Autor: Ricardo Baesso de Oliveira
Pobreza, drogas, brigas entre gangues, pais ausentes, desamor, facilidade de acesso a armas, preconceito, superpopulação, desigualdades sociais, entre outros, são fatores sociais que facilitam a eclosão da violência, da criminalidade, do suicídio e dos transtornos mentais.[i]
No entanto, segundo parcela respeitável dos estudiosos espíritas, tem-se observado uma significativa carência de debates espíritas em torno dos fatores sociais dos problemas humanos. Afirmam, com propriedade, que as palestras e seminários espíritas focam quase que unicamente nos fatores pessoais, psíquicos ou espirituais da corporeidade, relegando a plano secundário os elementos sociais implicados no sofrimento e nas decisões do Espírito encarnado.
Deolindo Amorim, sociólogo e jornalista conceituado, propondo um diálogo do Espiritismo com as ciências sociais, escreveu: [ii]
O movimento espírita não pode ficar alheio aos problemas sociais, cumprindo-lhe, por isso, interferir na solução desses problemas; devemos desenvolver e aprimorar cada vez mais a consciência de participação na vida social, em harmonia com o legítimo pensamento da Doutrina, que não quer o espírita fora do mundo, mas dentro do mundo, ajudando a transformá-lo.
E ainda, Deolindo:
É verdade que a Doutrina se preocupa, acima de tudo, com o lado espiritual da vida, mas nem por isso devemos desconhecer as omissões da sociedade, que é culpada de muitos dramas e conflitos por causa de sua indiferença diante de injustiças de toda ordem. E a sociedade somos todos nós, logo também nos cabe uma parte de responsabilidade. […] Não se compreende tamanha desigualdade sob o céu de uma civilização cristã.
Não podemos, todavia, responsabilizar a literatura espírita em geral, e as obras de Kardec, em particular, por este fenômeno, pois uma farta referência sobre as influências do meio sobre o Espírito está à disposição do leitor espírita.
Emmanuel, em obra de 1940, chamava a atenção que se faz indispensável que o coração esclarecido coopere na transformação do meio em que vive para o bem, melhorando e elevando as condições materiais e morais de todos os que vivem na sua zona de influenciação. [iii]
Fornecendo elementos teóricos que nos auxiliem na melhor compreensão da relação Espírito encarnado/ambiente, apresentamos algumas considerações extraídas de textos kardequianos, relacionando-as com três assertivas extraídas dos próprios textos.
Primeira assertiva: A evolução possui um componente pessoal, ligado ao esforço próprio, e um componente solidário, vinculado a uma preocupação com o todo, daí o compromisso de cada um em colaborar com o desenvolvimento coletivo.
A encarnação tem ainda outra finalidade, que é a de pôr o Espírito em condições de enfrentar a sua parte na obra da criação. É para executá-la que ele toma um aparelho em cada mundo, em harmonia com a sua matéria essencial, a fim de nele cumprir, daquele ponto de vista, as ordens de Deus. E dessa maneira, concorrendo para a obra geral, também progride. A ação dos seres corpóreos é necessária à marcha do Universo. Mas Deus, na sua sabedoria, quis que eles tivessem, nessa mesma ação, um meio de progredir e de se aproximarem d’Ele. É assim que, por uma lei admirável da sua providência, tudo se encadeia, tudo é solidário na Natureza. LE, item 132 Não há homens reduzidos à mendicidade por sua própria culpa?
– Sem dúvida. Mas se uma boa educação moral lhes tivesse ensinado a praticar a lei de Deus, não teriam caído nos excessos que os levaram à perda. E é disso, sobretudo, que depende o melhoramento do vosso globo. LE, item 889 […] os Espíritos devem concorrer para o progresso recíproco. LE, item 218.
Segunda assertiva: A encarnação coloca o Espírito sob fortes influências ambientais, que se relacionam evidentemente com a formação de sua personalidade e com suas atitudes perante a vida. Essa influência será tanto maior quanto menor a sua condição evolutiva, considerada do ponto de vista intelectual e moral.
O homem conserva, em suas novas existências, os traços do caráter moral das existências anteriores?
– Sim, isso pode acontecer. Mas ao melhorar-se ele se modifica. Sua posição social também pode não ser a mesma. Se de senhor ele se torna escravo, suas inclinações serão muito diferentes e teríeis dificuldades em reconhecê-lo. O Espírito sendo o mesmo, nas diversas encarnações, suas manifestações podem ter, de uma para outra, certas semelhanças. Estas, entretanto, serão modificadas pelos costumes da nova posição, até que um aperfeiçoamento notável venha a mudar completamente o seu caráter, pois de orgulhoso e mau pode tornar-se humilde e humano, desde que se haja arrependido. LE, item 216 O meio em que certos homens vivem não é para eles o motivo principal de muitos vícios e crimes?
