Autor: Leonardo Marmo Moreira
Durante os anos 1862 e 1863, Allan Kardec dedicou significativa atenção aos chamados “possessos de Morzine”, publicando vários artigos sobre essa verdadeira “epidemia obsessiva” em sua Revista Espírita (RE). Esse grave processo de obsessão afetou a pequenina cidade francesa da Alta Saboia chamada Morzine (à época, com 2.500 habitantes aproximadamente, segundo informações do próprio Codificador do Espiritismo), chamando a atenção das autoridades francesas.
Dois artigos foram publicados, em 1862, nas edições da RE dos meses de abril e dezembro (os artigos subsequentes sobre “os possessos de Morzine” sairiam em exemplares de 1863). Tais artigos foram marcantes para o aprofundamento do estudo da obsessão, pois, muito provavelmente, a fenomenologia ocorrida em Morzine esteve associada a uma certa mudança de posicionamento de Allan Kardec. De fato, a partir daí, o Codificador passou a utilizar a expressão “possessão” para os casos mais graves e com maiores consequências físicas da chamada “subjugação”, o que até a publicação de O Livro dos Médiuns, em 1861, não era admitido pelo Codificador. Ademais, o episódio de Morzine destaca igualmente a chamada “obsessão coletiva”, isto é, uma obsessão gerada por muitos Espíritos, a qual, além disso, afetava um grupo grande de pessoas em uma determinada região, caracterizando uma espécie de processo obsessivo “contagioso e local”. Esses artigos foram, inclusive, reunidos para fazer parte da relevante coletânea de casos de obsessão da Revista Espírita, elaborada pela União Espírita Belga, em 1950, e que recebeu o nome A Obsessão.
Essa complexa relação entre múltiplos obsessores, múltiplos obsidiados e uma única região atingida é pormenorizadamente analisada por Allan Kardec, que tem ocasião de avaliar esse tipo de “problemática geográfica da obsessão” ou, se preferirmos, uma possível susceptibilidade local da obsessão, mesmo que temporária, em função da ocorrência de uma “epidemia obsessiva” nessa região.
O caso de Morzine constituiu uma oportunidade para Allan Kardec fazer uma completa revisão doutrinária do tema “obsessão”, o que ilustra, com grande beleza, a solidez da Doutrina Espírita e sua capacidade para explicar uma série de processos espirituais com consequências físicas mal explicadas, ou até completamente inexplicadas, por outras propostas de pensamento.
Kardec faz uma avaliação mais ampla do perispírito, do mundo espiritual, da mediunidade e da obsessão, que não deve passar despercebida por todo estudante do Espiritismo.
Analisemos, portanto, alguns excertos dos dois primeiros artigos de Allan Kardec sobre os possessos de Morzine (publicados no ano de 1862), procurando extrair inferências do Espiritismo de uma maneira geral e da obsessão de forma mais específica. Aprendamos, portanto, com nosso Codificador, Allan Kardec e com os Espíritos e colaboradores que o auxiliaram nesse tema.
Primeiramente, analisemos algumas passagens do artigo de abril de 1862, o qual foi denominado “Epidemia demoníaca na Saboia”.
Capitão B, comentando os vários documentos gerados pelo processo de Morzine, afirma que “só o isolamento produziu bons resultados”. Capitão B também afirma que a “obsessão epidêmica” persistiu por vários anos, uma vez que o primeiro caso tinha ocorrido há cinco anos.
O Espírito Georges (através da médium Sra. Costel) prevê que bons Espíritos sucederiam aos Espíritos obsessores e, dessa forma, uma aquisição positiva de experiência poderia ocorrer, porque, em um segundo momento, um significativo aprendizado sobre a realidade espiritual e sua influência sobre a vida dos seres humanos poderia advir desse episódio.
Essa discussão acima é bem interessante, pois demonstra um aspecto bem positivo dessa dolorosa realidade que é a obsessão. Através dessa dolorosa experiência, aprendemos sobre a realidade espiritual e podemos, por consequência, aprender a ser mais vigilantes em relação ao nosso comportamento moral e nossas susceptibilidades espirituais.
