Autor: Ivomar Schuler da Costa
Sucedendo à benevolência, Kardec classifica a indulgência como a segunda virtude elementar da caridade .
Ao ler as obras fundamentais do Espiritismo encontram-se termos em que os significados por vezes se aproximam e por vezes se afastam, causando alguma confusão ao leitor menos atento ao processo sinonímico e diacrônico, dentro do campo semântico. Este é o caso de alguns utilizados nos evangelhos, bem como nas obras espíritas. Perdão, indulgência e misericórdia aparecem muitas vezes em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”. Seriam eles sinônimos? Para que possamos entender e aplicar a caridade em toda a sua extensão, necessário se faz conhecer o sentido exato dos termos utilizados pelos luminares que em todos os tempos os revelaram a nós, como condição indispensável ao bom entendimento e à boa aplicação dos seus conselhos morais.
A caridade ainda é uma grande desconhecida; para que a sua prática seja fiel precisamos apreender o seu significado, a sua estrutura e composição. Kardec, com sua enorme capacidade intelectual, conseguiu sintetizar em apenas seis virtudes, classificadas como elementares, mais de dois mil anos de perquirições a respeito deste tema essencial para a humanidade.
A despeito de todo o cuidado que ele tomou na elaboração das obras básicas, buscando esclarecer com exatidão o significado dos termos utilizados, alguns ainda foram deixados para que a posteridade os estudasse e esclarecesse. Contando com o nosso interesse e capacidade de entendimento, e com a evolução dos métodos de interpretação, tendo em vista a impossibilidade material de escrever sobre cada mínimo detalhe, ele deixou-nos inúmeras pistas. Sem dúvida, ele sabia que os termos utilizados sofreriam alterações de sentido, assim tratou de organizar seus textos de maneira que a disposição destes oferecesse condições de serem de decodificados e seus sentidos exatos serem apreendidos pelos espíritas dos séculos vindouros. A questão de que tratamos é um destes casos.
Sendo a indulgência uma das virtudes elementares da caridade, para captar o sentido exato desta não podemos, em hipótese alguma, passar ao largo do entendimento daquela. Contudo, essa tarefa não é tão fácil como pode parecer à primeira vista. No decorrer dos séculos essa virtude essencial foi expressa por diversos termos, atendendo à necessidade dos tempos e da evolução da mente humana. Tudo isso leva os interessados na própria evolução a um esforço interpretativo no qual devem procurar as raízes semânticas para apreender o seu sentido exato, pois sem isso a prática da caridade restará enfraquecida, ou distorcida.
Comecemos notando que Kardec coloca uma das bem-aventuranças como título do capítulo X: Bem-aventurados os que são misericordiosos. No decorrer do capítulo vemos os evangelhos e os espíritos usarem termos como misericórdia, perdão e indulgência. Pela colocação dos termos na estrutura do capítulo, observamos que, apesar das fortes relações de sinonímia, existem perceptíveis diferenças de significado entre eles.
O posicionamento do termo misericórdia no título do capítulo nos indica que tem significado bem mais amplo do que os outros dois. Logo a seguir, no primeiro subtítulo temos “Perdoai, para que Deus vos perdoe” e depois em “Instrução dos Espíritos”, item 14, identificamos o termo “perdão” em “Perdão das ofensas”, e mais adiante “A indulgência”. Desta forma, entendemos que o sentimento de misericórdia abrange os outros dois, apesar disso causar certa confusão, já que no linguajar cotidiano costumamos utilizar ambos como sinônimos absolutos.
Vejamos as relações de sentido entre os termos utilizados. Em “Perdoai, para que Deus vos perdoe”, item 4, § 1º, Kardec diz que “Ela (a misericórdia) consiste no esquecimento e no perdão das ofensas. […]. O esquecimento das ofensas é próprio da alma elevada, que paira acima dos golpes que lhe possam desferir.”, o que nos leva a entender que o perdão é um ato próprio da misericórdia.
