o riso. A cólera e a impaciência os excitam. É preciso cansá-los, mostrando-se mais pacientes do que eles.

Por vezes, entretanto, acontece que a subjugação atinge o ponto de paralisar a vontade do obsedado, e que deste não se pode esperar nenhum concurso valioso. É sobretudo então que a intervenção de terceiros se torna necessária, quer pela prece, quer pela ação magnética. Mas o poder dessa intervenção também depende do ascendente moral que o interventor possa ter sobre os Espíritos, porque, se não valerem mais, sua ação será estéril.

Nesse caso, a ação magnética terá por efeito penetrar o fluido do obsedado por um fluido melhor, e desprender o fluido do Espírito mau. Ao operar, deve o magnetizador ter o duplo objetivo de opor uma força moral a outra força moral e produzir sobre o paciente uma espécie de reação química, para usar uma comparação material, substituindo um fluido por outro fluido. Assim, ele não só opera um desprendimento salutar, mas fortalece os órgãos enfraquecidos por uma longa e por vezes vigorosa dominação.

Aliás, compreende-se que o poder da ação fluídica não só está na razão da força de vontade, mas, sobretudo, da qualidade do fluido introduzido e, conforme dissemos, tal qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador. Daí se segue que um magnetizador comum, que agisse maquinalmente para magnetizar pura e simplesmente, produziria pouco ou nenhum efeito. É de toda necessidade um magnetizador espírita que atue com conhecimento de causa, com a intenção de produzir, não o sonambulismo ou a cura orgânica, mas os efeitos que acabamos de descrever. Além disso, é evidente que uma ação magnética dirigida nesse sentido não deixa de ser útil nos casos de obsessão ordinária, porque então, se o magnetizador for secundado pela vontade do obsedado, o Espírito será combatido por dois adversários, em vez de um.

É preciso dizer ainda que a gente muitas vezes responsabiliza os Espíritos estranhos por maldades pelas quais eles não são responsáveis.

Certos estados mórbidos e certas aberrações que são atribuídas a uma causa oculta, são, por vezes, devidos exclusivamente ao Espírito do indivíduo. As contrariedades frequentemente concentradas em si próprio, os sofrimentos amorosos, principalmente, têm levado ao cometimento de muitos atos excêntricos, que erradamente são levados à conta de obsessão. Muitas vezes a criatura é seu próprio obsessor.

Acrescentemos, finalmente, que certas obsessões tenazes, sobretudo de pessoas de mérito, por vezes fazem parte das provas a que se acham submetidas. “Por vezes, mesmo, acontece que a obsessão, quando simples, é uma tarefa imposta ao obsedado, que deve trabalhar para melhorar o obsessor, como um pai por um filho vicioso.”

Enviamos o leitor, para mais detalhes, a O Livro dos Médiuns.

Resta-nos falar da obsessão coletiva ou epidêmica e, em particular, da de Morzine. Isso, porém, exige considerações de certa amplitude, para mostrar, pelos fatos, sua similitude com as obsessões individuais. A prova disto encontraremos em nossas próprias observações e nas que são descritas nos relatórios dos médicos.

Além disso, resta-nos examinar o efeito dos meios empregados, e depois, a ação do exorcismo e as condições nas quais ele pode ser eficaz ou nulo.

A extensão dessa segunda parte obriga-nos a transformá-la em tema de um artigo especial, no próximo número.

Causas da obsessão e meios de combate. Artigo II

Revista Espírita, janeiro de 1863

Em nosso artigo precedente (de dezembro último), foi exposta a maneira pela qual se exerce a ação dos Espíritos sobre o homem, ação, por assim dizer, material.

Sua causa está inteiramente no perispírito, princípio não só de todos os fenômenos espíritas propriamente ditos, mas de uma porção de efeitos morais, fisiológicos e patológicos incompreendidos antes do conhecimento desse agente, cuja descoberta, se assim se pode dizer, abrirá horizontes novos à Ciência, quando esta se decidir a reconhecer a existência do mundo invisível.

Como vimos, o perispírito representa importante papel em todos os fenômenos da vida. Ele é a fonte de múltiplas afecções, cuja causa é em vão buscada pelo escalpelo na alteração dos órgãos, e contra as quais é impotente a terapêutica.

Por sua expansão explicam-se, ainda, as reações de indivíduo a indivíduo, as atrações e repulsões instintivas, a ação magnética, etc. No Espírito livre, isto é, desencarnado, o perispírito substitui o corpo material. Ele é o agente sensitivo, o órgão através do qual o Espírito age.

Pela natureza fluídica e expansiva do perispírito, o Espírito atinge o indivíduo sobre o qual quer agir, rodeia-o, envolve-o, penetra-o e o magnetiza.

O homem, que vive em meio ao mundo invisível, está incessantemente submetido a essas influências, do mesmo modo que às da atmosfera que respira, e essa influência se traduz por efeitos morais e fisiológicos, dos quais não se dá conta e que ele frequentemente atribui a causas inteiramente contrárias.

Essa influência difere, naturalmente, segundo as boas ou más qualidades do Espírito, como ficou explicado no artigo precedente. Se ele for bom e benevolente, a influência, ou a impressão, se assim o preferirem, será agradável e salutar. É como as carícias de uma terna mãe, que toma o filho nos braços. Se ele for mau e perverso, ela será dura, penosa, ansiosa e por vezes malfazeja. Ela não o abraça, constringe.

Vivemos nesse oceano fluídico, incessantemente a braços com correntes contrárias, que atraímos ou repelimos, ou às quais nos abandonamos, conforme nossas qualidades pessoais, mas em cujo meio o homem sempre conserva o seu livre-arbítrio, atributo essencial de sua natureza, em virtude do qual pode sempre escolher o seu caminho.

Como se vê, isto é inteiramente independente da faculdade mediúnica, tal qual esta é vulgarmente compreendida. Estando a ação do mundo invisível na ordem das coisas naturais, ela se exerce sobre o homem, abstração feita de qualquer conhecimento espírita. Estamos a elas submetidos como o estamos à ação da eletricidade atmosférica, mesmo sem saber Física; como ficamos doentes sem conhecer Medicina.

Ora, assim como a Física nos ensina a causa de certos fenômenos e a Medicina a de certas doenças, o estudo da ciência espírita nos ensina a dos fenômenos devidos às influências ocultas do mundo invisível e nos explica o que, sem isto, nos parecia inexplicável.

A mediunidade é o meio direto de observação. O médium ─ permitam-nos a comparação ─ é o instrumento de laboratório pelo qual a ação do mundo invisível se traduz de maneira patente. Pela facilidade que ela nos oferece de repetir as experiências, permite-nos estudar o modo e as diversas nuanças dessa ação. Foi desses estudos e dessas observações que nasceu a ciência espírita. Todo indivíduo que, de uma maneira qualquer, sofre a influência dos Espíritos, é, por isso mesmo, médium, e por isso mesmo pode-se dizer que todos os indivíduos são médiuns. Mas é pela mediunidade efetiva, consciente e facultativa, que se chegou a constatar a existência do mundo invisível, e pela diversidade das manifestações obtidas ou provocadas que tomamos conhecimento da qualidade dos seres que o compõem, e do papel que eles representam na Natureza. O médium fez pelo mundo invisível o mesmo que o microscópio fez pelo mundo dos infinitamente pequenos.

É, pois, uma nova força, uma nova energia, uma nova lei, numa palavra, que nos foi revelada.

É realmente inconcebível que a incredulidade chegue a repelir essa ideia porque ela pressupõe em nós uma alma, um princípio inteligente que sobrevive ao corpo.

Se se tratasse da descoberta de uma substância material e não inteligente, seria aceita sem dificuldade, mas uma ação inteligente fora do homem é para eles superstição. Se da observação dos fatos produzidos pela mediunidade remontarmos aos fatos gerais, poderemos, pela similitude dos efeitos, concluir pela similitude das causas. Ora, é constatando a analogia dos fenômenos de Morzine com aqueles que diáriamente a mediunidade põe aos nossos olhos, que nos parece evidente a participação de Espíritos malfeitores naquelas circunstâncias, e não o será menos para quantos hajam meditado acerca dos numerosos casos isolados relatados na Revista Espírita.

A única diferença está no caráter epidêmico da afecção.

A História registra vários fatos semelhantes, entre os quais o das religiosas de Loudun, dos convulsionários de Saint-Médard, dos das Cévènes e dos possessos do tempo do Cristo. Estes últimos, sobretudo, apresentam notável analogia com os de Morzine. Uma coisa digna de nota é que, em qualquer parte onde esses fenômenos se produziram, a ideia de que eram devidos aos Espíritos era dominante e como que intuitiva naqueles que eram afetados.

Se nos quisermos reportar ao nosso primeiro artigo; à teoria da obsessão contida em O Livro dos Médiuns e aos fatos relatados na Revista, veremos que a ação dos maus Espíritos sobre as criaturas de quem se apoderam apresenta nuanças extremamente variadas de intensidade e duração, conforme o grau de malignidade e perversidade do Espírito, e também de acordo com o estado moral da pessoa que lhes dá acesso mais ou menos fácil.

Muitas vezes tal ação é temporária e acidental, mais maliciosa e desagradável que perigosa, como no caso que relatamos no artigo precedente.

O fato seguinte pertence a essa categoria.

O Sr. Indermühle, de Berne, membro da Sociedade Espírita de Paris, contounos que, em sua propriedade de Zimmerwald, seu administrador, homem de força hercúlea, sentiu-se, à noite, agarrado por um indivíduo que o sacudia vigorosamente.

Dir-se-ia que era um pesadelo. Mas não, porque o homem estava bem desperto, levantou-se e lutou por algum tempo com aquele que o agarrava, e quando se sentiu livre, tomou do sabre que estava pendurado ao lado do leito e pôs-se a esgrimi-lo no escuro, sem nada atingir. Acendeu uma vela e procurou em vão por toda parte. A porta estava bem fechada.

Logo que ele voltou ao leito, o jardineiro que estava no quarto ao lado começou a pedir socorro, debatendo-se e gritando que o estrangulavam. O caseiro correu para o quarto do jardineiro, mas, como no seu caso, não encontrou ninguém.

Uma criada que dormia no mesmo prédio ouviu todo o barulho. Apavorados, todos foram, no dia seguinte, contar ao Sr. Indermühle o que se havia passado.

Depois de informar-se de todos os detalhes e de assegurar-se que nenhum estranho poderia ter-se introduzido nos quartos, o Sr. Indermühle foi levado a crer que se tratava de uma brincadeira de mau gosto de algum Espírito, porque, há algum tempo, inequívocas manifestações físicas de diversas modalidades se produziam em sua própria casa.

