Em “O Evangelho segundo o Espiritismo” vamos -encontrar esta magnífica lição: “As grandes provações são, quase sempre, o indício de um fim de sofrimento e de aperfeiçoamento do Espírito, quando aceitas segundo a vontade de Deus.”
E Léon Denis, com seus extraordinários ensinamentos, assegura-nos que “a dor, fundamentalmente considerada, é uma lei de equilíbrio e educação. Sem dúvida, as falhas do passado recaem sobre nós com todo o seu peso e determinam as condições de nosso Espírito. O sofrimento não é muitas vezes mais do que a repercussão das violações da ordem eterna cometidas; mas, sendo partilha de todos, deve ser considerado como necessidade de ordem geral, como agente de desenvolvimento, condição de progresso. Todos os seres têm de, por sua vez, passar por ele. “Sua ação é benfazeja para quem sabe compreendê-lo; mas somente podem compreendê-lo aqueles que lhe sentiram os poderosos efeitos.”
“O gênio não é somente o resultado de trabalhos seculares; é também a apoteose, a coroação de sofrimento.>
“É na dor que mais sobressaem os cânticos da alma.
Quando ela atinge as profundezas do ser, faz de lá saírem os gritos eloquentes, os poderosos apelos que comovem e arrastam as multidões.”
A arte, realmente, é bem um calvário. E Verdi, como todos os artistas, perlustrou, principalmente nos primeiros anos de sua jornada terrena, esse calvário de dificuldades, de sacrifícios e de grandes amarguras.
A música exercia nele surpreendente poder sugestivo.
Assistia aos ofícios religiosos com assiduidade, porque no templo podia deleitar-se ouvindo as doces melodias que eram executadas no órgão.
Com sete anos de idade já ajudava a missa na igreja de seu torrão natal.
Um dia, o órgão tocava um modesto improviso de Baistrochi e que, a Verdi, se afigurava harmonia celeste.
Absorvido em seguir o desenrolar das notas que ecoavam no templo, não prestava atenção, à cerimônia em si.
Quando devia ajoelhar-se, ficava hirto, embevecido na audição da música; no momento de apresentar ao sacerdote as galhetas simbólicas, não se movia. Convenceu-se o padre que era demasiada distração e, em voz alta, o convidou a cumprir o seu dever.
Sem resultado.
Nesse instante Verdi não podia apreender qualquer linguagem humana. Foi então que o padre, irritado, lhe deu um pontapé que o faz rolar pelos degraus do altar abaixo. Levado para a casa, pálido e a escorrer sangue, quando os pais lhe perguntaram o que tinha acontecido, deu, como única resposta:
– Deixem-me aprender música.
Eis algumas fases de seu calvário:
“Quando começara a harmonizar as primeiras páginas da ópera cômica com que, desde o princípio ao fim, foi infeliz (porque era obra exclusivamente sua, sem qualquer interveniência espiritual, ou por efeito de uma ação rememorativa), uma angina levou-o ao leito; preso de dores físicas enervantes, a que talvez sucumbisse se não fossem os cuidados e a dedicação da mulher que, lhe embelecera a adolescência e a juventude. Para cúmulo de contrariedade expirava o prazo do aluguel. Precisava de 50 escudos para o pagamento ao dono da casa, e para atender a outras despesas pequenas, não sabendo onde os ir buscar. Lembrou-se de pedi-los a Marelli, como adiantamento sobre o seu contrato, ou um empréstimo.
Não pôde ser atendido. Salvou a situação a esposa, empenhando as joias.
“- Aí, disse Verdi mais tarde, começaram os meus grandes infortúnios. No princípio de abril (1840) adoeceu o meu filhinho; os médicos não puderam descobrir a causa do mal e a pobre criança morreu nos braços da mãe angustiada. Como se isto não bastasse, daí a dias a menina adoeceu e, por sua vez, também morreu _ E, como se ainda fosse pouco, minha esposa foi acometida de violenta inflamação cerebral e, a 3 de junho, um terceiro caixão saía de minha casa! Fiquei só, só, só! Em dois meses, apenas, os meus três entes queridos tinham deixado para sempre. Minha família estava exterminada.
“Era em meio dessas terríveis aflições que eu tinha de escrever uma ópera cômica! “Um Giorno di Regno” não agradou; parte do malogro cabe, sem dúvida, à música, mas parte também ao desempenho. “Com a alma torturada pelas desventuras domésticas, desgostoso com o insucesso do meu trabalho, fiquei convencido de que era inútil esperar consolação da arte e decidi não mais-compor.”
Em anos subsequentes, Verdi mais uma vez sentiu ‘amargamente, nesta ou naquela estreia, que o auditório não estava inteiramente com ele, mas nenhum destes contratempos o magoou tanto como o de “Un Giorno di Regno”. A fria recepção da obra o feriu, sem dúvida, mais profundamente, porque parecia uma falta de simpatia para com o autor em dias de terríveis infortúnios domésticos. Seja como for, a lembrança desse insucesso acabrunhou-o durante muitos anos.