O Espírito Erasto (através do médium Sr. D´Ambel), por sua vez, faz um interessante comentário. Erasto correlacionou os fenômenos de possessão com aqueles do tempo de Jesus, sugerindo que tanto o aparecimento do Mestre de Nazaré como o advento do Espiritismo foram acompanhados pela ocorrência de severa epidemia obsessiva. Ademais, Erasto frisa que a possessão traria aspectos positivos, pois chamaria a atenção de todos para a realidade espiritual do ser humano bem como para os métodos mais eficientes (que seriam aqueles de natureza moral e/ou magnético-espirituais) para o seu tratamento. Ora, assim como anos antes o fenômeno das mesas girantes e falantes atraiu a atenção de pesquisadores sérios, como o próprio professor Rivail, o crescimento do Espiritismo poderia ser acentuado pelos estudos de processos como aquele que ocorria em Morzine.
Kardec concluiu o seu primeiro artigo sobre o tema, fazendo comentários muito objetivos e esclarecedores. Vejamos:
– “…os meios ensinados pelo Espiritismo bastaram para fazer cessar a obsessão…”.
– “…Está demonstrado pela experiência que os Espíritos perversos não só agem sobre o pensamento, mas, também, sobre o corpo, com o qual se identificam e do qual se servem como se fosse o próprio…”.
– “…é bem uma espécie de loucura, de vez que se pode dar este nome a todo estado anormal, em que o Espírito não age livremente. Neste ponto de vista, a embriaguez é uma verdadeira loucura acidental…”.
– “…É necessário, pois distinguir a ‘loucura patológica’ da “loucura obsessional”.
Kardec também enfatiza o papel do Espiritismo nas doenças mentais, mas frisa a dificuldade histórica dessa ação, uma vez que muitos “…estão sempre dispostos a mandar para o hospício quem quer que tenha a fraqueza de acreditar que temos alma e que esta representa um papel nas funções vitais, sobrevive ao corpo e pode atuar sobre os vivos”.
– “…Em futuro não muito remoto a medicina sairá enfim da rotina materialista…”.
De fato, apesar de muitos avanços, esse processo de “espiritualização da medicina” ainda está se processando e os problemas causados pelos valores materialistas continuam prejudicando várias áreas da sociedade, tal como Allan Kardec já afirmava ocorrer em seu tempo.
No artigo intitulado “Estudo sobre os possessos de Morzine” (Causas da obsessão e meios de combate), Allan Kardec apresenta vários assuntos relacionados ao magnetismo, passes, obsessão, auto-obsessão e desobsessão, entre outros temas. Kardec destaca, logo no início do artigo, que “para apoiar nossa opinião, devemos entrar em explicações preliminares”. De fato, é realmente impressionante a abrangência desse texto. O Mestre de Lyon quase faz um resumo da Doutrina Espírita como um todo em um único artigo. Procuramos, nesse segundo tópico do presente artigo, segmentar boa parte do texto kardequiano e apresentá-lo como respostas a questões específicas, associando a tais questionamentos breves explicações, quando consideramos que tais adendos seriam interessantes.
Vejamos as elucidações kardequianas a perguntas que nós elaboramos no intuito de destacar a profundidade e a abrangência do conteúdo elaborado por nosso Codificador.
A desencarnação, por si só, faz com que o Espírito evolua? Como se dá a relação entre os Espíritos encarnados e os Espíritos desencarnados da Terra, do ponto de vista evolutivo?
“Após a morte, a alma de um homem de bem será um bom Espírito; do mesmo modo encarnando-se um bom Espírito será um homem de bem. Pela mesma razão, ao morrer, um homem perverso dará um Espírito perverso ao mundo invisível e um mau Espírito se encarnado não pode dar um homem virtuoso. E, assim, enquanto o Espírito não se houver depurado ou experimentado o desejo de se melhorar. Porque, uma vez entrado na via do progresso, pouco a pouco se despoja de seus maus instintos: eleva-se gradativamente na hierarquia dos Espíritos, até atingir a perfeição, acessível a todos, pois Deus não pode ter criado seres eternamente votados ao mal e à infelicidade. Assim, os mundos visível e invisível se penetram e alternam incessantemente; se assim podemos dizer, alimentam-se mutuamente; ou, melhor dito, esses dois mundos na realidade constituem um só, em dois estados diferentes. Esta consideração é muito importante para melhor compreender-se a solidariedade entre ambos existente.”