Uma característica do perdão, que podemos inferir do texto, é que os espíritos que já atingiram as culminâncias da evolução não se sentem ofendidos pelas ações derivadas das imperfeições alheias. Portanto, somente precisa perdoar quem se sente ofendido, e estes são aqueles espíritos que ainda se encontram na luta pela conquista da superioridade moral. Decorre daí que a necessidade de perdoar é sempre relativa ao nível espiritual; um dia não necessitaremos mais perdoar.
No item 15, § 1º, ainda no subtítulo “Perdão da ofensas”, Paulo, o apóstolo, diz que “[…] o vosso adversário andou mal em se mostrar excessivamente suscetível; razão de mais para serdes indulgentes […]”, relacionando, desta forma, o perdão com a indulgência.
Além destas relações estabelecidas pelos espíritos, Kardec, como poliglota, deve ter percebido, devido às origens latinas do termo, que a relação entre eles é histórica e semântica. O termo indulgéntia era usado pelos romanos como sinônimo de outras palavras, tais como: remíssio, que significava quitação, remissão, perdão; relaxátio, ou seja, alívio, atenuação; absolútio, cujo sentido era o de dissolução ou absolvição; indúltum, ou mais especificamente, perdão. A palavra indúltum era usada no sentido de perdão dos tributos não pagos (remíssio tributi) ou de perdão das penas (remíssio poenae). Não pagar os tributos devidos a Cezar era um erro gravíssimo. Em determinadas épocas os imperadores concediam indultos, ou seja, perdão, àqueles que haviam sido condenados ou que não haviam pago seus impostos. O termo abolitio era algo parecido com uma anistia ou libertação dada durante festividades públicas, uma forma de libertação.
Um exemplo do sentido de termo sinônimo de indulgência é encontrado em “Atos dos apóstolos 24:23” . Paulo havia sido preso e conduzido à Cesareia. Lá, depois de ouvido pelo procurador Felix, o centurião encarregado da sua guarda recebeu instruções para tratá-lo com brandura, inclusive permitindo que recebesse a visita de amigos e que fosse ajudado por eles. O texto em latim diz: habére mitigatiónem. A ordem era para que o centurião amenizasse a severidade e, geralmente, a crueldade, com que os prisioneiros eram tratados pelo poder imperial. Neste caso a indulgência significou brandura, suavização do tratamento dispensado ao prisioneiro.
Originalmente o termo indulgência era muito amplo e abrigava vários significados e sinônimos, inclusive o de perdão. Este era apenas um caso específico dentro do campo semântico do termo indulgência. Portanto, não se deve entender e tratar indulgência e perdão como sinônimos exatos e absolutos.
De modo semelhante ao termo em latim, indulgência para os espíritos da codificação é também abrangente.
De acordo com José, Espírito protetor, no subtítulo “Indulgência”, item 16, ela consiste em a pessoa evitar conhecer intencionalmente os defeitos alheios, e se por acaso toma conhecimento deles não os divulga, a não ser em caso em que um grupo maior possa vir a ser ou estar sendo prejudicado. Mesmo assim procura atenuar as suas observações. Evitar críticas e censuras aos erros alheios faz parte da indulgência.
