Autor: Ricardo Baesso de Oliveira
Tradicionalmente, considera-se esmola como uma pequena quantia de dinheiro dada a um pedinte por caridade. Talvez possa considerar-se também como esmola a doação de alimentos, roupas, remédios etc. É considerada por várias religiões como um ato caridoso feito aos necessitados. Nas religiões abraâmicas, esmolas são dadas para beneficiar os pobres e agradam a Deus.
Allan Kardec não condenou a esmola, considerando-a como uma forma de caridade material.[i] Kardec acreditava que negar-se a auxiliar materialmente aqueles que precisam de nossa ajuda, podendo fazê-lo, é um ato de extremado e cruel egoísmo, e solicitou, em inúmeras oportunidades, aos membros da Sociedade Parisiense de estudos espíritas, donativos para socorro emergencial a vítimas de tragédias climáticas ou outras calamidades. [ii]
A nossa atitude, portanto, ante todo comportamento de ajuda deveria ser, como regra geral, favorável e otimista, considerando que toda ação no bem é um bem em si mesmo. Lembra Emmanuel que a caridade é sublime em todos os aspectos sob os quais se nos revele e em circunstância alguma devemos esquecer a abnegação admirável daqueles que distribuem pão e agasalho, remédio e socorro para o corpo, aprendendo a solidariedade e ensinando-a.[iii]
O que se discute entre estudiosos espíritas são alguns aspectos vinculados à esmola, particularmente se o socorro material deve se dar de forma incondicional e indistinta – sem olhar a quem, ou se deveria acompanhar-se de um exame crítico e especial de cada situação em particular.
Duas posturas podem ser identificadas. A primeira é a postura dos que pensam que a esmola como manifestação da compaixão deve dispensar o raciocínio lógico e deve-se doar àquele que nos pede de forma espontânea, livre e incondicionada – um ato de amor ao próximo, manifestação da bondade espontânea que deve viger em todos nós. Reconhecem a importância de se fornecer ao infortunado elementos para superação das causas da pobreza, mas não concordam em racionalizar a ajuda material. Alguns dizem, se justificando: Faço a minha parte! Se o falso mendigo age equivocadamente é problema dele!
A segunda postura identifica-se nos que julgam que dar esmolas indistintamente pode induzir à preguiça e à exploração alheia, especialmente quando dadas livremente, nas ruas, e afirmam que a ajuda real deveria estar focada em fornecer instrução, trabalho digno, apoio moral – auxiliar o necessitado a sair de sua condição de pobreza ou miséria a partir do próprio esforço. Segundo essa forma de pensar, a esmola deveria ser dada ocasionalmente, em situações emergenciais.
Como se posicionava Allan Kardec diante desse debate? A questão não nos parece ter sido totalmente resolvida entre os Espíritos que se manifestaram ao nosso codificador, pois identificamos mensagens mediúnicas que caminham ora em uma, ora em outra direção, embora Kardec, aparentemente, possuísse posição bem definida a respeito. Destacamos nesse particular a mensagem A caridade, assinada por Vicente de Paulo e publicada na Revista espírita de julho 1858. No sétimo parágrafo, o autor coloca: Quando deixardes que vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes algo, sem questionar se sua miséria não é fingida ou se seu mal provém de um vício de que deu causa; quando abandonardes toda a justiça nas mãos divinas; quando deixardes o castigo das falsas misérias ao Criador; quando, por fim, praticardes a caridade unicamente pela felicidade que ela proporciona e sem inquirir de sua utilidade, então sereis os filhos amados de Deus e ele vos atrairá a si.
Os pensamentos grifados por nós dialogam com a primeira postura – o socorro material incondicional. Estão presentes no texto as ideias de socorrer materialmente sem questionar, sem investigar a causa, sem questionar a legitimidade do pedido nem a sua utilidade.
Kardec parece não haver consentido totalmente com as ideias apresentadas. Após a mensagem, o codificador dialoga com a entidade, da seguinte forma:
Kardec: – Pode-se entender a caridade de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando dissestes que era necessário que o coração se abrisse à súplica do infeliz que nos estendesse a mão, sem questionarmos se não seria fingida a sua miséria, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola?