Como poderemos caracterizar a Terra em termos de evolução espiritual?
“Sendo a Terra um mundo inferior, isto é, pouco adiantado, resulta que a imensa maioria dos Espíritos que a povoam, tanto no estado errante, quando encarnados, deve compor-se de Espíritos imperfeitos, que fazem mais mal que bem. Daí a predominância do mal na Terra. Ora, sendo a Terra, ao mesmo tempo, um mundo de expiação, é o cotado do mal que torna os homens infelizes, pois se todos os homens fossem bons, todos seriam felizes. É um estado ainda não alcançado por nosso globo: e é para tal estado que Deus quer conduzi-lo. Todas as tribulações aqui experimentadas pelos homens de bem, quer da parte dos homens, quer da dos Espíritos, são consequências deste estado de inferioridade. Poder-se-ia dizer que a Terra é a Botany-Bay* dos mundos: aí se encontram a selvageria primitiva e a civilização, a criminalidade e a expiação.
*Botany-Bay, baía inglesa na costa da Nova Gales do Sul, perto de Sidney (Austrália), descoberta por Cook (1770). Foi aí que os ingleses fizeram os seus primeiros ensaios de colonização penal”.
Como podemos entender o mundo espiritual associado ao planeta Terra?
“…necessário imaginar-se o mundo invisível como formando uma população inumerável, compacta, por assim dizer, envolvendo a Terra e se agigantando no espaço. É uma espécie de atmosfera moral, da qual os Espíritos encarnados ocupam a parte inferior, onde se agitam como num vaso. Ora, assim como o ar das partes baixas é pesado e malsão, esse ar moral é também malsão, porque corrompido pelos miasmas dos Espíritos impuros. Para resistir a isso são necessários temperamentos morais dotados de grande vigor”.
Considerando a tão decantada “transição planetária”, que, atualmente, estaria em seus primórdios na Terra, é bem interessante constatar que Kardec já sinalizava a preparação dessa fase, com uma explicação muita didática, simples e objetiva.
Como se dará a passagem da Terra da classificação como mundo de provas e expiações para mundo de regeneração?
“… [os mundos inferiores] seguem a lei de progresso e, atingindo a idade precisa, Deus os saneia, deles expulsando os Espíritos imperfeitos, que não mais se reencarnam e são substituídos por outros mais adiantados, que farão reinar a felicidade, a justiça e a paz. É uma revolução deste gênero que no momento se prepara”.
Como é formado o perispírito? E como o perispírito atua em relação ao corpo físico?
“…os Espíritos são revestidos de um envoltório vaporoso, que lhes forma um verdadeiro corpo fluídico, ao qual damos o nome de “perispírito”, e cujos elementos são tirados do fluido universal ou cósmico, princípio de todas as coisas. Quando o Espírito se une a um corpo, aí vive com seu perispírito, que serve de ligação entre o Espírito, propriamente dito, e a matéria corpórea: é o intermediário das sensações percebidas pelo Espírito. Mas esse perispírito não é confinado no corpo, como numa caixa. Por sua natureza fluídica, ele irradia exteriormente o vapor que dele se desprende. Mas o vapor que se desprende de um corpo malsão é igualmente malsão, acre e nauseabundo, o que infecta o ar dos lugares onde se reúnem muitas pessoas malsãs. Assim como esse vapor é impregnado das qualidades do corpo, o perispírito é impregnado das qualidades, ou seja, do pensamento do Espírito e irradia tais qualidades em torno do corpo”.
Allan Kardec responde a uma objeção muito interessante que era apresentada à teoria espírita, em 1862, com relação ao estado da alma. Curiosamente, nos dias atuais, alguns têm feito objeção semelhante à obra de André Luiz. Vejamos a explicação do Codificador à questão da aparente “materialização do mundo espiritual”:
O Espiritismo materializa a alma e o mundo espiritual?