Ele tranquilizou os seus serviçais, recomendando que observassem cuidadosamente tudo quanto se passasse, caso a coisa se repetisse.

Como ele e sua esposa são médiuns, ele evocou o Espírito perturbador, que confessou o fato e desculpou-se dizendo: “Eu vos queria falar, pois sou infeliz e necessito de vossas preces. Há muito tempo faço tudo o que posso para vos chamar a atenção: Eu vos toco, e até já vos puxei a orelha (do que se recordou o Sr. Indermühle), mas sem resultado. Então, pensei que fazendo a cena da noite passada pensaríeis em me chamar. Fizeste-o e estou contente, mas asseguro-vos que não tinha más intenções. Prometei chamar-me algumas vezes e orar por mim.”

O Sr. Indermühle fez-lhe uma severa advertência, repetiu a conversa, deu-lhe uma lição de moral que ele escutou com prazer, orou por ele e disse à sua gente que fizesse o mesmo, o que foi feito, pois são piedosos, e desde então tudo ficou em ordem.

Infelizmente nem todos têm tão boa disposição. Esse não era mau. Há alguns, porém, cuja ação é tenaz, permanente, e pode até mesmo haver consequências desagradáveis para a saúde da criatura, mais do isto, para as faculdades intelectuais, caso o Espírito chegue a subjugar a sua vítima a ponto de neutralizar seu livrearbítrio e de levá-la a dizer e fazer extravagâncias. Tal é o caso da loucura obsessiva, muito diversa nas causas, senão nos efeitos, da loucura patológica.

Em nossa viagem, vimos o jovem obsidiado, do qual falamos na Revista de janeiro de 1861, sob o título de Espírito batedor de Aube, e ouvimos do pai e de testemunhas oculares a confirmação dos fatos. O rapaz tem agora dezesseis anos; é saudável, grande, perfeitamente constituído e, contudo, queixa-se do estômago e de fraqueza dos membros, o que, segundo ele, o impede de trabalhar. Vendo-o, pode-se facilmente crer seja a preguiça sua principal doença, o que nada tira à realidade dos fenômenos produzidos há cinco anos e que, sob muitos aspectos, lembram os de Bergzabern (Revista de maio, junho e julho de 1858). Já não é o mesmo com sua saúde moral. Em criança era muito inteligente e na escola aprendia com facilidade.

Desde então suas faculdades enfraqueceram sensivelmente. É preciso acrescentar que só recentemente ele e seus pais tomaram conhecimento do Espiritismo, ainda por ouvir dizer e muito superficialmente, pois nada leram. Antes, nunca tinham ouvido falar. Não era possível, assim, ter uma causa provocadora.

Os fenômenos materiais praticamente cessaram ou são hoje muito raros, mas o estado moral é o mesmo, o que é tanto mais lamentável para os pais, que vivem do trabalho.

Sabe-se da influência da prece em tais casos, mas, como nada se pode esperar do rapaz nesse sentido, seria necessário o concurso dos pais.

Eles estão persuadidos de que o filho está sob malévola influência oculta, mas sua crença não vai muito além, e sua fé religiosa é das mais fracas.

Dissemos ao pai que era necessário orar, mas orar seriamente e com fervor. “É o que já me disseram”, respondeu ele. “Orei algumas vezes, mas sem resultado. Se eu soubesse que orando diversas vezes durante vinte e quatro horas e isto acabaria, eu o faria exatamente agora.” Vê-se por aí de que maneira a gente é secundada nessas circunstâncias pelos maiores interessados.

Eis a contrapartida do caso, e uma prova da eficácia da prece quando feita com o coração e não com os lábios.

Certa moça, contrariada em suas inclinações, havia-se casado com um homem com quem ela não simpatizava. A mágoa que sofreu levou-a a um distúrbio das faculdades mentais. Sob o domínio de uma ideia fixa, ela perdeu a razão e teve de ser internada. Ela jamais ouvira falar de Espiritismo, mas se dele se tivesse ocupado, teriam dito que os Espíritos lhe haviam transtornado a cabeça. O mal provinha, assim, de uma causa moral acidental e exclusivamente pessoal. Compreende-se que em tais casos os remédios normais nenhum efeito produziriam, e como não havia obsessão aparente, podia-se também duvidar da eficácia da prece.

Um amigo da família, membro da Sociedade Espírita de Paris, achou que deveria interrogar um Espírito superior acerca desse caso, o qual lhe respondeu:

“A ideia fixa dessa senhora, por causa dela mesma, atrai para junto dela uma porção de Espíritos maus que a envolvem com seus fluidos, alimentam as suas ideias e impedem que lhe cheguem as boas influências.

“Os Espíritos dessa natureza abundam sempre em meios semelhantes àquele em que ela se encontra, e frequentemente constituem obstáculo à cura dos doentes.

Contudo, podereis curá-la, mas para tanto é necessária uma força moral capaz de vencer a resistência, e tal força não é dada a um só. Cinco ou seis espíritas sinceros se reúnam todos os dias, durante alguns instantes e peçam com fervor a Deus e aos bons Espíritos que a assistam, e que a vossa ardente prece seja, ao mesmo tempo, uma magnetização mental.

“Para tanto, não necessitais estar junto a ela. Ao contrário, podeis, pelo pensamento, levar-lhe uma salutar corrente fluídica, cuja força estará na razão direta de vossa intenção, e aumentada pelo número. Dessa maneira podereis neutralizar o mau fluido que a envolve. Fazei isto, tende fé em Deus e esperai.”

Seis pessoas se dedicaram a essa obra de caridade, e durante um mês não faltaram um só dia à missão que haviam aceito. Depois de alguns dias, a doente estava sensivelmente mais calma. Quinze dias mais tarde a melhora era manifesta, e agora ela voltou para sua casa em estado perfeitamente normal, ignorando ainda, assim como seu marido, de onde lhe veio a cura.

A maneira de agir é aqui indicada claramente e nada teríamos a acrescentar de mais preciso à explicação dada pelo Espírito. A prece não tem apenas o efeito de chamar para junto do doente um socorro estranho, mas também o de exercer uma ação magnética.

De que não seria capaz o magnetismo, ajudado pela prece! Infelizmente certos magnetizadores, a exemplo de muitos médicos, fazem abstração do elemento espiritual. Eles veem apenas a ação mecânica, assim se privando de poderoso auxiliar. Esperamos que os verdadeiros espíritas vejam neste fato, mais uma prova do bem que podem fazer em circunstâncias semelhantes.

Aqui naturalmente se apresenta uma questão de grande importância:

O exercício da mediunidade pode provocar o desarranjo da saúde e das faculdades mentais?

É de se notar que, assim formulada, esta é a pergunta feita pela maioria dos antagonistas do Espiritismo, ou melhor, em vez de fazerem uma pergunta, eles transformam o princípio em axioma, afirmando que a mediunidade conduz à loucura. Referimo-nos à loucura real e não a esta, mais burlesca do que séria, com que gratificam os nossos adeptos.

Poder-se-ia conceber essa pergunta da parte de quem acreditasse na existência dos Espíritos e na ação que eles podem exercer, porque, para eles, existe algo de real. Mas, para os que não acreditam, a pergunta é um contrassenso, porque, se nada existe, esse nada não poderá produzir coisa alguma.

Sendo essa tese insustentável, eles se escudam nos perigos da superexcitação cerebral que, em sua opinião, pode ser causada pela simples crença nos Espíritos.

Não voltaremos a esse ponto já estudado, mas perguntaremos se já foi feita a estatística de todos os cérebros transtornados pelo medo do diabo e dos terríveis quadros das torturas do inferno e da danação eterna, e se é mais prejudicial acreditarmos que temos junto de nós Espíritos bons e benevolentes, nossos parentes, nossos amigos e nosso anjo da guarda, ou o demônio.

Desde que se admita a existência dos Espíritos e sua ação, a pergunta formulada da seguinte maneira é mais racional e mais séria:

O exercício da mediunidade pode provocar numa pessoa a invasão de maus Espíritos e suas consequências?

Jamais dissimulamos os escolhos encontradiços na mediunidade, razão por que multiplicamos, em O Livro dos Médiuns, as instruções a tal respeito, e não temos cessado de recomendar o seu estudo prévio, antes de se entregarem à prática. Assim, desde a publicação daquele livro, o número de obsidiados diminuiu sensível e notoriamente, porque poupa uma experiência que os noviços muitas vezes só adquirem às próprias custas. Afirmamos mais uma vez: Sim, sem experiência, a mediunidade tem inconvenientes, dos quais o menor seria ser mistificado por Espíritos enganadores e levianos. Fazer Espiritismo experimental sem estudo é fazer manipulações químicas sem saber química.

Os numerosos exemplos de pessoas obsidiadas e subjugadas da mais desagradável maneira, sem jamais terem ouvido falar de Espiritismo, provam à saciedade que o exercício da mediunidade não tem o privilégio de atrair os maus Espíritos. Mais do que isto, prova a experiência que ela é um meio de afastá-los, pois permite reconhecê-los.

Contudo, como por vezes alguns vagam em redor de nós, pode acontecer que, encontrando oportunidade para se manifestarem, aproveitem-na, desde que encontrem no médium uma predisposição física ou moral que o torne acessível à sua influência. Ora, tal predisposição está no indivíduo e em causas pessoais anteriores, e não surgiram da mediunidade. Pode-se dizer que o exercício da faculdade é uma ocasião e não uma causa.

Mas, se algumas criaturas estão neste caso, outras há que oferecem uma resistência intransponível aos maus Espíritos, que a elas não se dirigem. Falamos de Espíritos realmente maus e malfeitores, os únicos realmente perigosos, e não de Espíritos levianos e zombeteiros, que se insinuam por toda a parte.

A presunção de julgar-se invulnerável pelos maus Espíritos muitas vezes tem sido punida de modo cruel, porque eles jamais são impunemente desafiados pelo orgulho. O orgulho é a porta que lhes dá mais fácil acesso, pois ninguém oferece menos resistência do que o orgulhoso, quando é atacado pelo seu lado fraco. Antes de nos dirigirmos aos Espíritos, convém, pois, encouraçarmo-nos contra o assalto dos maus, assim como se marchássemos em terreno onde tememos picadas de cobras. Isto se consegue, inicialmente, pelo estudo prévio, que indica a rota e as precauções a tomar; em seguida, pela prece. Mas é necessário bem nos compenetrarmos de que, em verdade, o único preservativo está em nós, em nossa própria força, e nunca nas coisas exteriores, e que não há talismãs, nem amuletos, nem palavras sacramentais, nem fórmulas sagradas ou profanas que tenham a menor eficácia se não tivermos em nós mesmos as qualidades necessárias. Assim, essas qualidades é que devem ser adquiridas.