Em 1859, numa carta a Ricordi, queixava-se do público ter “maltratado a obra de um pobre rapaz doente, atormentado pela falta de tempo e com o coração ferido por tremendas desgraças; se ele houvesse, não quero dizer aplaudido, mas suportado a ópera em silêncio, eu não teria encontrado palavras bastantes para lhe agradecer”.
Com 16 anos de idade, muito embora seus insuficientes conhecimentos da arte musical, mas, sem dúvida, por força desse poder rememorativo de vidas passadas, tornou-se, em Busseto, professor de música e regente da Sociedade Filarmônica.
O cônego Pedro Seletti, que lhe ensinava latim, vendo- o aprender tão facilmente aconselhou-o a deixar a arte e ordenar-se. Não fazia fé em seu pendor para a música; a verdade é que nunca o ouvira tocar. Certo dia fora Verdi dar sua lição de latim na escola adjunta à igreja dos jesuítas, onde devia celebrar-se missa cantada.
Aproximava-se a hora e o organista não chegava.
Seletti encontrava-se aflito, quando um de seus alunos aventou a ideia de se confiar a Giuseppe Verdi essa tarefa. O sacerdote, a princípio, hesitou, mas depois resolveu ver como se desempenharia aquele rapazote, e então verificaria se realmente era merecedor dos elogios que lhe eram prodigalizados por seus mestres de música.
Verdi não se faz de rogado, e, um tanto temeroso, acercou- se do órgão, quando então se lembrou que não levara caderno algum e, por essa circunstância, teria de executar de cor, reproduzir o que a memória lhe transmitisse.
Excedeu a expectativa, superou o velho organista.
Seletti cumprimentou-o, abraçando-o e perguntou-lhe que música havia tocado. – “Não sei senhor mestre.
Traduzi apenas o que me veio’ ao pensamento.”
Muitos anos depois, quando já se consagrara compositor de grande projeção no cenário do mundo, Quintino Sella, o político a quem Verdi dedicava grande estima, perguntou-lhe certa vez: – Quando compõe alguns dos seus estupendos trechos musicais, de que maneira surge o pensamento no cérebro? Escolhe primeiro o motivo principal e combina, depois, o acompanhamento, de flauta, de violino ou de outro instrumento?
– Não, não – interrompeu com grande vivacidade o ilustre maestro. – O pensamento nasce completo e, sobretudo, sinto se a nota de que fala deve ser de flauta ou de violino. A dificuldade reside em escrever bastante depressa para poder expressar o pensamento musical na integridade com que me veio à mente.
E Marcílio Sabbá acrescentou:
“A música de Verdi não podia ser mais espontânea. Provinha de um impulso, emanava de um manancial e escorria tão rápida que alguns críticos, nos primeiros tempos, lhe censuravam a violência dramática, que alcunharam de brutalidade musical.”
E perguntamos: – Que manancial era esse a que se referia Marcílio Sabbá? Ele provinha, sem dúvida alguma, de duas fontes distintas, ou de ambas conjugadas.
As inspirações eram transmitidas por entidades espirituais, e que ele, por suas faculdades mediúnicas, recebia, ou então eram elas simples reminiscências, de seu próprio Espírito, de melodias conhecidas em outras existências, reminiscências essas muitas vezes facilitadas pela interferência dessas entidades espirituais.
Em uma das cartas de Verdi, diz ele crer na inspiração, enquanto que nós só acreditamos na elaboração.
“Sabemos que há em nós profundezas misteriosas onde lentamente se foram depositando, por meio das idades, os sedimentos das nossas vidas de lutas, de estudo e de trabalho; ali se gravam todos os incidentes, todas as vicissitudes do passado obscuro. E’ como um oceano de coisas adormecidas, balouçadas pelas vagas do destino.
Um apelo poderoso da vontade pode fazê-lo reviver.
A vista do Espírito, nas horas de clarividência, desce para elas como as radiações das estrelas se coam e vão às profundezas glaucas, até debaixo das abóbadas e das arcadas dos recessos sombrios do mar.”
Franz Werfel, em seu livro intitulado “Verdi”, diz que “no homem, isto a que chamamos instante criador é apenas uma concentração de seus elementos psicofísicos, uma reorganização súbita destes elementos em saber metafísico. Em verdade, ao homem não é possível criar, mas só ver, observar. Escrever música é mera ficção. Existem melodias; não é possível produzi-Ias, senão descobri-Ias. São, dentro de sua própria esfera, o que, no mundo, são as fontes subterrâneas e ocultas.
A genialidade vem a ser, por isso, a faculdade do ser humano em se tornar às vezes em varinha mágica, simplesmente”.
O próprio Verdi se emocionou quando, ao piano, experimentou o famoso e pungente “Miserere” da ópera “Trovador”, de sua autoria.
Giulio Monteverde, que conhecera Verdi muito bem, disse que “os olhos profundos do compositor tinham uma fosforescência especial que impressionava até as pessoas por demais afastadas dele para lhe verem com clareza as feições. Esses olhos fosforescentes olhavam para o mundo e para os homens com firmeza e calma, um tanto melancólicos e desencantados”.
Verdi era um espírito superior, jamais se envaideceu pelos êxitos alcançados. Quando César Lombroso, definindo- lhe o temperamento de homem sadio e equilibrado, sem anomalias cranianas ou faciais, pelas quais acreditava catalogar tanto os gênios como os delinquentes, lhe negou a sublimidade genial, Verdi não se ofendeu. Considerando- se, talvez, melhor que muitos outros, aproveitou a oportunidade para firmar a sua independência; não sendo classificado como homem de gênio, melhor poderia adejar a sua fantasia sem temor de perturbar a reputação conquistada.
Aliás, todos os grandes homens sempre se julgam inferiores, porque, como médiuns e habituados a sentirem as magnificentes belezas da vida espiritual, consideram- se, por isso, pequenos e seus trabalhos e obras simples caricaturas do que existe nos planos siderais’.
Dizia ele: “… meu destino! Não serei nunca um sábio em música; não passarei de um desastrado! … “
Ele foi, indiscutivelmente, um missionário, porque a sua missão consistiu, na opinião de Franz Werfel, em salvar a ópera tradicional, a ópera em si, a do canto, e pôr bem claro suas possibilidades de evolução para o futuro.
Não obstante, Verdi foi um homem simples, mas de uma simplicidade feita de grandeza, e sobretudo caridoso.
Praticava a caridade como ensina o Evangelho.
Procurava sempre, ao auxiliar alguém, tirar aquele aspecto de humilhação. Compreendia que o homem, para ser verdadeiramente caridoso, tinha de ser profundamente humano. Sim, pois que todo “aquele que nega entendimento ao próximo pode inverter consideráveis fortunas no campo de assistência social, transformar-se em benfeitor dos famintos, mas terá de iniciar, na primeira oportunidade, o aprendizado do amor cristão, para ser efetivamente útil”.
Verdi, com sua arte, tornou-se possuidor de grandes haveres; o dinheiro, porém, esse perigoso inimigo do nosso progresso espiritual, jamais conseguiu dominá-lo, torná-lo insensível à dor de seus irmãos desafortunados.
Apiedava-se dos pobres, porque recordava ter sido também muito pobre, e que talvez, sem o auxílio generoso de Barezzi, ficasse sempre miserável.
Piave escrevera para Verdi dez libretos. Envelhecido, doente, sem poder trabalhar, caiu na miséria. Verdi, que o visitava amiúde, levando-lhe dinheiro, compreendeu que a situação não mudaria e, por isso, constituiu-lhe uma renda vitalícia, ao mesmo tempo que dotava a filha com um capital de suficiente rendimento.
Da obra de Marcílio Sabbá, intitulada “Vida de Verdi “, extraímos os seguintes trechos em que é exaltado o seu espírito caritativo.
“Além da caridade, pode dizer-se obrigatória, porque solicitavam amigos a quem Verdi estava ligado por vínculos de agradecimento, despendeu consideráveis quantias com a beneficência pública. Para os pobres de Busseto destinou alguns milhares de liras cuja distribuição se fazia sem mencionar o nome do benfeitor, fato aliás desnecessário, pois em Santa Agata só Verdi podia dispor de tais somas.
“Todos os anos enviava dinheiro para a árvore de Natal dos pequeninos necessitados de Busseto. Mesmo longe, não se esquecia de mandar certa importância ao pároco da freguesia, rogando a distribuição em esmolas e informando que, em caso de urgência, se lhe dirigisse diretamente. “
O publicista Simoni, por ocasião de uma audição na “Casa de Repouso”, em honra ao seu fundador, Giuseppe Verdi, assim falou aos seus protegidos:
“Pensando em Verdi vemos o ancião austero, disposto serenamente ao repouso no final da sua gloriosa jornada. Não me refiro ao Verdi dos segundos funerais, quando foi um símbolo da vida italiana, mas ao Verdi dos primeiros, que se afirmava um homem entre os homens, querendo ser conduzido humildemente ao cemitério.
Naquela manhã todo o povo se reuniu em volta de seu féretro. Evocamos o Maestro que nos últimos anos dirigiu o seu pensamento para esta casa que é dele e vossa, viveu sempre para a arte não somente nos seus deslumbramentos, mas também nos seus martírios. Ele vos acompanhava, vos envolvia na sua música, se alegrava com as vossas vitórias, espiava interessado vossas primeiras rugas. Para ele éreis seus irmãos, sua família e, quando a vossa vida se tornou cansada, triste, abriu-vos os braços e as portas deste refúgio. Aqui se confundem numa doce existência familiar: Leonor, Radamés, lago, Violeta, Manrico, Rigoleto… Ainda hoje se canta nesta casa. A música é o perfume da vossa vida; sob o inverno das vossas cãs, ainda a primavera freme. Não cantais para sobressair, mas para vossa alegria, e é assim que, junto do túmulo de Verdi, se deve rezar.”
Fonte: Grandes vultos da humanidade e o espiritismo.