“Acusam-no de materializar a alma, ao passo que, conforme a religião, a alma é puramente imaterial. Como a maior parte das outras, esta objeção provém de um estudo incompleto e superficial. Jamais o Espiritismo definiu a natureza da alma, que escapa às nossas investigações. Não diz que o perispírito constitui a alma: o vocábulo “perispírito” diz positivamente o contrário, pois especifica um envoltório em torno do Espírito. Que diz a respeito O Livro dos Espíritos? “Há no homem três coisas: a “alma” ou Espírito, princípio inteligente; o “corpo”, envoltório material; o “perispírito”, envoltório fluídico semimaterial, servindo de laço entre o Espírito e o corpo”. E porque, com a morte do corpo, a alma conserva o envoltório fluídico, não está dito que tal envoltório e a alma sejam uma só e a mesma coisa, pois que o corpo não é único com a roupa ou a alma não una com o corpo. A Doutrina Espírita nada tira à imaterialidade da alma: apenas lhe dá dois invólucros, em vez de um, durante a vida corpórea e só um após à morte do corpo, o que é, não uma hipótese, mas um resultado da observação. E é com o auxílio desse envoltório que melhor se compreende a sua individualidade e melhor se explica a sua ação sobre a matéria”.
Como o perispírito transmite o pensamento do Espírito?
“Por sua natureza fluídica, essencialmente móvel e elástica, se assim se pode dizer, como agente direto do Espírito, o perispírito é posto em ação e projeta raios pela vontade do Espírito. Por esses raios ele serve à transmissão do pensamento, porque de certa forma está animado pelo pensamento do Espírito. Sendo o perispírito o laço que une o Espírito ao corpo, é por seu intermédio que o Espírito transmite aos órgãos, não a vida vegetativa, mas os movimentos que exprimem a sua vontade; e, também, por seu intermédio que as sensações do corpo são transmitidas ao Espírito. Destruído o corpo sólido pela morte, o Espírito não age mais e não percebe mais senão por seu corpo fluídico, ou perispírito. Por isso age mais facilmente e percebe melhor, desde que o corpo é um entrave. Tudo isso é ainda resultado da observação”.
Como se dá, perispiritualmente, o encontro entre duas pessoas que são simpáticas? E entre duas pessoas que são antipáticas?
“…Suponhamos agora duas pessoas próximas, cada qual envolvida por sua atmosfera “perispiritual”. Deixem passar o neologismo. Esses dois fluidos põem-se em contato e se penetram. Se forem de natureza simpática, interpenetram-se; se de natureza antipática, repelem-se e os indivíduos sentirão uma espécie de mal-estar, sem se darem conta; se, ao contrário, forem movidos por sentimentos de benevolência, terão um pensamento benevolente, que atrai. É por isso que duas pessoas se compreendem e se advinham sem falar. Um certo “quê” por vezes diz que a pessoa que defrontamos é animada por tal ou qual sentimento. Ora, esse não sei “quê” é a expansão do fluido perispiritual da pessoa em contato conosco, espécie de fio elétrico condutor do pensamento…”.
O Espírito desencarnado pode influenciar o Espírito encarnado projetando sobre ele fluidos, como quem atira sobre alguém um líquido ou um produto qualquer?
“O fluido perispiritual do encarnado é, pois, acionado pelo Espírito. Se, por sua vontade, o Espírito, por assim dizer, dardeja raios sobre outro indivíduo, os raios o penetram. Daí a ação magnética mais ou menospoderosa, conforme a vontade, mais ou menos benfazeja, conforme sejam os raios de natureza melhor ou pior, mais ou menos vivificante. Porque podem, por sua ação, penetrar os órgãos e, em certos casos, restabelecer o estado normal. Sabe-se da importância da influência das qualidades morais do magnetizador.
Aquilo que pode fazer um Espírito encarnado, dardejando seu próprio fluido sobre uma pessoa, pode, igualmente, fazê-lo um desencarnado, desde que tenha o mesmo fluido. Deste modo pode magnetizar e, sendo bom ou mau, sua ação será benéfica ou malfazeja”.
O ambiente bom ou mal, do ponto de vista espiritual, pode influenciar o indivíduo? Como isso se dá?