Se estivéssemos bem compenetrados do objetivo essencial e sério do Espiritismo; se nos preparássemos constantemente para o exercício da mediunidade por um fervoroso apelo a nosso anjo da guarda e aos nossos Espíritos protetores; se nos estudássemos, esforçando-nos por nos purificarmos de nossas imperfeições, os casos de obsessão mediúnica seriam ainda mais raros.

Infelizmente, muitos veem apenas o fato das manifestações. Não contentes com as provas morais que abundam em seu redor, querem a qualquer preço dar-se à satisfação de comunicar-se pessoalmente com os Espíritos, forçando o desenvolvimento de uma faculdade por vezes neles inexistente, guiados mais pela curiosidade do que pelo sincero desejo de melhorar-se. Disso resulta que, em vez de se envolverem numa atmosfera fluídica salutar; de se cobrirem com as asas protetoras de seus anjos guardiães; de buscarem o domínio das fraquezas morais, escancaram a porta aos Espíritos obsessores que os teriam atormentado de outra maneira e em outra ocasião, mas que aproveitam a que lhes é ofertada.

Que dizer, então, daqueles que fazem um jogo das manifestações e nelas veem apenas um motivo para distração e curiosidade ou nelas procuram meios de satisfazer a ambição, a cupidez ou os interesses materiais? É nesses casos que se pode dizer que o exercício da mediunidade pode provocar a invasão dos maus Espíritos. Sim, é perigoso brincar com essas coisas. Quantas pessoas leem O Livro dos Médiuns unicamente para saber como agir, porque o que mais lhes interessa é a receita ou a maneira de proceder! O lado moral do problema é acessório. Assim, não se deve imputar ao Espiritismo o que é resultado da imprudência. Voltemos aos possessos de Morzine.

Aquilo que um Espírito pode fazer a uma criatura, vários Espíritos podem fazer sobre diversos indivíduos, simultaneamente, e dar à obsessão um caráter epidêmico.

Uma nuvem de maus Espíritos pode invadir uma localidade e aí manifestar-se de várias maneiras. Foi uma epidemia de tal gênero que se alastrou na Judeia, ao tempo do Cristo, e, em nossa opinião, é uma epidemia semelhante que abateu-se sobre Morzine.

É o que procuraremos estabelecer num próximo artigo, no qual destacaremos os caracteres essencialmente obsessivos dessa afecção. Analisaremos os relatórios dos médicos que a observaram, entre outros o do Dr. Constant, bem como os meios de cura empregados, seja pela medicina, seja pelos exorcismos.

Revista Espírita, fevereiro de 1863

Causas da obsessão e meios de combate. Artigo III

O estudo dos fenômenos de Morzine não oferecerá, por assim dizer, nenhuma dificuldade, quando estivermos bem compenetrados dos fatos particulares que citamos, e das considerações que um estudo atento permitiu deduzir das mesmas. Basta relatá-los para que cada um encontre por si mesmo sua aplicação, por analogia. Os dois fatos seguintes ainda nos ajudarão a pôr o leitor no caminho certo. O primeiro nos é transmitido pelo Dr. Chaigneau, membro honorário da Sociedade de Paris, presidente da Sociedade Espírita de Saint-Jean d’Angély.

“Uma família fazia evocações com um ardor desenfreado, arrastada por um Espírito que nos foi assinalado como muito perigoso. Era um de seus parentes, falecido depois de uma vida pouco decente e marcada, em seu final, por vários anos de alienação mental. Sob nome fictício, por surpreendentes provas mecânicas, belas promessas e conselhos de uma moralidade sem reservas, tinha conseguido de tal modo fascinar aquela gente muito crédula, que submetia todos às suas exigências e os obrigava aos atos mais excêntricos. Não podendo mais satisfazer a todos os seus desejos, pediram o nosso conselho e tivemos muito trabalho para dissuadi-los e provar-lhes que tratavam com um Espírito da pior espécie. Conseguimo-lo, entretanto, e pudemos obter que eles se abstivessem, ao menos por algum tempo. Desde então a obsessão tomou outro caráter: O Espírito se apoderava completamente do filho mais moço, de quatorze anos, o reduzia ao estado de catalepsia e, por sua boca, solicitava entretenimentos, dava ordens, fazia ameaças. Aconselhamos o mais absoluto mutismo, que foi observado rigorosamente. Os pais entregaram-se às preces e vinham procurar um de nós para assisti-los. O recolhimento e a força de vontade sempre nos deram domínio, em poucos minutos.

“Praticamente, hoje, tudo cessou. Esperamos que na casa a ordem suceda a desordem. Longe de se desgostarem do Espiritismo, eles creem mais que nunca, mas creem mais seriamente. Agora eles compreendem sua finalidade e suas consequências morais. Todos compreendem que receberam uma lição. Alguns, uma punição, talvez merecida.”

Este exemplo prova, mais uma vez, o inconveniente de nos entregarmos às evocações sem conhecimento de causa e sem objetivo sério. Graças aos conselhos da experiência, que aquelas pessoas escutaram, puderam desembaraçar-se de um inimigo talvez terrível.

Disto ressalta outro ensinamento não menos importante. Aos olhos dos desconhecedores do Espiritismo, o rapaz teria passado por um louco. Não deixariam de lhe dar o tratamento correspondente, que teria possivelmente desenvolvido uma loucura real. Com a assistência de um médico espírita, o mal foi atacado em sua verdadeira causa e não teve consequências.

Já o mesmo não se deu no fato seguinte.

Um senhor, nosso conhecido, residente numa cidade provinciana muito hostil às ideias espíritas, de súbito foi tomado por uma espécie de delírio, no qual dizia coisas absurdas. Como se ocupasse de Espiritismo, naturalmente falava de Espíritos. Assustadas e alarmadas, as pessoas mais próximas, sem aprofundar as coisas, apressadamente trataram de chamar os médicos, que o declararam atacado de loucura, para grande satisfação dos inimigos do Espiritismo, que já falavam em interná-lo numa casa de saúde.

Tudo quanto coligimos em relação às circunstâncias desse acontecimento, prova que aquele senhor foi submetido ao império de uma subjugação momentânea, talvez favorecida por certas condições físicas. Foi a ideia que ele teve. Escreveu-nos e nós lhe respondemos. Infelizmente nossa carta não lhe chegou a tempo e dela só teve conhecimento muito mais tarde. “É muito lamentável”, disse-nos ele posteriormente, “que não tenha recebido vossa carta consoladora. Naquele momento, ela me teria feito um bem imenso, confirmando-me a ideia de que eu era joguete de uma obsessão, o que me teria tranquilizado, ao passo que eu ouvia com tanta frequência repetirem à minha volta que eu estava louco, que acabei acreditando. Essa ideia me torturava a tal ponto que se tivesse continuado, não sei o que teria acontecido”.

Consultado a respeito, um Espírito respondeu:

─ Esse senhor não é louco, mas pela maneira como ele é tratado, poderia enlouquecer. Mais ainda: poderiam matá-lo. O remédio para o seu mal está no próprio Espiritismo, e consideram-no um contrassenso.”

─ Seria possível, daqui, agir sobre ele?

─ Sim, sem dúvida. Podeis fazer-lhe o bem, mas a vossa ação é paralisada pela má vontade dos que o cercam.

Casos análogos ocorreram em todas as épocas, e muitos foram presos como loucos, sem o serem.

Só um observador experimentado nestes assuntos pode apreciá-los. Como hoje há muitos médicos espíritas, em casos semelhantes convém a estes recorrer. Um dia a obsessão será colocada entre as causas patológicas, como o é hoje a ação de animais microscópicos, de cuja existência não se suspeitava antes da invenção do microscópio. Mas então reconhecer-se-á que nem as duchas nem as sangrias poderão curá-la. O médico que não admite nem busca senão causas puramente materiais é tão impróprio a compreender e tratar tais afecções quanto um cego o é para distinguir as cores.

O segundo caso nos é relatado por um dos nossos correspondentes de Boulogne-sur-Mer.

“A mulher de um marinheiro desta cidade, de quarenta e cinco anos, está há quinze anos sob o domínio de uma triste subjugação. Quase todas as noites, sem excetuar as do período de gravidez, ela é despertada por volta da meia-noite, tomada de tremores nos membros, como se sob a ação de uma pilha galvânica. Seu estômago fica comprimido como que num círculo de ferro e queimado por um ferro em brasa; o cérebro num estado de exaltação furiosa, e ela se sente arrancada se seu leito, e depois, por vezes seminua, é arrastada para fora de casa e forçada a correr pelo campo. Ela caminha sem saber para onde vai, durante duas ou três horas, e somente ao parar é que sabe onde se encontra. Ela não pode orar e, ao ajoelhar-se para fazê-lo, suas ideias se misturam com coisas bizarras e até sujas. Ela não pode entrar em nenhuma igreja. Tem vontade e um desejo ardente de fazê-lo, mas ao chegar à porta, sente uma barreira que a impede. Quatro homens tentaram levá-la para dentro da igreja dos redentoristas, mas não conseguiram. Ela gritava que a estavam matando, que lhe esmagavam o peito.

“Para fugir a essa horrível situação, a pobre tentou suicidar-se, por várias vezes, sem consegui-lo. Tomou café no qual havia dissolvido fósforo; tomou detergente e nada sofreu; duas vezes jogou-se na água, mas a cada vez voltava à superfície, até que alguém a socorresse. Fora dos momentos de crise de que falei, essa mulher é inteiramente normal, e mesmo naqueles momentos ela tem perfeita consciência do que faz e da força exterior que sobre ela atua. Toda a vizinhança diz que ela é vítima de um malefício ou um despacho.”

A subjugação não poderia ser melhor caracterizada senão pelos fenômenos que, sem a menor dúvida, não podem deixar de ser obra de um Espírito da pior espécie. Dirão que foi o Espiritismo que o atraiu para ela ou lhe perturbou o cérebro? Mas há quinze anos não se cogitava disto. Aliás, a mulher não é louca, e o que experimenta não é uma ilusão.

A medicina ordinária não verá nesses sintomas senão uma dessas afecções a que dá o nome de nevrose,cuja causa ainda lhe é um mistério. A afecção é real, mas para todo efeito há uma causa. Ora, qual a primeira causa? Eis o problema em cuja via pode entrar o Espiritismo, demonstrando um novo agente no perispírito e na ação do mundo invisível sobre o mundo visível. Não generalizamos, e reconhecemos que, em certos casos, a causa pode ser puramente material, mas há outros nos quais a intervenção de uma inteligência oculta é evidente, pois que, combatendo essa inteligência, para-se o mal, ao passo que atacando apenas a suposta causa material, nada se consegue.

