Autor: Irmão X (espírito)
Otávio Pereira, antigo orientador da sementeira evangélica, presidia simpática associação espiritista. Certa feita, violenta reação lhe assaltou a direção pacífica e produtiva.
– Aquelas diretrizes “carro de boi” – criticavam alguns – não serviam.
– Era necessário criar vida nova, dentro da Instituição, projetando-a além das quatro paredes – pontificavam outros.
– Otávio é orientador antiquado – asseveravam muitos – e vive circunscrito a preces, passes, comentários religiosos e sessões invariáveis.
Surpreendido, mas sereno, Pereira assentou medidas para a realização de uma assembleia, onde os companheiros pudessem opinar livremente.
Concordava com os méritos do movimento e ele mesmo – repetia bondoso e humilde – seria o primeiro a colaborar na renovação imprescindível.
Constituída a grande reunião, o velho condutor assumiu a presidência dos trabalhos e abriu o debate franco, rogando aos amigos expusessem as idéias de que se faziam portadores.
O primeiro a falar foi o Senhor Fonseca que, enxugando frequentemente o suor da larga testa, expôs o plano de um orfanato modelar, através do qual a agremiação pudesse influenciar o ânimo do povo.
Finda a explanação veemente e florida, Pereira indagou, sem afetação, se o autor da ideia estava disposto a dirigir-lhe a realização, mas Fonseca afirmou, sem preâmbulos, que não contava com tempo para isso. Era empregado de uma companhia de seguros, e oito bocas, em casa, aguardavam dele o pão de cada dia.
Em seguida, levantou-se Dona Malvina e falou largamente sobre a conveniência de fundarem uma escola, à altura moral da casa, com setores de alfabetização e ensino profissional.
Interpelada, porém, pelo orientador, quanto ao empenho de sua responsabilidade feminina no empreendimento, exclamou, célere:
– Oh! eu? que graça! Tenho ideias, mas não tenho forças… Sou uma pecadora, um Espírito delinquente! Não tenho capacidade para ajudar ninguém.
Logo após, toma a palavra o Senhor Fernandes, que encareceu a edificação de um departamento para a cura de obsidiados; contudo, quando Pereira lhe pediu aceitasse a incumbência da orientação, Fernandes explicou, desapontado:
– A ideia é minha, mas eu não disse que posso executá-la. Estou excessivamente fraco e, além disso, sinto-me inapto. Sou um doente, e há muito tempo estou de pé, em razão do socorro da Misericórdia Divina.
Mal havia terminado, ergueu-se o irmão Ferreira, que lembrou a organização de um trabalho metódico de assistência aos enfermos e necessitados, com uma pessoa responsável e abnegada à frente da iniciativa.
Quando pelo mentor da instituição foi consultado sobre as probabilidades de sua atuação pessoal no feito em perspectiva, Ferreira informou, sem detença:
– Minha ideia resultou de inspiração do Alto, entretanto, sou portador de um carma pesado. Tenho a resgatar muitos crimes de outras encarnações. Não posso, não tenho merecimento…
E, de cérebro a cérebro, as ideias pululavam, sublimes e coloridas, entusiásticas e fascinantes, mas, de boca em boca, as confissões de ineficiência se sucediam, multiformes.
Alguns se revelavam doentes, outros cansados, muitos se declaravam absorvidos de inquietações domésticas e não poucos se diziam dominados por monstruosas imperfeições.
A assembleia parecia trazer fogo no raciocínio e gelo no sentimento.
Quando os trabalhos atingiram a fase final, depois de compridas conversações, sem proveito, Pereira, sorrindo, comentou breve:
– Meus irmãos, nossa casa, sem dúvida, precisa movimentar-se, avançar e progredir; entretanto, como poderá o corpo adiantar-se, quando as mãos e os pés se mostram inertes? Todos possuímos ideias fulgurantes e providenciais, todavia, onde está a nossa coragem de materializá-las? Quando os membros se demoram paralíticos, o pensamento não faz outra coisa senão imaginar, orar, vigiar e esperar… Sou o primeiro a reconhecer o imperativo de nossa expansão, lá fora, no grande mundo das consciências, no entanto, até que sejamos o conjunto harmonioso de peças vivas, na máquina da caridade e da educação, como veículos irrepreensíveis do bem, não disponho de outro remédio senão aguardar o futuro, no Espiritismo das quatro paredes…
E, diante da estranha melancolia que dominou a sala, apagou-se o brilho faiscante das ideias, sob o orvalho das lágrimas com que Pereira encerrou a sessão.
Nota
O conto acima, psicografado por Francisco Cândido Xavier, faz parte do livro Contos Desta e Doutra Vida.
Obra completa: https://www.febeditora.com.br/contos-e-apologos