“…facilmente nos damos conta da natureza das impressões que recebemos, conforme o meio onde nos encontramos. Se uma reunião for composta de pessoas de maus sentimentos, estas enchem o ar ambiente do fluido impregnado de seus pensamentos. Daí para as almas boas, um mal estar moral análogo ao mal estar físico causado pelas exalações mefíticas: “a alma fica asfixiada”. Se, ao contrário, as pessoas tiverem intenções puras, encontramos em sua atmosfera como que um ar vivificante e salubre. Naturalmente o efeito será o mesmo num ambiente cheio de Espíritos, conforme sejam bons ou maus. Isto bem compreendido, chegamos sem dificuldade à ação material dos Espíritos errantes sobre os encarnados. E daí, à explicação da mediunidade”.
Como se dá a influência de um Espírito desencarnado sobre um Espírito encarnado?
“Se um Espírito quiser agir sobre uma pessoa, dela se aproxima, envolve-a com o seu perispírito, como num manto; os fluidos se penetram, os dois pensamentos e as duas vontades se confundem e, então, o Espírito pode servir-se daquele corpo como se fora o seu próprio, fazê-lo agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, etc. Assim são os médiuns. Se o Espírito for bom, sua ação será suave e benéfica e só fará boas coisas; se for mau, fará maldades; se for perverso e mau, ele o constrange, até paralisar a vontade e a razão, que abafa com seus fluidos, como se apaga o fogo sob um lençol d´água. Fá-lo pensar, falar e agir por ele; leva-o contra a vontade a atos extravagantes e o indivíduo se torna um instrumento cego de sua vontade. Tal é a causa da obsessão, da fascinação e da subjugação, que se mostram em diversos graus de intensidade”.
Allan Kardec, até aquele momento, não utilizava a expressão “possessão”, em função de sua conotação “demoníaca”, pelo menos para grande parte da população da época, e porque essa expressão passaria uma ideia, em princípio equivocada, de que o Espírito obsessor seria um “possuidor”, isto é, um “proprietário total”, do Espírito obsidiado. No entanto, Kardec passa a empregar a expressão para caracterizar um grau muito avançado de subjugação, no qual o Espírito assediador tem um elevado controle sobre o corpo do obsidiado, com muitas repercussões orgânicas, caracterizando a chamada “obsessão física”, que, frequentemente, causa uma certa “transfiguração” do possesso. Tal estado tende a gerar diversas sequelas, sobretudo quando tal estado for mantido por demasiado tempo. Vale conferir, portanto, o que é possessão para Allan Kardec. O Codificador explica isso no recorte a seguir:
“…O paroxismo da subjugação é geralmente chamado “possessão”. Deve notar-se que, neste estado, muitas vezes o indivíduo tem consciência do ridículo daquilo que faz, mas é constrangido a fazê-lo, como se um homem mais vigoroso que ele o fizesse, contra a vontade, mover os braços, as pernas, a língua”.
Qual a relação entre obsessão e loucura?
“[a obsessão] …por vezes toma um caráter de permanência, quando o Espírito é mau, porque para ele o indivíduo se torna verdadeira vítima, à qual ele pode dar a aparência de real loucura. Dizemos aparência, porque a loucura propriamente dita sempre resulta de uma alteração dos órgãos cerebrais, ao passo que, neste caso, os órgãos, estão tão intactos quanto os do jovem de quem acabamos de falar. Não há, pois, loucura real, mas aparente, contra a qual os remédios da terapêutica são inoperantes, como o prova a experiência. Ainda mais: eles podem produzir o que não existe. As casas de alienados contam muitos doentes de tal gênero, aos quais o contato com outros alienados só poderá ser muito prejudicial, porque este estado denota sempre uma certa fraqueza moral. Ao lado de todas as variedades de loucura patológica convém, pois, acrescentar a ‘loucura obsessional’, que requer meios especiais. Mas como poderá um médico materialista estabelecer essa diferença ou, mesmo, admiti-la?”.
Os Espíritos obsessores passam a atuar sobre os Espíritos encarnados em função das evocações que os encarnados possam lhes dirigir?