Há um traço característico nos Espíritos perversos: é a sua aversão a tudo quanto se liga à religião. A maioria dos médiuns não obsedados que receberam comunicações de Espíritos maus, muitas vezes os viram blasfemar contra as coisas mais sagradas, rir-se da prece e a repelir, e irritar-se, até, quando se lhes fala em Deus.

No médium subjugado, o Espírito, dispondo de cerca de um terço do corpo para agir, exprime seus pensamentos, já não pela escrita, mas pelos gestos e palavras que provoca no médium. Ora, como nenhum fenômeno espírita pode produzir-se sem uma aptidão mediúnica, pode-se dizer que a mulher de quem falamos é médium espontânea, inconsciente e involuntária. A impossibilidade em que se encontra de orar e de entrar na igreja vem da repulsão do Espírito que dela se apoderou, pois sabe que a prece é um meio de fazê-lo largar a presa.

Em vez de uma pessoa, suponhamos, na mesma localidade, dez, vinte, trinta ou mais, no mesmo estado, e tereis a reprodução do que se passou em Morzine.

Não está aí uma prova evidente de que são demônios? dirão certas pessoas. Chamemo-los demônios, se isto vos agrada: esse nome não os caluniaria. Mas não vedes diariamente homens que não valem nada e que, de pleno direito, poderiam ser chamados demônios encarnados? Não há os que blasfemam e renegam Deus? Que parecem fazer o mal com prazer? Que se alegram à vista do sofrimento de seus semelhantes? Por que queríeis que, uma vez no mundo dos Espíritos, de súbito se transformassem?

Aqueles a quem chamais demônios nós chamamos maus Espíritos, e vos concedemos toda a perversidade que lhes queirais atribuir. Contudo, a diferença é que, em vossa opinião, os demônios são anjos decaídos, isto é, seres perfeitos que se tornaram maus, e para sempre votados ao mal e ao sofrimento. Em nossa opinião, são seres pertencentes à Humanidade primitiva, espécie de selvagens ainda atrasados, mas a quem o futuro não está fechado e que melhorar-se-ão à medida que neles se desenvolver o senso moral, na série de existências sucessivas, o que nos parece mais conforme com a lei do progresso e justiça de Deus. Temos a mais, a nosso favor, a experiência, que prova a possibilidade de melhorar e de levar ao arrependimento os Espíritos do mais baixo nível e aqueles que são colocados na categoria de demônios.

Vejamos uma fase especial desses Espíritos, cujo estudo é de alta importância para o assunto que nos ocupa.

Sabe-se que os Espíritos inferiores ainda se acham sob a influência da matéria e que entre eles se encontram todos os vícios e paixões da Humanidade, paixões que eles carregam ao deixar a Terra e que trazem ao se reencarnarem, porquanto não emendaram, o que produz os homens perversos.

Prova a experiência que uns são sensuais de diversas categorias: obscenos, lascivos, satisfeitos com os lugares baixos, impelindo e excitando à orgia e ao deboche, a cuja vista se repastam.

Perguntaremos, então: A que categoria de Espíritos poderão ter pertencido, após a morte, seres como Tibério, Nero, Cláudio, Messalina, Calígula, Heliogábalo? Que gênero de obsessão poderiam ter provocado? É necessário, para explicar essas obsessões, recorrer a seres especiais que Deus teria criado especialmente para impelir o homem ao mal?

Há certos gêneros de obsessões que não deixam dúvidas quanto à qualidade dos Espíritos que as produzem. Foram obsessões desse gênero que deram lugar à fábula dos íncubos e súcubos, em que acreditava firmemente Santo Agostinho. Poderíamos citar mais de um exemplo em apoio a esta asserção.

Quando se estudam asvárias impressões corporais e os toques perceptíveis por vezes produzidos por certos Espíritos; quando se conhecem os gostos e as tendências de alguns deles, e se, por outro lado, se examina o caráter de certos fenômenos histéricos, a gente se pergunta se eles não representariam um papel nessa afecção, como representam na loucura obsessiva. Nós a vimos várias vezes, acompanhada de sintomas nada equívocos da subjugação.

Vejamos agora o que se passou em Morzine e, para começar, digamos algumas palavras sobre o lugar, o que não é sem importância.

Morzine é uma comuna do Chablais, na Alta Saboia, situada a oito léguas de Thonon, na extremidade do vale do Drance, nos confins do Valais, na Suíça, da qual é separada por uma montanha. Sua população, de cerca de 2.500 almas, além da aldeia principal compreende várias outras espalhadas nas alturas circundantes. É cercada e dominada por todos os lados por altas montanhas dependentes da cadeia dos Alpes, mas, na maior parte, cobertas de bosques e cultivadas até alturas consideráveis. Aliás, em parte alguma se vê neve ou gelo perpétuos. Segundo nos disseram, ali a neve seria menos persistente do que no Jura.

Enviado em 1861 pelo governo francês, a fim de estudar a doença, o Dr. Constant lá ficou três meses. Ele faz da região e de seus habitantes um quadro pouco lisonjeiro. Vindo com a ideia de que o mal era puramente físico, só buscou causas físicas. Essa preocupação o levava a insistir naquilo que poderia corroborar sua opinião, e essa ideia provavelmente fez com que ele visse os homens e as coisas de um ângulo desfavorável.

Em sua opinião, a moléstia é uma afecção nervosa, cuja fonte primeira é a constituição dos habitantes, debilitados pela insalubridade das habitações e pela insuficiência e má qualidade da alimentação, e cuja causa imediata está no estado histérico da maioria dos doentes do sexo feminino.

Sem contestar a existência dessa afecção, é bom notar que se o mal atacou em grande parte as mulheres, os homens também foram atingidos, bem como mulheres em idade avançada. Não se poderia, portanto, ver na histeria uma causa exclusiva. Aliás, qual a causa da histeria?

Fizemos uma curta visita a Morzine, mas devemos dizer que nossas observações e os dados que recolhemos entre pessoas notáveis, de um médico da região e das autoridades locais, diferem um pouco das do Dr. Constant.

A aldeia principal, de modo geral, é bem construída. As casas das aldeias circunvizinhas certamente não são hotéis, mas não têm o aspecto miserável que se vê em muitas regiões da França, como na Bretanha, por exemplo, onde o camponês mora em verdadeiras choças.

A população não nos pareceu estiolada nem raquítica, nem, sobretudo, com bócio, como diz o Dr. Constant. Vimos alguns bócios rudimentares, mas nenhum pronunciado, como se vê em todas as mulheres da Mauriana. Os idiotas e cretinos ali são raros, a despeito do que diz o Dr. Constant, ao passo que na outra encosta da montanha, no Valais, eles são muito numerosos.

Quanto à alimentação, a região produz além do consumo dos habitantes. Se não há abundância em toda parte, também não há miséria propriamente dita, nem,sobretudo, essa horrível miséria que encontramos em outras regiões. Algumas existem onde a população campesina é infinitamente pior alimentada. Um fato característico é que não vimos um só mendigo a pedir esmola.

A própria região oferece importantes recursos em madeira e pedra, mas que ficam improdutivos pela impossibilidade de transporte. A dificuldade de comunicações é a chaga da região, sem o que seria uma das mais ricas do país. Pode julgar-se da dificuldade, pelo fato de o correio do Thonon não poder ir além de duas léguas da cidade. Daí em diante não há estrada, mas um simples caminho que alternativamente sobe a pique através da floresta e desce à margem do Drance, torrente furiosa que rola em cascatas através de massas enormes de rochedos de granito e que do alto das montanhas se precipita em seu leito, no fundo de uma garganta estreita. Por várias léguas é a imagem do caos. Transposta essa passagem, o vale toma um aspecto risonho até Morzine, onde termina. Mas a dificuldade para lá chegar afasta os viajantes, de sorte que a região só é visitada por caçadores bastante fortes para escalar os rochedos.

Desde a anexação, os caminhos foram melhorados. Antes, só eram praticáveis a cavalo. Dizem que o governo está estudando o prolongamento da estrada de Thonon a Morzine, margeando o rio. É um trabalho difícil, mas que transformará a região, permitindo a exportação de seus produtos.

Tal é o aspecto geral da região, que aliás não oferece nenhuma causa de insalubridade. Admitindo que a principal aldeia de Morzine, situada no fundo do vale, à margem do rio, seja úmida, o que não observamos, devemos considerar que a maioria dos doentes são das aldeias vizinhas, situadas na altura, e portanto em localizações arejadas e muito salubres.

Se, como pretende o Dr. Constant, a doença se devesse a causas locais; à constituição dos habitantes; aos hábitos e gênero de vida, essas causas permanentes deveriam produzir efeitos permanentes, e o mal seria endêmico, como as febres intermitentes de Camargue e dos pântanos pontinos. Se o cretinismo e o bócio são endêmicos no vale do Ródano e não no vale do Drance, que é limítrofe, é que num existe uma causa local permanente que não existe no outro.

Se o que se chama a possessão de Morzine é apenas temporário, é que sua causa é acidental.

O Dr. Constant diz que suas observações não lhe revelaram nenhuma causa sobrenatural. Mas ele, que só acredita em causas materiais, é capaz de julgar efeitos resultantes da ação de uma força extra-material? Estudou ele os efeitos dessa força? Ele sabe em que consistem e por quais sintomas podem ser reconhecidos? Não, e desde então se lhe afiguram aquilo que não são, crendo sem dúvida que consistem em milagres e aparições fantásticas.

Esses sintomas, ele os viu e os descreveu em seu relatório, mas não admitindo uma causa oculta, buscou alhures, no mundo material, onde não a encontrou.

Os doentes se diziam atormentados por seres invisíveis, mas como ele não viu duendes nem fantasmas, concluiu que os doentes eram loucos, e o que o confirmava nessa ideia é que esses doentes por vezes diziam coisas notoriamente absurdas, mesmo aos olhos do mais firme crente nos Espíritos. Mas para ele tudo devia ser absurdo. Entretanto, ele devia saber, ele médico, que até em meio a divagações da loucura há, por vezes, revelações da verdade.

Esses infelizes, diz ele, e a população em geral, estão imbuídos de ideias supersticiosas. Mas o que há de espantoso numa população rural, ignorante e isolada no meio das montanhas? O que há de mais natural que essa gente, aterrada pelos fenômenos, os tenha amplificado? Porque nos relatos que faziam se misturavam apreciações ridículas, partindo do seu ponto de vista, ele disso concluiu que tudo deveria ser ridículo, sem contar que aos olhos de quem quer que não admita a ação do mundo invisível, todos os efeitos resultantes dessa ação são relegados à condição de crenças supersticiosas.

