Autora: Christina Nunes
No mundo ainda saturado de tantas turbulências, é inadiável a compreensão de que o preceito do se “saber colocar no lugar do outro para não fazer a ele o que não quer para si próprio” é uma chave de bem viver na prática do cotidiano, se o que se pretende com sinceridade é a melhoria da qualidade de vida.
Jesus, outrora, enunciou esta máxima. Outros mestres espirituais ensinaram o mesmo, cada um a seu tempo e lugar. Tivemos o “amar ao outro como a si mesmo” no Judaísmo, no Budismo, no Islamismo e no Zoroastrismo.
Na era contemporânea de objetividade e clareza, portanto, a hora é de se abandonar a letargia espiritual. Porque, a pretexto de se considerar o enunciado mera questão obsoleta de fé, sem consistência ou destituído de significado válido, ao sabor dos caprichos do entendimento de cada ser humano, deixa-se de lado o que, com mais acerto, é ciência de vida saudável.
Devemos ver o outro como a nós mesmos vemos. Com toda a tolerância, complacência, boa vontade de entender – com a empatia proporcionada pela boa vontade, que gostaríamos que nos fosse ofertada nas mínimas coisas da rotina diária.
Para isso, contudo, é preciso desfazer-se do hábito pernicioso e insistente de julgar, culpar e condenar. Abrir mão, em definitivo, da conduta de “palmatória do mundo”.
Lembro-me de alguns episódios. Certa vez, num aeroporto do Rio de Janeiro, um atraso de mais de três horas no voo me fez ficar às voltas com um sem-número de sacolas, bolsas, e com a minha menina ainda pequena desmaiando de sono, no começo de madrugada. Acomodada num daqueles assentos desconfortáveis, ajeitei tudo como pude, acolhendo no colo minha filha adormecida e ajeitando as bolsas da melhor forma. Não reparava em nada do tumulto costumeiro no ambiente do aeroporto. A esmo, só havia notado um grupo pitoresco reunido nos assentos a certa distância, com instrumentos musicais, que indicavam uma trupe artística.
De repente, tudo despencou no chão. A bolsa macia que usava para apoiar a cabecinha da menina, e o que mais estava em volta. Fiquei entretida com a dificuldade de tentar recolher as coisas sem acordá-la, e não percebi que um daqueles músicos distantes, um rapaz de barba e chapéu, notou o que aconteceu. Quando dei por ele, já se acercava de mim com um gesto cordial.
Recolheu tudo do chão, me ajudou com a acomodação da minha filha, arrumou minhas sacolas, e, ante o meu agradecimento sincero, somente fez um meneio de dispensa com o rosto e voltou para os amigos.
Noutra vez, há mais de vinte anos, no auge da contrariedade com algo que com o tempo perdeu a importância, eu andava por uma das ruas do Rio sem poder conter as lágrimas de tristeza, transbordando pelo sufocamento com a contrariedade quando, parando num sinal fechado para a travessia de pedestres, surpreendeu-me um menino de rua. Arranquei-me do meu estado íntimo pelo inusitado da presença dele, e dei com um garotinho, que não ultrapassaria os nove anos, perguntando-me o que eu tinha.
Diante da minha quase estupefação, ele afirmava, com veemência infantil, que se alguém me tivesse feito alguma coisa, que lhe dissesse, porque a pessoa “ia ver só!”
Lembro que neste último caso chorei ainda mais. O menino ficou me olhando, sem entender. Mas era que o meu estado de espírito havia mudado, num único instante, da tristeza para a comoção, diante da pequenez da minha contrariedade comparada à grandeza do gesto daquela criança tão absolutamente despojada de tudo, que me via – e, a partir disso, oferecia espontaneamente, do seu aparente “nada” de recursos, tudo aquilo de que de fato o ser humano precisa, em qualquer momento.
É desse tipo de pequenos grandes gestos que falamos. E essas situações pontilham à vontade, à farta, os nossos dias, como oportunidades úteis que, conjuntas, no silêncio do anonimato, colaboram para uma franca melhoria da vida.
É o conseguir realmente ver o outro, e compartilhar com espontaneidade, sejam alegrias ou necessidades. Consolar o choro sufocado de alguém que se abriga num canto, necessitado de nada mais do que compreensão, ou de um mero abraço, de um gesto de calor humano, ainda que em silêncio. Dar a mão nada custa além da nossa empatia pelo outro, que experimenta desafios semelhantes aos que nos surgem no desenrolar agitado dos dias. Segurar uma bolsa no coletivo para quem está em pé, oferecer lugar; se contagiar e comemorar a alegria e o entusiasmo de alguém. Colaborar com abrigo, com consolo…
Porque quando a Espiritualidade benfeitora nos fala da Lei de Ação e Reação, de Carma, da Lei do Retorno, dos episódios de expiação e provas, nada mais faz do que reforçar em suas mensagens a necessidade atemporal da vigilância das atitudes com que, matematicamente, via sintonia, construiremos agora, nós mesmos, o tipo de vida que teremos no minuto seguinte, ou no amanhã mais distante, com os fatos e valores gratos ou difíceis atraídos pelo que semeamos anteriormente, muitas vezes sem refletir.
O consolador – Artigos