– Sim, mas ainda nisso há uma prova escolhida pelo Espírito no estado de liberdade; ele quis se expor à tentação para ter o mérito da resistência. LE, item 644
Com uma organização social criteriosa e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o necessário. Porém, suas próprias faltas são frequentemente resultado do meio onde se acha colocado. Quando praticar a lei de Deus, terá uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e ele próprio também será melhor. LE item 930
Credes ter adquirido toda perfeição moral de que o ser seja susceptível na Terra? Falando doutro modo, supondes haver pessoas que valham mais que vós? Credes que as haja valendo menos do que vós? Entre todos os homens que têm vivido na Terra desde que é habitada, haverá muitos que hajam atingido a perfeição? Haverá muitos que não puderam alcançar essa perfeição por causas independentes de sua vontade, isto é, porque não estavam em situação de ficar esclarecidos sobre o Bem e o Mal? Se a condição dos homens após a morte é a mesma para todos, será preciso fazer o bem em vez de o mal? Se, ao contrário, a condição é relativa ao mérito adquirido, acharíeis justo que os, de quem não dependeu se acharem impuros, ficassem privados da ventura para sempre? LE, primeira edição, nota 04 de Kardec
Não desejam esses Espíritos abreviar seus sofrimentos?
– Desejam-no, sem dúvida, mas falta-lhes energia bastante para quererem o que os pode aliviar. Quantos indivíduos se contam, entre vós, que preferem morrer de miséria a trabalhar? LE, item 995 De acordo com isso, a diversidade das aptidões no homem decorre unicamente do estado do Espírito?
– Unicamente não é de todo exato. As qualidades do Espírito, que pode ter uma maior ou menor evolução, constituem o princípio, mas é necessário ter em conta a ascendência da matéria que entrava para mais ou para menos o exercício dessas faculdades. LE, item 370 Examinando um caso de suicídio relacionado à miséria humana (O padeiro desumano), o Espírito Lamennais fez a seguinte apreciação sobre o fato em questão:
“Esta infeliz mulher é uma das vítimas de vosso mundo, de vossas leis e de vossa sociedade. Deus julga as almas, mas também julga os tempos e as circunstâncias; julga as coisas forçadas e o desespero; julga o fundo e não a forma. E ouso afirmar: esta infeliz morreu não por crime, mas por pudor, por medo da vergonha. É que onde a justiça humana é inexorável, julga e condena os fatos materiais, a justiça divina constata o fundo do coração e o estado da consciência […] Esta mulher é abençoada por Deus porque é infeliz e este homem é amaldiçoado porque lhe recusou pão. Ó Deus! quando, pois, todos os teus dons serão reconhecidos e postos em prática? Aos olhos da tua justiça, aquele que recusou o pão será punido, porquanto o Cristo disse: Aquele que dá pão ao seu próximo, a mim mesmo o dá.” Revista Espírita, maio de 1862
Quem não conhece a força de arrebatamento que domina as aglomerações onde há homogeneidade de pensamentos e de vontades?
Não se poderia imaginar a quanta influência estamos assim submetidos, com o nosso desconhecimento. Essas influências ocultas não podem ser a causa determinante de certos pensamentos? Desses pensamentos que nos são comuns, no mesmo instante, com certas pessoas; desses vagos pressentimentos que nos fazem dizer: Há qualquer coisa no ar que prenuncia tal ou tal acontecimento? Enfim, certas sensações indefiníveis de bem-estar ou de mal-estar moral, de alegria ou de tristeza, não seriam de nenhum modo o efeito da reação do meio fluídico no qual estamos dos eflúvios simpáticos ou antipáticos que recebemos e que nos envolvem como as emanações de um corpo perfumado?
Se se pudesse duvidar do mecanismo imenso que o pensamento põe em jogo, e dos efeitos que ele produz de um indivíduo a outro, de um grupo de seres a um outro grupo, e, enfim, da ação universal dos pensamentos dos homens uns sobre os outros, o homem ficaria deslumbrado! Sentir-se-ia aniquilado diante dessa infinidade de detalhes, diante dessas redes inumeráveis ligadas, entre si, por uma poderosa vontade, e agindo harmonicamente para alcançar um objetivo único: o progresso universal. Obras póstumas, Introdução ao estudo da fotografia do pensamento Com uma organização social previdente e sábia o homem não pode sofrer necessidades, a não ser por sua culpa. Mas as próprias culpas do homem são frequentemente o resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar a lei de Deus, disporá de uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e com isso ele mesmo será melhor. LE, item 930.
Terceira assertiva: Ao nos submetermos às leis da corporeidade passamos a viver sob poderosas influências do corpo e do ambiente. Ainda assim, prevalece, na imensa maioria das vezes, o nosso livre-arbítrio em ceder ou não aos arrastamentos. Negar a opção da escolha individual seria o mesmo que aliar-se às estultices do materialismo.
Quando o homem está mergulhado na atmosfera do vício, o mal não se torna para ele um arrastamento quase irresistível?
– Arrastamento, sim; irresistível, não; porque no meio dessa atmosfera de vícios podes encontrar grandes virtudes. São Espíritos que tiveram a força de resistir, e que tiveram, ao mesmo tempo, a missão de exercer uma boa influência sobre os seus semelhantes. LE, item 645 […] para julgar um indivíduo, é preciso ter em conta o grau de influência de cada um, em razão de seu desenvolvimento, depois fazer entrar na balança o temperamento, o meio, os hábitos e a educação. Revista Espírita, 1862, pág. 95.
Nota
i Psicologia social, cap. 10, Aroldo Rodrigues e col.
ii O Espiritismo e os problemas humanos, Deolindo Amorim, parte I, Definição e opção.
iii O Consolador, item 121.
O consolador – Ano 16 – N 805 – Especial