Em favor desta última tese, ele insiste muito sobre um fato, na ocasião contado pelos jornais, inspirado sem dúvida nalguma imaginação aterrada, exaltada ou doente e, segundo o qual certos doentes subiam, com a agilidade de gatos, em árvores de quarenta metros de altura; andavam sobre os galhos sem que estes vergassem; postavam-se nas copas, com os pés para cima, e desciam de cabeça para baixo, sem nada sofrerem. Ele discute longamente para provar a impossibilidade da coisa e para demonstrar que, segundo a direção do raio visual, a árvore assinalada não podia ser vista das casas de onde diziam ter visto o fato. Tanto esforço era inútil, pois lá nos disseram que a coisa não era verdadeira. Apenas um rapazinho havia subido numa árvore de porte comum, mas sem malabarismo.

Assim descreve o Dr. Constant o histórico e os efeitos da doença.

Revista Espírita, abril de 1863

Causas da obsessão e meios de combate. Artigo IV

Numa segunda edição de sua brochura sobre a epidemia de Morzine[1], o Dr. Constant responde ao Sr. de Mirville, que criticou o seu cepticismo acerca dos demônios, e o censurou por não ter estado nos lugares. “Ele não passou de Thonon, certamente não por medo dos diabos, mas do caminho, e nem por isso se julga o homem menos informado. Censura-me ainda, como a outro médico, de ter partido de Paris com juízo formado. Em bom direito, se ele me permite, posso devolver a censura: Estaremos, então, ex aequo, nesse ponto.”

Não sabemos se o Sr. de Mirville lá teria ido com a ideia preestabelecida de não ver qualquer afecção física nos doentes de Morzine, mas é bem evidente que o Dr. Constant lá foi com a de não ver nenhuma causa oculta. O preconcebido, num sentido qualquer, é a pior condição para um observador, porque então tudo vê e tudo ajusta a seu ponto de vista, negligenciando o que pode haver de contrário. Certamente não é esse o meio de chegar à verdade.

A opinião bem arraigada do Sr. Constant no que concerne à negação das causas ocultas, resulta de que ele, a priori, repele como errônea qualquer observação e qualquer conclusão que se afaste de sua maneira de ver, nos relatórios feitos antes do seu. Assim, enquanto o Sr. Constant insiste com veemência sobre a constituição débil, linfática e raquítica dos habitantes, a insalubridade da região, a má qualidade e a insuficiência da alimentação, o Sr. Arthaud, médico chefe dos alienados de Lyon, que foi enviado a Morzine, diz em seu relatório que “a constituição dos habitantes é boa e as escrófulas são raras, e que a despeito de todas as suas pesquisas, só descobriu um caso de epilepsia e um de imbecilidade.” Mas, replica o Sr. Constant, “o Sr. Arthaud passou bem poucos dias nessa região. Ele não pode ter visto mais que uma pequeníssima parte da população, e é muito difícil obter informações sobre as famílias.”

Um outro relatório assim se exprime sobre o mesmo assunto:

“Nós, abaixo assinados, declaramos que tendo ouvido falar dos casos extraordinários tidos como possessão de demônios, ocorridos em Morzine, transportamo-nos para aquela paróquia, onde chegamos a 30 de setembro último (1857), para testemunhar o que se passava e examinar tudo com maturidade e prudência, esclarecendo-nos por todos os meios fornecidos pela presença no lugar, a fim de poder formar um juízo razoável em semelhante matéria.

“1º. ─ Vimos oito jovens que estão libertas e cinco em estado de crise. A mais jovem tem dez anos e a mais velha, vinte e dois.

“2º. ─ Conforme tudo quanto nos dizem e que pudemos observar, essas jovens estão no mais perfeito estado de saúde; fazem todas as obras e trabalhos peculiares à sua posição, de modo que não se vê, quanto aos outros hábitos e ocupações, nenhuma diferença entre elas e as outras jovens da montanha.

3º. ─ Vimos essas moças, as não curadas, nos momentos lúcidos. Ora, podemos assegurar que nada foi observado nelas, quer idiotia, quer predisposição para as crises atuais, por falhas de caráter ou por exaltação de espírito. Aplicamos a mesma observação às que estão curadas. Todas as pessoas que consultamos sobre os antecedentes e os primeiros anos dessas moças nos asseguraram que elas eram, do ponto de vista da inteligência, perfeitamente normais.

4º. ─ A grande maioria dessas moças pertence a famílias em situação financeira confortável.

5º. ─ Asseguramos que pertencem a famílias que gozam de boa reputação, dentre as quais algumas são de uma virtude ede uma piedade exemplares.”

Daremos oportunamente a continuação deste relatório concernente a certos fatos. Queríamos apenas constatar que nem todos viram as coisas com cores tão negras quanto o Sr. Constant, que apresenta os habitantes como na extrema miséria e dos mais cabeçudos, teimosos e mentirosos, posto que no fundo bons e sobretudo piedosos, ou antes, devotos. Ora, quem tem razão? O Sr. Constant, sozinho, ou vários outros, não menos honrados, que certificam ter bem observado? De nossa parte, não hesitamos em nos colocarmos ao lado dos últimos, em razão daquilo que vimos e em razão do que nos disseram várias autoridades médicas e administrativas da região, e em mantermos a opinião emitida em nossos artigos precedentes.

Para nós, a causa primeira não está nem na constituição nem no regime higiênico dos habitantes, porque, como fizemos notar, há muitas regiões, a começar pelo Valais, limítrofe, em que as condições de toda natureza, morais e outras, são infinitamente mais desfavoráveis e onde, entretanto, não grassou essa doença. Nós a veremos já circunscrita, não ao vale, mas apenas aos limites da comuna de Morzine. Se, como afirma o Dr. Constant, a causa é inerente à localidade, ao gênero de vida e à inferioridade moral dos habitantes, perguntamos, ainda, por que o efeito é epidêmico e não endêmico, como a papeira e o cretinismo no Valais? Por que as epidemias do mesmo gênero, de que fala a história, se produziram nas casas religiosas onde nada falta, e que se achavam nas melhores condições de salubridade? Aliás, eis o quadro que o Sr. Constant faz do caráter da gente de Morzine:

“Uma demora prolongada, visitas sucessivas e diárias a quase todas as casas, permitiram-me chegar a outras constatações.

“Os habitantes de Morzine são suaves, honestos, de grande piedade; seria talvez mais justo dizer de grande devoção.

“São cabeçudos e dificilmente renunciam à ideia que adotaram, o que, além de outros inconvenientes, acrescenta o de se tornarem teimosos, outra fonte de malestar e de miséria, porque as conciliações são raras. Mas só em exceções muito raras é que a justiça criminal encontra culpados entre eles.

“Eles têm um aspecto grave e sério, que parece um reflexo da natureza áspera que os rodeia e que lhes imprime uma espécie de cunho particular, que os faria tomar por membros de uma vasta comunidade religiosa. Com efeito, sua existência difere pouco da de um convento.

“Seriam inteligentes, se seu raciocínio não fosse obscurecido por uma porção de crenças absurdas ou exageradas, por um invencível arrastamento para o maravilhoso, legado pelos séculos passados e do que não os curou o século atual.

“Todos gostam dos contos e histórias impossíveis. Posto que fundamentalmente honestos, alguns mentem com imperturbável aprumo, para sustentar o que disseram, nesse gênero, se bem acabem, estou convicto, por mentir de boa-fé, por crer em suaspróprias mentiras, sem deixar de crer nas dos outros. Para ser justo, é preciso dizer que a maioria não mente: apenas conta inexatamente o que viu”.

Aos nossos olhos, a causa é independente das condições físicas dos homens e das coisas. Se formulamos tal opinião, não é com o propósito de ver por toda parte a ação dos Espíritos, pois ninguém admite sua intervenção com mais circunspecção do que nós, mas pela analogia que notamos entre certos efeitos e os que nos são demonstrados como resultado evidente de uma causa oculta.

Mas, ainda uma vez, como admitir essa causa quando não se acredita na existência dos Espíritos? Como admitir, com Raspail, as afecções produzidas por seres microscópicos, se se nega a existência desses animais, porque não os vimos? Antes da invenção do microscópio, Raspail teria passado por um louco, por ver animais em toda a parte. Hoje que se está um pouco mais esclarecido, não se veem Espíritos. Para isto, entretanto, só falta pôr óculos.

Não negamos que haja efeitos patológicos na afecção de que se trata, porque a experiência no-los mostra, por vezes, em casos semelhantes, mas dizemos que são consecutivos e não causais. Se um médico espírita tivesse ido a Morzine, teria visto o que outros não viram, sem, contudo, desprezar os fatos fisiológicos.

Depois de haver falado do Sr. de Mirville que, diz ele, para no caminho, acrescenta o Sr. Constant:

“O Sr. Allan Kardec fez a viagem completa. Nos números de dezembro de 1862 e janeiro de 1863 da sua Revista Espírita, já publicou dois artigos, apenas preliminares. O exame dos fatos virá no número de fevereiro. Enquanto esperamos, ele nos adverte que a epidemia de Morzine é semelhante à que caiu sobre a Judeia, ao tempo do Cristo. É bem possível.

“Com o risco de incorrer na censura de alguns leitores que acharão que eu provavelmente faria melhor se não falasse dos espíritas, aconselho aos que lerem esta brochura a ler o mesmo assunto nos autores que acabo de citar.

“Contudo, não deveriam enganar-se quanto ao meu convite. Quanto mais leitores sérios houver para as obras sobre o Espiritismo, tanto mais cedo será feita completa justiça a uma crença, a uma ciência, como dizem, sobre a qual talvez eu pudesse arriscar uma opinião, depois de tantas vezes haver verificado um de seus resultados: o contingente bastante notável que ele fornece anualmente à população dos asilos de alienados”.

Pode-se ver por aí com que ideias o Sr. Constant foi a Morzine. Certamente não procuraremos convencê-lo de nossa opinião. Apenas lhe diremos que o resultado da leitura das obras espíritas foi demonstrado pela experiência totalmente contrário ao que ele espera, pois que essa leitura, em vez de fazer pronta justiça a essa pretensa ciência, anualmente multiplica os adeptos aos milhares; que hoje, no mundo inteiro, são cinco ou seis milhões, dos quais a décima parte só na França. Se ele objetasse que são apenas tolos e ignorantes, nós lhe perguntaríamos por que essa doutrina conta, entre seus mais firmes partidários, com tão grande número de médicos em todos os países, o que atesta nossa correspondência, o número de médicos assinantes da Revista e o dos que presidem ou fazem parte de grupos e sociedades espíritas, sem falar do número não menor de adeptos pertencentes a posições sociais às quais só se chega pela inteligência e pela instrução. Isto é um fato material que ninguém pode negar. Ora, como todo efeito tem uma causa, a causa desse efeito é que o Espiritismo não parece a todo mundo tão absurdo quando alguns se gabam de dizer.