Ela seria muito simples caso se resumisse a isto. Existem situações em que é impossível fugir a crítica e a censura, em primeiro lugar porque somos dotados pela providência divina de faculdades intelectuais e morais próprias para o exercício do discernimento entre o bem o mal, portanto, sob pena de conivirmos com o erro, não devemos nos omitir. Quando somos obrigados pela força da situação a emitir pareceres sobre o comportamento alheio, os espíritos nos recomendam a brandura. No item 15 temos “[…] se fordes duros, exigentes, inflexíveis, se usardes de rigor até por uma ofensa leve, como querereis que Deus esqueça de que cada dia maior necessidade tendes de indulgência?”; no item 16, § 4, é dito, “Sede, pois, severos para convosco, indulgentes para com os outros” e no § 5, “Sede indulgentes, meus amigos, porquanto a indulgência atrai, acalma, ergue, ao passo que o rigor desanima,a fasta, irrita.”; no 1º § do item 17, o espírito João, Bispo de Bordéus, nos recomenda: “Sede indulgentes com as faltas alheias, quaisquer que elas sejam; não julgueis com severidade senão as vossas próprias ações […]”. O espírito Dufêtre, Bispo de Nevers, no item 18, § 1º recomenda: “[…], Sede severos convosco, indulgentes para com as fraquezas dos outros.”. No mesmo parágrafo ele diz que a indulgência consiste em cada um observar apenas superficialmente os defeitos de outrem, esforçando-se para fazer prevalecer os que há nele de bom e virtuoso.
A indulgência, então, implica não em fechar a mente para a percepção dos erros alheios, o que seria negar e anular as capacidades de que fomos dotados, mas sim, apesar de vê-los, suavizar nossas críticas e censuras e, simultaneamente, destacar os aspectos positivos daqueles que os cometem. Ser indulgente é tratar com menos severidade os erros alheios do que os nossos.
A razão pela qual devemos desenvolver a indulgência está em nossa própria imperfeição. No § 1º do item 13, ao tratar da questão da autoridade para julgar e condenar os erros dos outros diz “‘Atire a primeira pedra aquele que estiver isento de pecado’ disse Jesus. Esta sentença faz da indulgência um dever para nós outros […]. Ela nos ensina que não devemos julgar com mais severidade os outros, do que julgamos a nós mesmos, nem condenar em outrem aquilo de que nos absolvemos.”. Embora sendo autoexplicativa, podemos acrescentar que ser indulgente requer profundo autoconhecimento.
Extraímos quatro conclusões do exposto. A primeira delas é que indulgência é mais ampla do que o perdão. Existe uma área de intersecção dos significados dos termos, em que ambos se confundem; a necessidade de perdoar é temporária, pois deixa de existir quando o espírito atinge o cume da evolução moral, ao passo que a indulgência permanece sempre e cada vez mais, porquanto o espírito evoluído terá sempre de se confrontar com as imperfeições daqueles que ainda palmilham as difíceis estradas da ascensão moral. Dessa forma, como segunda conclusão temos que a indulgência se expande na medida em que o perdão se encolhe, até este desaparecer.
A terceira conclusão refere-se à identidade entre indulgência e misericórdia. Este termo aparece no título do capítulo X, ao passo que o termo indulgência, Kardec o coloca como uma das virtudes elementares da caridade. Portanto, em decorrência da expansão da indulgência na medida em que evolui o espírito, chega um momento em que se identificam como uma só virtude, embora termos diferentes a denominem. Podemos representar a misericórdia como o circulo que contém dois outros círculos inscritos e secantes. Os dois círculos secantes são a indulgência e o perdão. No entanto, quando o espírito evolui a ponto de não precisar perdoar, resta apenas um circulo inscrito; na medida em que ele evolui o circulo que representa a indulgência cresce até se confundir totalmente com o circulo maior; misericórdia e indulgência se tornam dois termos que significam a mesma virtude.
Finalmente, a quarta conclusão é que a indulgência é a capacidade de compreender os erros cometidos por outrem, devido as suas fraquezas morais. A partir do reconhecimento da nossa própria imperfeição aumentamos nossa capacidade de compreender a imperfeição dos outros. Portanto, a indulgência é substancialmente uma virtude em que o espírito, a partir do autoconhecimento, passa a entender e a sentir compaixão pelos espíritos ainda imperfeitos. O espírito abandona o orgulho, ou seja, o sentimento de superioridade que alimenta em relação aos outros. Entende, sobretudo, que todos guardam dentro de si a capacidade de se melhorarem, e assim passa a ver os outros com olhos carregados de amor. Por isso a indulgência é a virtude da compreensão.
O consolador – Ano 8 – N 400