Vicente de Paulo – Sim; somente nesse parágrafo.
Kardec: – Dissestes que era preciso deixar à justiça de Deus a apreciação da falsa miséria. Parece-nos, entretanto, que dar sem discernimento às pessoas que não têm necessidade, ou que poderiam ganhar a vida num trabalho honesto, será estimular o vício e a preguiça. Se os preguiçosos encontrassem aberta com muita facilidade a bolsa dos outros, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiros infelizes.
Vicente de Paulo: – Podeis discernir os que podem trabalhar e, então, a caridade vos obriga a fazer tudo para lhes proporcionar trabalho; entretanto, também existem falsos pobres, capazes de simular com habilidade misérias que não possuem; é para os tais que se deve deixar a Deus toda a justiça.
Observamos, pelo visto, que Kardec assume uma atitude contraditória ante o pensamento da entidade, questionando-a quanto à real validade de se prestar um socorro material àqueles que poderiam custear-se a si mesmos: […] dar sem discernimento poderia estimular o vício e à preguiça. Acrescenta Kardec que os preguiçosos multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiros infelizes.
Fica evidente pelo texto que Vicente de Paulo reflete sobre a colocação de Kardec e faz um reparo em relação à colocação prévia: podeis discernir os que podem trabalhar. Para estes, a entidade propõe, na resposta a Kardec, uma ação promotora do trabalho digno, sensibilizando-os para tal e auxiliando-os nesse cometimento.
O pensamento kardequiano se identifica com o entendimento dos especialistas em assistência social e promoção humana, segundo o qual a esmola não dignifica ou promove o ser humano, funcionando, muitas vezes, como estímulo à indolência. No Brasil, centenas de secretarias municipais de assistência social trabalham no sentido de esclarecer os cidadãos quanto à melhor atitude ante o pedinte, desaconselhando a prática generalizada da esmola. Em São Paulo verificou-se que uma criança consegue ganhar, em média, R$ 500 por mês nos semáforos da cidade. Indagam os especialistas: Assim, será possível tirá-las da rua?[iv]
Quando psicólogos evolucionistas estudam a evolução dos grupos sociais humanos, particularmente no longo período de nossa pré-história, eles se deparam com o “problema do trapaceiro ou aproveitador”, indivíduos que não contribuem, mas usufruem do que é gerado pela ação coletiva.[v]
Um dos traços mais importantes em nossa psicologia diz respeito ao nosso funcionamento social, em particular nossa capacidade de trabalhar em equipe. Excetuando os insetos sociais que, por impositivo genético, servem à colônia, esse comportamento coletivista raramente é visto entre os animais.
Assim que nossos antepassados deixaram as árvores, há cerca de 7 milhões de anos, nossa própria existência dependeu da capacidade de trabalharmos juntos. Foi essa necessidade de ação coletiva que produziu a mais importante mudança psicológica que nos permitiu prosperar na savana, além de apenas sobreviver. Em algum momento de nossa história evolutiva, nossos ancestrais se uniram na defesa coletiva, e, a partir daí, todos passaram a ter maior chance de sobrevivência. Indivíduos em grupos que aprenderam a trabalhar em cooperação tinham uma enorme vantagem. Porque, anatomicamente, nossa espécie é um fiasco: corremos e saltamos mal, não possuímos dentes afiados e garras potentes para o ataque e defesa, a nossa infância é a mais longa e mais frágil do reino animal, e, no entanto, somos, hoje, a espécie mais bem-sucedida do planeta. Devemos isso à união de esforços pelo bem coletivo.
No entanto, existe uma grande ameaça à cooperação: o parasitismo, ou a tendência a fugir do trabalho pesado e, ao mesmo tempo, partilhar os benefícios. Como evoluímos para cooperar uns com os outros, também desenvolvemos um sistema de detecção de trapaceiros e uma forte reação emocional a aproveitadores, mantendo a harmonia grupal através do desenvolvimento de um senso particular de justiça.