─ Infelizmente é verdade, exclamam os adversários da doutrina. Assim, não temos mais que cobrir o rosto pela sorte da Humanidade que marcha para a decadência.

Resta a questão da loucura, o bicho-papão com o auxílio do qual procuram apavorar as criaturas, que quase não se abalam, como bem se vê. Quando esse meio estiver esgotado, certamente inventarão outro. Enquanto se espera, remeteremos o leitor para o artigo publicado no número de fevereiro último, sob o título de A Loucura Espírita.

Os primeiros sintomas da epidemia de Morzine se declaravam em março de 1857 em duas meninas de doze anos. Em novembro seguinte o número de doentes era de vinte e sete, e em 1861 atingiu o máximo de cento e vinte.

Se relatássemos os fatos com base no que vimos, poderiam dizer que vimos apenas o que quisemos ver. Além do mais, chegamos no declínio da doença e não ficamos o bastante para tudo observar. Citando as observações alheias, não nos podem acusar de somente ver por nossos olhos.

Tomamos do relatório de que acima fizemos um extrato, as seguintes observações:

“Essas moças falam francês durante a crise com uma admirável facilidade, mesmo as que, fora da crise, só sabem algumas palavras.

“Uma vez em crise, as moças perdem completamente qualquer reserva, seja para o que for, e também perdem completamente toda afeição de família.

“A resposta é sempre tão pronta e fácil, que parece vir antes da interrogação. Essa resposta é sempre ad rem[2], exceto quando quem fala responde por tolices, insultos ou uma recusa formal.

“Durante a crise o pulso fica calmo e, no maior furor, o personagem tem um ar de domínio, como alguém que tivesse a cólera sob seu comando, sem parecer nem exaltado nem tomado de um acesso de febre.

“Notamos, durante as crises, uma insolência incrível, que ultrapassa qualquer limite, em meninas que, fora daí, são delicadas e tímidas.

“Durante a crise há em todas essas meninas um caráter de impiedade permanente, levada além de todos os limites, dirigida contra tudo o que lembra Deus, os mistérios da religião, Maria, os santos, os sacramentos, a prece, etc.. O caráter dominante desses momentos terríveis é o ódio a Deus e a tudo quanto a ele se refere.

“Constatamos muito bem que essas meninas revelam coisas que chegam de longe, bem como fatos passados de que não tinham nenhum conhecimento. Também revelaram os pensamentos de várias pessoas.

“Algumas vezes anunciam o começo, a duração e o fim das crises, o que farão mais tarde e o que não farão.

“Sabemos que deram respostas exatas a perguntas feitas em línguas desconhecidas, como alemão, latim etc.

“No estado de crise as moças têm uma força desproporcional à sua idade, pois são precisos três ou quatro homens para conter, durante o exorcismo, meninas de dez anos.

“É de notar-se que, durante a crise, as meninas não se maltratam, nem pelas contrações, que parecem de natureza a deslocar os membros, nem pelas quedas, nem pelas pancadas violentas que se dão.

“Em suas respostas há sempre, invariavelmente, distinção de várias entidades: a filha e ele, o demônio e o danado.

“Fora das crises as meninas não têm qualquer lembrança do que disseram ou fizeram, quer a crise tenha durado todo o dia, quer tenham feito trabalhos prolongados ou desempenhado encargos dados no estado de crise.

“Para concluir, diremos:

“Que a nossa impressão é de que tudo isto é sobrenatural, na causa e nos efeitos, segundo as regras da lógica sã e conforme tudo quanto a teologia, a história eclesiástica e o Evangelho nos ensinam e nos contam.

“Declaramos que, em nossa opinião, há uma verdadeira possessão do demônio.

“Em fé do que, assinado: ***

“Morzine, 5 de outubro de 1857.”

Eis como o Sr. Constant descreve as crises dos doentes, segundo suas observações:

“Em meio à mais completa calma, raramente à noite, de repente sobrevêm bocejos, espreguiçamento, tremores e pequenos solavancos de aspecto coreico nos braços; pouco a pouco, em curto espaço de tempo, como por efeito de descargas sucessivas, tais movimentos se tornam mais rápidos, depois mais simples e em breve não parecem mais que exagero de movimentos fisiológicos; a pupila se dilata e se contrai sucessivamente e os olhos participam do movimento geral.

“Então as doentes, cujo aspecto a princípio parecia exprimir terror, entram num estado de furor que vai sempre crescendo, como se a ideia que as domina produzisse dois efeitos quase simultâneos: depressão e excitação logo depois.

“Elas batem sobre móveis com força e vivacidade, começam a falar, ou melhor, a vociferar; o que elas dizem, quase todas, quando não superexcitadas por perguntas, se reduz a estas palavras indefinidamente repetidas: ‘S… nome! S… c…!… s… vermelho!’ (Elas chamam vermelhos aqueles em cuja piedade elas não acreditam.) Algumas acrescentam blasfêmias.

“Se junto a elas não se acha nenhum espectador estranho; se não lhes fizerem perguntas, repetem incessantemente a mesma coisa, sem nada acrescentar. Se for o contrário, elas respondem ao que pergunta o espectador, e mesmo aos pensamentos que elas lhes incutem, às objeções que elas preveem, mas sem se afastarem de sua ideia dominante, a ela relacionando tudo o que elas dizem. É sempre assim: ‘Ah! tu crês, b… incrédulo, que nós somos loucas, que ape

nas temos devaneios! Somos danadas, s… n… de D…! Nós somos diabos do inferno!’

“E como é sempre um diabo que fala por sua boca, o suposto diabo por vezes conta o que fazia na Terra e o que fez depois, no inferno etc.

“Em minha presença acrescentavam invariavelmente:

“Não são os teus s… médicos que nos curarão! Nós nos f… perfeitamente de teus remédios! Bem podes fazer a menina tomar, elas a atormentarão, fá-la-ão sofrer; mas a nós elas nada farão, porque nós somos diabos! Nós precisamos de santos sacerdotes, de bispos etc.’

“Isso tudo não lhes impede de insultar os sacerdotes, quando estão presentes, sob o pretexto de que eles não são bastante santos para ter ação sobre os demônios.

Diante do prefeito e dos magistrados, era sempre a mesma ideia, mas com outras palavras.

“À medida que elas falam, sempre com a mesma veemência, suas fisionomias têm um só aspecto: o do furor. Por vezes o pescoço incha e a face se injeta; noutras, empalidece, como nas pessoas normais, que coram ou empalidecem, conforme a constituição, num violento acesso de cólera. Os lábios estão sempre úmidos de saliva, o que levou a dizer que as doentes espumavam.

“Limitados inicialmente às partes superiores, os movimentos vão ganhando o tronco e os membros inferiores; a respiração torna-se ofegante; as doentes redobram o furor, tornam-se agressivas, deslocam os móveis e atiram as cadeiras, os tamboretes, tudo quanto lhes cai às mãos, sobre os assistentes; precipitam-se sobre estes para lhes bater, tanto nos parentes quanto nos estranhos; jogam-se por terra, sempre com os mesmos gritos; rolam, batem as mãos no solo ou no peito, no ventre, na garganta, e procuram arrancar alguma coisa que parece incomodar nesse ponto. Viram-se e reviram-se de um salto. Eu vi duas que, levantando-se como que por uma mola, voltavam-se para trás de tal modo que a cabeça tocava o solo ao mesmo tempo que os pés.

“Esta crise dura mais ou menos dez, vinte minutos, meia hora, conforme a causa que a provocou. Se é a presença de um estranho, sobretudo de um padre, é muito raro que termine antes que a pessoa se afaste. Nesse caso, entretanto, os movimentos convulsivos não são contínuos. Depois de terem sido violentos, enfraquecem e param para recomeçar imediatamente, como se a força nervosa esgotada repousasse um momento para se refazer.

“Durante a crise, nem o pulso nem o batimento do coração se aceleram, e mais comumente se dá o contrário: o pulso se concentra, torna-se fraco, lento, e as extremidades esfriam; a despeito da violência da agitação e dos golpes furiosos desferidos por todos os lados, as mãos ficam geladas.

“Contrariamente ao que em geral se vê em casos análogos, nenhuma ideia erótica se mistura ou parece juntar-se à ideia demoníaca. Eu mesmo fiquei chocado com essa particularidade, por ser comum a todas as doentes: nenhuma diz qualquer palavra ou faz o menor gesto obsceno. Em seus mais desordenados movimentos, elas jamais se descobrem, e se seus vestidos se levantam um pouco quando rolam por terra, é muito raro que não os recomponham imediatamente.

“Não parece que haja aqui lesão da sensibilidade genital; assim, jamais se tratou de íncubos, de súcubos ou de cenas de Sabat. Todas as doentes pertencem, como demonômanas, ao segundo dos quatro grupos indicados pelo Sr. Macário. Algumas escutam a voz dos diabos; muito mais geralmente eles falam por sua boca.

“Depois da grande desordem, pouco a pouco os movimentos se tornam menos rápidos; certos gases se escapam pela boca, e a crise termina. A doente olha em redor com um ar meio espantado, arranja os cabelos, apanha e coloca o seu gorro, bebe uns goles d’água e retoma o seu trabalho, se executava algum ao começar a crise. Quase todas dizem que não sentem cansaço nem se lembram do que disseram ou fizeram.

“Esta última asserção nem sempre é sincera. Surpreendi algumas lembrando-se muito bem. Elas apenas acrescentavam: ‘Bem sei que ele (o diabo) disse ou fez isto ou aquilo, mas não sou eu. Se minha boca falou, se minhas mãos bateram, era ELE que as fazia falar e bater. Bem que eu queria ficar tranquila, mas ELE é mais forte que eu.’

“Esta descrição é a do estado mais frequente, mas entre os extremos existem vários graus, desde a doente que só tem crises de dores gastrálgicas, até a que chega ao último paroxismo do furor. Feita esta ressalva, em todas as doentes visitadas não encontrei diferenças dignas de nota senão nalgumas poucas.

“Uma delas, chamada Jeanne Br…, de quarenta e oito anos, não casada, histérica há muito tempo, sente animais que não passam de diabos que lhe correm pelo rosto e a mordem.

“A senhora Nicolas B…, de trinta e oito anos, doente há três anos, late durante as crises. Ela atribui sua doença a um copo de vinho que bebeu em companhia de um desses que fazem o mal.

“Jeanne G…, de trinta e sete anos, não casada, é aquela cujas crises diferem mais. Não tem movimentos clônicos gerais que se veem nas outras, e quase nunca fala. Quando sente vir a crise, vai sentar-se e se põe a balançar a cabeça para frente e para trás. Os movimentos, a princípio lentos e pouco pronunciados, vão-se acelerando e acabam fazendo a cabeça descrever um círculo cada vez mais amplo, com incrível rapidez, até vir alternativa e regularmente bater nas costas e no peito. A intervalos o movimento cessa um instante, e os músculos contraídos mantêm a cabeça fixa na posição em que se encontrava ao parar, sem que seja possível erguêla ou dobrá-la, mesmo com esforços.

“Victoire V…, de vinte anos, foi uma das primeiras a adoecer, aos dezesseis anos. Seu pai assim narra o que ela sofreu: ‘Ela jamais tinha sentido nada, quando um dia foi tomada pelo mal, na igreja. Durante os dois ou três primeiros dias, apenas saltava um pouco. Um dia me trouxe o jantar na cúria, onde eu trabalhava, e tocou o Ângelus quando ela chegava. Ela imediatamente pôs-se a saltar, atirou-se no chão, gritando e gesticulando, blasfemando junto ao sineiro. Por acaso lá se achava o cura de Montriond. Ela o injuriou, chamando-o s… ch… de Montriond. O cura de Morzine também veio para junto dela, quando a crise terminava, mas ela recomeçou no mesmo instante, porque ele fez o sinal da cruz em sua fronte. Tinham-na exorcizado várias vezes, mas vendo que nada a curava, nem exorcismos nem nada, levei-a a Genebra, ao Sr. Lafontaine, o magnetizador. Lá ela permaneceu um mês e ficou curada. Ficou tranquila cerca de três anos.

“Há seis semanas recaiu, mas já não tinha crises. Não queria ver ninguém e se trancava em casa. Só comia quando eu tinha algo de bom para lhe dar. Do contrário, não podia engolir. Não se mantinha nas pernas nem movia os braços. Várias vezes tentei pô-la de pé, mas ela não se sentia e caía se eu não a segurasse mais. Resolvi levá-la novamente ao Sr. Lafontaine. Não sabia como transportá-la. Ela me disse: ‘Quando eu estiver na comuna de Montriond eu caminharei bem.’ Ajudado por um dos meus vizinhos, carregamo-la até Montriond. Mas logo do outro lado da ponte ela andou sozinha e só se queixava de um gosto horrível na boca. Depois de duas sessões com o Sr. Lafontaine ela ficou melhor e agora está empregada como doméstica.”

“Geralmente constatou-se, diz o Sr. Constant, quese estão fora da comuna, só raramente as doentes têm crises.

“Um dia, o prefeito, que me acompanhava, foi surpreendido por uma doente e violentamente batido com uma pedra no rosto. Quase no mesmo instante outra doente se atirava sobre ele,

com um pedaço de pau, para lhe bater também. Vendo esta vir, ele mostrou a ponta ferrada de sua bengala, ameaçando-a, se avançasse. Ela parou, deixou cair o pau e contentou-se em injuriá-lo.

“A despeito das corridas, dos saltos, dos movimentos violentos e desordenados das doentes, das pancadas que dão, seus terrores e divagações, não se citam tentativas de suicídio nem acidentes graves com qualquer delas. Não perdem, pois, toda a consciência, e ao menos subsiste o instinto de conservação.

“Se no começo da crise uma mulher tem o filho nos braços, acontece muitas vezes que um diabo menos mau do que aquele que a vai trabalhar lhe diz: ‘Deixa esta criança; ele (o outro diabo) far-lhe-ia mal.’ O mesmo se dá quando têm uma faca ou outro instrumento capaz de ferir.

“Como as mulheres, os homens sofreram a influência da crença que a todos deprime em graus diversos, mas neles os efeitos foram menores e bastante diferentes. Alguns sentem realmente as mesmas dores que as mulheres; como estas sentem sufocação, uma sensação de estrangulamento e acusam a sensação da bola histérica, mas nenhum chegou às convulsões, e se houve alguns raros casos de acidentes convulsivos, quase sempre podem ser atribuídos a um estado mórbido anterior e diferente. O único representante do sexo masculino que pareceu ter tido crises da mesma natureza que as moças foi o jovem T… São geralmente as moças de quinze a vinte e cinco anos que foram atingidas. Ao contrário, no outro sexo, com exceção do jovem T…, conforme acabo de dizer, são apenas homens maduros, aos quais as vicissitudes da vida talvez tivessem trazido preocupações preexistentes ou a acrescentar às causadas pela doença.”

Depois de haver discutido a maioria dos fatos extraordinários contados a respeito das doentes de Morzine, e tentado provar o estado de degenerescência física e moral dos habitantes por força de afecções hereditárias, acrescenta o Sr. Constant:

“É, pois, necessário ter como certo que tudo quanto se diz em Morzine, uma vez reconduzido à verdade, se acha consideravelmente reduzido. Cada um arranjou a sua história e quis ultrapassar o outro contador de histórias. Tais exageros se encontram em todos os relatos de epidemias desse gênero. Mesmo que alguns fatos fossem autênticos em todos os pontos e escapassem a toda interpretação, seria esse um motivo para lhes buscar uma explicação além das leis naturais? Seria o mesmo que dizer que os agentes, cujo modo de agir ainda não foram descobertos e escapam à nossa análise, são necessàriamente sobrenaturais.

“Tudo o que se viu em Morzine, sobretudo aquilo que se conta, poderá muito bem ficar para certas pessoas como sinal manifesto de uma possessão, mas é, também, com muita certeza, o dessa moléstia complexa que recebeu o nome de hístero-demonomania.

“Em resumo, acabamos de ver uma região cujo clima é rude e a temperatura muito variável, onde a histeria em todos os tempos foi considerada endêmica; uma população cuja alimentação, sempre a mesma para todos, mais pobres ou menos pobres, e sempre má, é composta de alimentos por vezes alterados, que podem provocar, e provocam, desarranjos das funções dos órgãos da nutrição, e por aí, nevroses particulares; uma população de uma constituição pouco robusta e especial, muitas vezes marcada de predisposições hereditárias, ignorante e vivendo num isolamento quase completo; muito piedosa, mas de uma piedade que tem por base mais o medo que a esperança; muito supersticiosa e cuja superstição, essa chaga que São Tomé chamava um vício oposto à religião por excesso, tem sido mais acariciada que combatida. Embalada por histórias de feitiçaria que são, fora das cerimônias da Igreja, a única distração não impedida pela severidade religiosa exagerada; uma imaginação viva, muito impressionável, que teria necessidade de qualquer alimento, e que não tem outro senão essas mesmas cerimônias.”

Resta-nos examinar as relações que podem existir entre os fenômenos acima descritos e os que se produzem nos casos de obsessão e subjugação bem constatados, o que cada um sem dúvida já terá notado; o efeito dos meios curativos empregados; as causas da ineficácia do exorcismo e as condições nas quais podem ser úteis. É o que faremos num próximo e último artigo.

Enquanto isto, diremos com o Sr. Constant que não há necessidade de buscar no sobrenatural a explicação dos efeitos desconhecidos. Nós estamos perfeitamente de acordo com ele neste ponto. Para nós os fenômenos espíritas nada têm de sobrenatural. Eles nos revelam uma das leis, uma das forças da Natureza que não conhecíamos e que produz efeitos até agora não explicados. Essa lei, que brota dos fatos e da observação, é mais desarrazoada porque tem como promotores seres inteligentes em vez de animais ou da matéria bruta? Será tão insensato crer em inteligências ativas além do túmulo, sobretudo quando elas se manifestam de maneira ostensiva? O conhecimento dessa lei, levando certos efeitos à sua causa verdadeira, simples e natural, é o melhor antídoto às ideias supersticiosas.

[1] Broch. in-8º. Adrien Delahaye, praça da Escola de Medicina. Preço 2 fr.

[2] Ad rem, expressão latina que significa à coisa – afirmativa direta à coisa. (N. equipe revisoara)

Revista Espírita, maio de 1863

Causas da obsessão e meios de combate. Artigo V

Como deve ter sido notado, o Sr. Constant chegou a Morzine com a idéia da que a causa do mal era puramente físico. Podia ter razão, porque seria absurdo supor a priori uma influência oculta a todo efeito cuja causa é desconhecida. Segundo ele, a causa está inteiramente nas condições higiênicas, climatéricas e fisiológicas dos habitantes.

Estamos longe de pretender devesse ele ter vindo com uma opinião contrária prontinha, o que não teria sido mais lógico Dizemos apenas que com sua idéia preconcebida não viu a que acaso podia referir-se, ao passo que se ao menos tivesse admitido a possibilidade de outra causa, teria visto outra coisa.

Quando uma causa é real, deve poder explicar todos ou efeitos que produz. Se certos efeitos vêm contradizê-la, é que aquela é falsa, ou não é única e, então, é preciso procurar uma outra. Incontestàvelmente é a marcha mais lógica. E a justiça, nas suas investigações em busca da criminalidade, não procede de modo diverso, Se se trata de constatar um crime, chega ela com a idéia de que deve ter sido cometido desta ou daquela maneira, por tal ou qual pessoa? Não. Ela obseril as menores circunstâncias e, remontando dos efeitos às causas, afasta as que são inconciliáveis com os efeitos observados de dedução em dedução, é raro que não chegue à constatação da verdade. Dá-se o mesmo nas ciências. Quando uma dificuldade resta insolúvel, o mais sábio é suspender o julgamento.Então toda hipótese é permitida para tentar resolvê-la. Mas se a hipótese não resolve todos os casos da dificuldade, é que é falsa. Não tem o caráter de uma verdade absoluta se não der a razão de tudo. É assim que no Espiritismo, por exemplo, à parte toda constatação material, remontando dos efeitos às causas, chega-se ao principio da pluralidade das existências, como conseqüência inevitável, porque só ele explica claramente o que nenhum outro pôde explicar.

Aplicando este método aos fatos de Morzine, é fácil ver que a causa Única admitida pelo Sr. Constant está longe de tudo explicar. Ele constata, por exemplo, que geralmente as crises cessam quando os doentes estão fora da comuna. Se, pois, o mal é devido & constituição linfática e à má nutrição dos habitantes, como a causa cessa de agir assim que transpõem a ponte que os separa da comuna vizinha? Se as crises nervosas nãofossem acompanhadas de nenhum outro sintoma, ninguém duvida que se pudesse, aparentemente, atribuí-los a um estado constitucional, mas há fenômenos que não seriam explicados exclusivamente por esse estado.

Aqui o Espiritismo nos oferece uma comparação chocante. No começodas manifestações, quando se viam mesas girando, batendo, erguendo-se no espaço sem ponto de apoio, o primeiro pensamento foi que isso podia ser por ação da eletricidade, do magnetismo ou de outro fluido desconhecido. A suposição não era desarrazoada; ao contrário: oferecia probabilidades. Mas quando se viu que os movimentos davam sinal de inteligência, manifestavam uma vontade própria, espontânea e independente, a primeira hipótese teve de ser abandonada, pois nãoresolvia esta fase do fenômeno, e houve que reconhecer-se uma causa inteligente para um efeito inteligente. Qual era sua inteligência? Foi, ainda, por via da experimentação que a ela se chegou, e não por um sistema preconcebido.