“Credes que os maus Espíritos, que pululam no meio humano, esperam ser chamados, a fim de exercerem sua influência perniciosa? Desde que os Espíritos existiram em todos os tempos, em todos os tempos representaram o mesmo papel, pois isto está em sua natureza. E a prova é o grande número de pessoas obsidiadas, ou possessas, se quiserdes, antes que se cogitasse de Espiritismo e de médiuns. A ação dos Espíritos bons ou maus é, pois, espontânea. A dos maus produz uma porção de perturbações na economia moral e mesmo física e que, por ignorância da verdadeira causa, são atribuídas a causas erradas. Os maus Espíritos são inimigos invisíveis, tanto mais perigosos quanto não se suspeitava da sua ação. Pondo-os a descoberto, o Espiritismo vem revelar uma nova causa de certos males da Humanidade. Conhecida a causa, não se buscará mais combater o mal por meios que, sabemos agora, são inúteis: procurar-se-ão outros meios mais eficazes”.
Como os Espíritos obsessores passaram a ser conhecidos? O que levou ao descobrimento dessa causa de severos tormentos espirituais?
“A mediunidade. Foi pela mediunidade que os inimigos ocultos traíram sua presença. Ela fez para eles o que o microscópio fez para os infinitamente pequenos: revelou todo um mundo”.
O Espiritismo atraiu os maus Espíritos?
“O Espiritismo não atraiu os maus Espíritos: descobriu-os e forneceu os meios de lhes paralisar a ação e, consequentemente, os afastar. Ele não trouxe o mal, pois este sempre existiu. Ao contrário, trouxe o remédio ao mal, mostrando-lhe as causas. Uma vez reconhecida a ação do mundo invisível, ter-se-ia a chave de uma porção de fenômenos incompreendidos e a ciência, enriquecida com esta nova lei, verá novos horizontes abertos à sua frente. Quando lá chegará? Quando não mais professar o materialismo, pois este lhe detém o avanço, com barreiras intransponíveis”.
Kardec levanta uma questão que em meios espiritualistas diversos atormenta muitos companheiros que enfrentam processos obsessivos mais graves. Analisemos:
O Espírito Protetor (que está atuando no tratamento da obsessão) poderia ser menos poderoso do que o Espírito Obsessor?
“…figuremos um médium envolvido e penetrado do fluido perispiritual de um mau Espírito. Para que o do bom possa agir sobre o médium é necessário que penetre esse envoltório e sabe-se que dificilmente a luz penetra um nevoeiro espesso. Conforme o grau da obsessão, o nevoeiro será permanente, tenaz ou intermitente e, consequentemente, mais ou menos fácil de dissipar.
“Não é o bom Espírito que é mais fraco: é o médium que não é bastante forte para livrar-se do manto que sobre si foi lançado, para se desembaraçar dos braços que o apertam com o que – é bom dizer – por vezes se compraz. Compreende-se que, neste caso, o bom Espírito não possa dominar, pois o outro é preferido. Admitamos, agora, o desejo de se desembaraçar desse envoltório fluídico, de que o seu se acha penetrado, como uma vestimenta penetrada de umidade: não bastará o desejo e nem sempre a vontade é suficiente.”
Kardec discute a ação dos Espíritos protetores, a qual, por vezes, a nosso ver, pode parecer muito sutil ou excessivamente lenta e gradual para o tratamento dos casos graves. Não seria mais interessante uma ação mais intensa e rápida? Em outras palavras, perguntaríamos:
Por que os Espíritos superiores não forçam a retirada dos Espíritos obsessores do contato com os Espíritos obsidiados?
“Sem dúvida o podem e, por vezes, o fazem. Mas, permitindo a luta, também deixam o mérito da vitória. Se deixam se debatendo pessoas de mérito a certos respeitos, é para provar sua perseverança e fazer que adquiram “mais força” no bem. É para elas uma espécie de “ginástica moral”.
Kardec comenta sobre a ineficácia de fórmulas exteriores e a necessidade de “fortalecimento espiritual”
“…certas pessoas prefeririam outra receita mais fácil para expulsar os Espíritos: algumas palavras a pronunciar ou sinais a fazer, por exemplo, o que seria mais cômodo do que corrigir os próprios defeitos. Lamentamos, mas não conhecemos processo mais eficaz para “vencer um inimigo do que ser mais forte do que ele”. