Autora: Eugênia Pickina
“O corpo não dá impulsos de cólera a quem não os tem, como não dá outros vícios. Todas as virtudes e todos os vícios são inerentes ao Espírito”. (O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo IX, item 10.)
O ser humano, na vigência do século XXI, não logrou ainda desfrutar de um modo de vida que lhe assegure um intercâmbio harmonioso entre pensamentos e sentimentos, entre ele mesmo e os outros, uma vez que vive, mais do que nunca, os ímpetos do personalismo.
Com o legado cartesiano e os confortos materiais da civilização moderna foi exigido e pago um preço considerável na moeda da alienação e da angústia existencial, concomitante à desmistificação da natureza e à sacralização da cultura, que oneraram a sociedade ocidental com outros tipos de enfermidades, cujas raízes se prendem, muitas vezes, na relação obstruída com a dimensão do Espírito. Na ponderação de Leonardo Boff:
“Estamos acostumados a analisar nossos problemas do ponto de vista psicológico, sociológico, jurídico e até financeiro. É preciso que os analisemos também de uma perspectiva espiritual. Muitas de nossas angústias e das nossas doenças são conseqüências da dimensão espiritual não desenvolvida, anêmica, distorcida ou totalmente recalcada”. (1)
Na qualidade de seres conscientes, se por natureza somos instigados a conhecer, como já predito por Aristóteles, e a desenvolver uma relação significativa com o nosso íntimo para a irradiação de nossas virtudes e propósitos, o cuidado com a própria saúde depende de um entendimento que necessariamente admita o fato de que somos uma totalidade, cujo equilíbrio é mantido por uma energia que interliga todas as nossas partes. Essa energia “é chamada de Energia Vital, Força Vital ou Princípio Vital, não perceptível aos nossos sentidos”, na explicação de Célia Barollo. (2)
Muitas de nossas enfermidades resultam da ignorância em relação à nossa totalidade, uma vez que, no geral, apenas seguimos o curso das coisas, apegados a comportamentos, hábitos e idéias que precisariam, de um lado, ser corrigidos e, de outro, rigorosamente cultivados. Com isso, queremos mudar sem mudar, queremos o novo, mas sem o esforço de pôr a consciência em contato com um elemento negligenciado ou inconsciente em nós. Na maioria das vezes, gostamos de andar pelos mesmos caminhos reconhecidos como seguros, mesmo que eles nos causem ansiedade ou estados aflitivos, fazendo-nos adoecer.
Claramente, se alguém perguntasse, diríamos: “queremos sim uma individualidade saudável e desnecessariamente adoecida”. Mas, a princípio, não somos homogêneos, muito menos estáveis. A rigor, somos uma malha de pensamentos e sentimentos em desacordo, de boas e más intenções, de ações felizes e nefastas.
Desse modo, como estamos sujeitos à desordem, o desequilíbrio, que é uma ressonância das nossas relações interiores e exteriores, será ecoado por meio de uma conjunção de sinais e sintomas físicos e psíquicos, que são tentativas engendradas pela própria energia vital para harmonizar o nosso ser em sofrimento e, com isso, nos auxiliar a progredir e avançar.
O adoecer, então, pode ser entendido como uma expressão da necessidade humana de relocalização ou de transformação em relação ao si mesmo (relação ego-Espírito) e ao outro (relação ego-alter), sem descartar os fatores pretéritos e os socioambientais que estão ligados ao sujeito.
Para mediar e acelerar essa expressão, a terapia homeopática pode servir à melhora eficaz do indivíduo, uma vez que, necessariamente, leva em conta a totalidade humana relacionada aos seus experimentos e registros individuais (simbólicos, verbais e corporais), considerando a existência de mecanismos auto-reguladores naturais.