A mais poderosa arma de que se valiam os nossos antepassados para combater o trapaceiro e o preguiçoso era o ostracismo. Ser expulso de um grupo de homens primitivos era uma sentença de morte, em um mundo tremendamente hostil. Por essa razão, nossos ancestrais desenvolveram rapidamente uma forte reação emocional à ameaça de ser colocado fora do grupo ou perder seu valor perante os pares. Isso explica, em nossa sociedade contemporânea, a insuperável necessidade de sermos bem-vistos e valorizados perante os outros. A rejeição social é algo incrivelmente doloroso.
A punição ao aproveitador e ao trapaceiro foi essencial ao notável desenvolvimento da espécie Homo sapiens, e, hoje, é a mola mestra na manutenção de uma vida social razoavelmente estável.
Esse senso de justiça inexiste entre nossos primos mais próximos, os chimpanzés e são responsáveis por comportamentos aparentemente altruístas, mas, que, em verdade, denotam profundo atraso evolutivo.
Para exemplificar, consideremos o que acontece quando chimpanzés caçam macacos. A caça aos macacos é uma de suas poucas atividades coletivas, porque os macacos têm muita dificuldade em escapar quando os chimpanzés vêm de todos os lados. Mas mesmo quando os chimpanzés caçam em grupo, nem todos se envolvem. Alguns permanecem sentados, preguiçosamente observando o caos ao redor. Quando a caçada termina eles compartilham as presas, comida rica em calorias. O que surpreende é que os que ficaram apenas observando ganham também seu pedaço de carne. Seus colegas chimpanzés fazem pouca ou nenhuma distinção entre omissos e colaboradores.
Claro contraste se observa com os humanos, mesmo crianças de quatro anos prestam muita atenção em quem ajuda e quem não ajuda. Quando ganham doces por trabalhar em equipe, escondem daquelas que não ajudaram, mas partilham com as que ajudaram. Quando obrigadas a dividir também com os preguiçosos, elas dizem: – Isso não é justo!
Isso pode não parecer muito amistoso – poderia até mesmo ser um comportamento a ser desestimulado: afinal, partilhar é carinhoso -, mas, de um ponto de vista evolutivo é determinante. Animais que não fazem distinção entre colaboradores e espectadores nunca terão a capacidade de criar e sustentar equipes eficazes.
Outro exemplo, ainda mais impressionante, encontramos no relato da primatóloga Jane Goodall, quando observava chimpanzés em Gombe, Tanzânia. Melissa é uma chimpanzé que havia acabado de ter um filhote. Passion é outra chimpanzé do grupo de Melissa. Pom é a filha adolescente de Passion e ambas são psicopatas violentas. Em certo final de tarde, Melissa, com seu bebê de três semanas, encontrava-se em um galho de árvore baixo, quando Passion e Pom a atacaram violentamente, com socos e mordidas, deixando-a atordoada.
A seguir, tomaram o bebê e o comeram sem que a mãe, que acompanhava impotente a cena, nada pudesse fazer. Quinze minutos depois da perda do bebê, Melissa se aproximou de Passion. As duas se encararam; depois Melissa esticou o braço e Passion tocou sua mão ensanguentada. Enquanto Passion continuava a se alimentar do bebê, Melissa começou a cuidar de seus próprios ferimentos. Seu rosto estava muito inchado, as mãos laceradas, o traseiro sangrando muito. Logo depois Melissa novamente estendeu a mão para Passion e a duas fêmeas se deram as mãos brevemente.
O que mais perturba os biólogos que examinaram esse fato não foi o canibalismo em si, pois ocorre ocasionalmente entre chimpanzés, mas o fato de Melissa ter se reconciliado tão rapidamente com as duas assassinas. Pior ainda, esse não foi um incidente isolado. Passion e Pom continuaram a matar e comer recém-nascidos em seu grupo durante anos. Provavelmente, as outras mães reagiram em grande medida como Melissa, lutando com todas as forças durante o ataque, mas depois aceitando o destino e não fazendo nada a respeito. Não fazer nada a respeito daqueles que se valem de um comportamento antissocial em benefício próprio não é boa estratégia na manutenção de uma coletividade saudável.
Um exemplo recente de “problema do aproveitador” encontra-se em pecuaristas e pescadores do pantanal de Poconé, Mato Grosso.[vi] No ano de 2013 a colônia de pescadores contabilizava cerca de 400 pescadores profissionais. Ser registrado como pescador dava a eles algumas vantagens, dentre elas receberem um salário mensal durante os meses de novembro a fevereiro, quando era proibida a pesca por causa da piracema. Mas durante o período de piracema, mesmo recebendo o salário, muitos pescadores pescam à noite, escondidos, e oferecem os peixes com altos preços, em decorrência da falta do produto nesta época do ano. Por outro lado, muitos indivíduos que têm profissões ou mesmo as esposas dos pescadores são registrados como pescadores profissionais para ter acesso à benfeitoria.
Pois bem, em janeiro de 2015, o governo decidiu rever todas as benesses oferecidas, porque verificou que em algumas cidades do norte do país havia mais pescadores do que moradores.
N’O Evangelho segundo o Espiritismo, [vii] Kardec se vale da expressão profissionais da mendicância ao se referir àqueles indivíduos que fazem da boa vontade alheia um meio de vida, mantendo-se à margem do trabalho digno, como reais parasitas sociais. Kardec não apregoa insensibilidade ou indiferença ante essas pessoas, mas quer mostrar que a estratégia de ajuda deve ser outra, já que atendê-los simplesmente em sua rogativa não seria a melhor forma de ajudá-los.
Kardec admite que se deva considerar, em certas situações, a responsabilidade pessoal daqueles que vêm a mendigar, por pouco esforço, atitude exploratória ou acomodação à própria sorte, sem negar, todavia, que a sociedade também é responsável por essa condição, por não lhes haver promovido, através do esclarecimento e bom exemplo, uma identificação com os valores éticos da dignidade, responsabilidade e fraternidade humana. Lembra Kardec que se uma boa educação moral lhes houvera ensinado a praticar a lei de Deus, não teriam caído nos excessos causadores da sua perdição. [viii]Ao se referir aos verdadeiros infelizes, Kardec reconhece a necessidade de a sociedade assumir os cuidados daqueles que se encontram sem condições mínimas de arcar com os custos da própria sobrevivência material. Na falta da família, compete à sociedade: o forte deve trabalhar para o fraco. Não tendo este família, a sociedade deve fazer as vezes desta. É a lei de caridade. [ix]
Importante assinalar que, à época do codificador, a previdência social, como órgão de socorro e assistência ao enfermo e idoso, não existia. Os primeiros institutos de previdência social surgiram bem depois da morte de Kardec, no final do século XIX, inicialmente na Alemanha e logo depois em outros países da Europa. Assim, os enfermos e idosos que estivessem impossibilitados de prover seu próprio sustento ficavam na dependência da caridade alheia. Não havia aposentaria por idade ou doença, seguro de saúde, afastamento remunerado para tratamento de saúde e outros serviços sociais hoje existentes em praticamente todos os países do globo.
Concluímos lembrando que, curiosamente, Kardec publica, posteriormente, a mensagem de Vicente de Paulo, em O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. 13, item 12, suprimindo do texto o parágrafo aludido por nós.
Referências
i Viagem espírita em 1862 – Discursos pronunciados nas reuniões gerais dos Espíritas de Lyon e Bordeaux III e Revista espírita, 1862/ Setembro – Uma reconciliação pelo Espiritismo.
ii Revista Espírita – Jornal de estudos psicológicos – 1862/ Fevereiro -Subscrição em favor dos operários lioneses; Revista espírita – 1863/ Janeiro – Subscrição em favor dos operários de Rouen; Revista espírita – 1866/ Novembro – Subscrição em favor dos inundados.
iii Fonte Viva, cap. 60.
iv Gilberto Dimenstein, na Folha de São Paulo, 10/04/2005.
v A evolução improvável, William Von Hippel.
vi Manual de Psicologia evolucionista, Yamamoto.
vii ESE, cap. 13, item 4.
viii LE, item 889.
ix LE, item 685-a.O consolador
O consolador – Especial