Outro exemplo. Quando, observando a queda dos corpos, Newton notou que todos caíam na mesma direção, procurou a causa e levantou uma hipótese. Esta hipótese, resolvendo todos os casos de mesmo gênero, tornou-se a lei da gravitação universal, lei puramente mecânica, porque todos os efeitos eram mecânicos. Mas suponhamos que veado cair uma maçã esta tivesse obedecido à sua vontade; que ao seu comando em vez de descer tivesse subido, fosse para a direita ou para a esquerda, tivesse parado ou entrado em movimento; que, por um sinal qualquer tivesse respondido ao seu pensamento, ele teria sido forçado a reconhecer algo que não uma lei mecânica, Isto é, que não sendo inteligente, a maçã deveria ter obedecido a uma inteligência. Assim foi com as mesas girantes. Assim é com os doentes de Morzine.

Para não falar senão de fatos observados pelo próprio Sr.Constant, perguntaríamos como uma alimentação má e um temperamento linfático podem produzir a antipatia religiosa em criaturas naturalmente religiosas e até devotas? Se fosse um fato isolado podia ser uma exceção; mas reconhece-se que é geral e que é um dos caracteres da doença lá e alhures. Eis um efeito: procurai a sua causa. Não a conheceis? Seja. Confessai-o, mas não digais que é devido ao fato de os habitantes comerem batatas e pão preto, nem à sua ignorância e inteligência obtusa, porque vos oporão o mesmo efeito entre gente que vive na abundância e recebeu instrução, Se o conforto bastasse para curar a impiedade, ficaríamos admirados de encontrar tantos ímpios e blasfemadores entre as criaturas que de nada se privam.

O regime higiênico explicaria melhor este outro fato não menos característico e geral do sentimento de dualidade, que se traduz de modo inequívoco na linguagem dos doentes? Certo que não. É sempre uma terceira pessoa quem fala. Sempre uma distinção entre ele e a moça, fato constante nos indivíduos no mesmo caso, seja qual for a sua classe social. Os remédios são ineficazes por uma boa. razão: é que são bons, como diz aquele terceiro, para a moça, isto é, para o ser corporal; mas não para o outro, aquele que não é visto e que, entretanto, a faz agir, a constrange, a subjuga, a derruba e se serve de seus membros para bater e de sua boca para falar. Ele diz nada haver visto que justifique a idéia da possessão. Mas os fatos estacam ante os seus olhos; ele mesmo os cita. Podem ser explicados pela. causa que ele lhes atribui? Não. Então esta causa não é verdadeira. Ele via os efeitos morais e devia procurar uma causa moral.

Outro médico, o Dr. Chiara, que também visitou Morzine, publicou sua apreciação **, constatando os mesmos fenômenos e os mesmos sintomas que o Sr. Constant. Mas para ele, como para este último, os Espíritos malignos são imaginação dos doentes. Em seu trabalho encontramos o seguinte fato, a propósito de uma doente:

“O acesso começa por um soluço e movimentos de deglutição, pela flexão e soerguimentos alternativos da cabeça sobre o tronco; depois de várias contorções que lhe dão ao rosto tão suave uma expressão horrorosa: “S… médico, grita ela, eu sou o diabo…, tu queres fazer-me deixar a moça; eu não te temo… vem!… há quatro anos que a domino: ela é minha, nela ficarei. – Que fazes nesta moça? — Eu a atormento. — E porque, infeliz, atormentas uma pessoa que não te fez nenhum mal? — Porque me puseram aqui para atormentá-la. — És um celerado. “Aqui paro, atordoado por uma avalanche de injúrias e imprecações.”

Falando de outra doente, diz ele:

“Após alguns instantes de uma cena muda, de uma pantomima mais ou menos expressiva, nossa possessa ‘põe-se a soltar pragas horríveis. Espumando de raiva, injuria-nos a todos com um furor sem igual. Mas — digamo-lo já — não é a moça que assim se exprime, é o diabo que a possui e. que, servindo-se de seu órgão, fala em seu próprio nome. Quanto à nossa energúmena, é apenas um instrumento passivo no qual foi inteiramente abolida a noção do eu. Se for interpelada diretamente, fica muda: só Belzebu responderá.

“Enfim, depois de uns três minutos esse drama horrível cessa de repente, como que por encanto. A mocinha B… retoma o ar maiscalmo, o mais natural do mundo, como se nada tivesse acontecido. Tricotava antes, eis que tricota depois, parecendo não ter interrompido o trabalho. Interrogo-a; responde que não sente a menor fadiga nem se lembra de nada. Falo-lhe das injúrias. que nos dirigiu: ela as ignora; mas parece contrariar-se e nos pede desculpas.

“Em todas essas doentes a sensibilidade geral é abolida completamente. Podem ser pinçadas, beliscadas, ou queimadas e nada sentem. Numa delas fiz uma dobra na pele e atravessei com uma agulha comum: correu sangue mas ela nada sentiu.

“Em Morzine vi ainda várias dessas doentes fora do estado da crise: eram moças gordas, agradáveis, gozando da plenitude das faculdades físicas e morais. Vendo-as é impossível supor a existência da menor afecção.”

Isto contrasta com o estado raquítico, macilento e sofredor que o Sr.Constant admite ter notado. Quanto ao fenômeno da insensibilidade durante as crises, não é, como se viu, a única aproximação que os fatos apresentam com a catalepsia, o sonambulismo e a dupla visão.

De todas essas observações o Dr. Chiara chegou a esta definição do mal:

“É um conjunto mórbido, formado de diferentes sintomas, tomados um pouco em todo o quadro patológico das moléstias nervosas e mentais; numa palavra, é uma afecção sui generis, para a qual, pouco ligando às denominações, conservarei o nome de hístero-demonia, que já lhe foi dado.”

É caso de dizer: “Quem tiver ouvidos, ouça.” É um mal particular, formado de diferentes partes e que tem sua fonte um pouco em toda parte. É o mesmo que dizer simplesmente: “É um mal que não compreendo.” É um mal sui generis: estamos de acordo; mas qual esse gênero, ao qual nem sabeis dar o nome?

Poderíamos provar a insuficiência de uma causa puramente material para explicar o mal de Morzine, por muitas outras aproximações, que os próprios leitores farão. Reportem-se aos artigos precedentes, ao que dizemos da maneira por que se exerce ação dos Espíritos obsessores, dos fenômenos resultantes dessa ação, e a analogia ressaltará com a última evidência. Se, para a gente de Morzine, o terceiro que interfere é o diabo, é porque lhes disseram que era o diabo e eles só sabiam isto. Aliás é sabido que certos Espíritos de baixo nível divertem-se tomando nomes infernais para apavorar. A este nome substitui em sua boca o vocábulo Espírito, ou antes, maus Espíritas e tereis a reprodução idêntica de todas as cenas de obsessão e de subjugação que referimos. É incontestável que, numa região onde dominasse & idéia do Espiritismo, sobrevindo tal epidemia, os doentes se dissessem solicitados por maus Espíritos, quando, aos olhos de certas pessoas parecessem loucos. Dizem que é o diabo; é uma afecção nervosa, É o que teria acontecido em Morzine, se o conhecimento do Espiritismo ali tivesse precedido a invasão desses Espíritos. Então os adversários teriam gritado: socorro! Mas a Providência não lhes quis dar essa satisfação passageira: ao contrário, quis provar sua importância para combater o mal pelos meios ordinários.

No final de contas, recorreram ao afastamento das doentes, que foram dirigidas para os hospitais de Thomon, Chambéry, Lyon, Mâcon etc. O meio era bom porque, quando todas transportadas, podiam se gabar de que não existiam mais doentes na região. A medida podia basear-se num fato observado, o da cessação das crises fora da comuna; mas parece ter-se baseado em outra consideração: o isolamento das doentes. Aliás a opinião do Sr. Constant é categórica: Deveria haver uma espécie de lazareto, diz ele, onde pudessem ser escondidas, assim que se mostrassem, as desordens morais e nervosas, cuja propriedade contagiosa é estabelecida, como disse meu velho amigo Dr.Bouchut. Esperando melhor, tal lazareto foi encontrado no asilo de alienados. É o único lugar verdadeiramente conveniente para o tratamento racional e completo das moléstias que me ocupam, quer se admita que sua doença é mesmo uma forma, uma variedade de alienação, quer mesmo não admitindo que usem, sob qualquer titulo, tomadas como alienadas. É necessário sobre elas produzir um certo grau de intimidação, ocupar seu espírito de modo a deixar o menos tempo possível às suas preocupações por outra preocupação; subtraí-las absolutamente toda influência religiosa irrefletida e desmedida, às conversas, aos conselhos ou observações susceptíveis de alimentar seu erro, que, ao contrário, deve ser combatido diariamente; dar-lhes um regime apropriado; obrigá-las, enfim, a se submeterem às prescrições que seria útil associar a um tratamento puramente moral e ter os meios de execução. Onde encontrar reunidas todas essas condições necessárias, essenciais, senão num asilo? Teme-se para essas doentes o contacto com as verdadeiras alienadas. Tal contacto seria menos prejudicial do que se pensava e, afinal, teria sido fácil conservar provisoriamente um pavilhão só para as doentes de Morzine, Se sua aglomeração tivesse qualquer inconveniente, ter-se-ia encontrado compensação na própria reunião e estou convicto de que o nome de asilo, casa de loucos, por si só tivesse produzido mais de uma cura que se tivessem encontrado poucos diabos que uma ducha não tivesse posto em fuga.”

Estamos longe de partilhar. do otimismo do Sr. Constant sobre a inocuidade do contacto dos alienados e a eficácia das duchas emcasos semelhantes. Ao contrário, estamos persuadidos de que em tal regime pode produzir uma verdadeira loucura, onde esta é apenas aparente. Ora, note-se bem que fora das crises, as doentes têm todo o bom senso e são sãs de corpo e Espírito; não há nelas senão uma perturbação passageira, sem quaisquer caracteres da loucura propriamente dita. Seu cérebro necessariamente enfraquecido pelos ataques freqüentes que experimenta, seria ainda mais facilmenteimpressionável pela visão dos loucos e pela só idéia de achar-se entre loucos, O Sr. Constant atribui o desenvolvimento e a continuidade da moléstia à imitação, à influência das conversas dos doentes entre si e aconselha a pô-las entre loucos ou isolá-las num pavilhão do hospital! Não é uma contradição e é isto que ele entende por tratamento moral?

Em nossa opinião o mal se deve a uma causa absolutamente

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