No modelo homeopático, a saúde pode ser entendida como um itinerário que conduz não somente à eliminação dos sintomas, mas necessariamente ao restabelecimento da harmonia da força vital do indivíduo, pois para Hahnemann (e seus seguidores) para que haja “adoecimento, isto é, desequilíbrio vital, é preciso que haja uma ‘predisposição interna’, uma vulnerabilidade que os homeopatas, denominam de ‘suscetibilidade’ do sujeito, ou seu ‘terreno mórbido’”. (3)
No tratamento homeopático, em primeiro lugar, o indivíduo (doente) é o ponto central da terapêutica; em segundo, o semelhante (o remédio) deve curar o semelhante (quadro sintomático), o que implica a articulação de dois itinerários de cura: um subjetivo – atenção focada no indivíduo – e outro sutil – o medicamento. E tal medicina, alicerçada no fundamento da cura e não no dos processos irregulares (doenças), orienta tanto uma terapia preventiva e mantenedora do equilíbrio da energia vital do indivíduo, como faz a mediação do processo de cura do doente em relação às suas enfermidades.
Ao contrário da visão materialista, como a terapia homeopática enlaça-se a uma visão que considera o homem em sua “totalidade, formado de corpo, mente e Espírito, sob a influência de um complexo exterior social, político, econômico e ambiental” (4), a doença, per se, não é um mal que deve ser debelado, pois é o indivíduo doente, e não a doença como entidade separada, que deve ser objeto de uma terapêutica a fim de que possa ser curado.
Na era contemporânea, vemo-nos, da mesma forma que outrora, obrigados a desenvolver o nosso existir mediado por uma lúcida vontade. Precisamos estar dispostos a enfrentar nossas heranças negativas a partir de uma atitude auto-educativa para manter nosso bem-estar diário: viver e conviver com harmonia.
Nesse curso, a homeopatia, enquanto medicina baseada no discurso do paciente e no quadro sintomático individual, pode auxiliar o ser humano na sua tarefa de auto-aprimoramento, pois favorece a manutenção regular da sua força vital, essencial para uma vida saudável (*). Ora, uma encarnação é uma oportunidade única e valiosa, que contém, ao menos, um caro objetivo para cada pessoa que cumpre ser realizado. Senão, mais tarde, a estória contada pelo poeta Rumi fará eco no coração daquele que, na sua passagem, não lhe deu importância e cumprimento:
“Um rei o enviou a um país para executar uma tarefa especial e específica. Você vai até o lugar e realiza uma centena de outras coisas, mas se não se desincumbiu daquela que foi mandado fazer, é como se não tivesse feito absolutamente nada. Da mesma forma, cada homem veio ao mundo para realizar um trabalho particular e esse é o seu propósito. Se ele não o puser em prática, não terá feito nada”. (5)
Bibliografia
(1) BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformação. RJ: Sextante, 2001, p. 82.
(2) BAROLLO, Célia R. Aos que se tratam pela homeopatia. 10 ed. SP: sem editora, 2001, p. 17.
(3) LUZ, Madel T. Natural, racional, social; razão médica e racionalidade científica moderna. 2 ed. SP: Hucitec, 2004, p. 181.
(4) BAROLLO, Célia R. Op. cit., p. 4
(5) Rumi, Jejaluddin. “Feeling the Shouder of the Lion”: Poems and Teachings Stories. Threshhold Press, VT, 1991, p 21.
Notas
(*) Madel T. Luz esclarece que para Hahnemann, o fundador da homeopatia, “a saúde é o equilíbrio da energia ou força vital. Há, no caso, uma definição afirmativa da saúde, ligada ao princípio da harmonia do dinamismo vital”. (Op. cit., p.180)
(**) Quando me refiro à homeopatia como um recurso terapêutico, não há o desmerecimento da medicina convencional (alopatia) e seu papel indispensável. A questão não é de embate (alopatia x homeopatia), mas sim, no caso, de preferência por um modelo de medicina que serve, certamente, ao trabalho interior, ao conhecimento de si mesmo. Na prática de todos os dias, alopatia e homeopatia podem desenvolver um trabalho integrativo ou, no mínimo, de respeito mútuo.
O consolador – Ano 1 – N 28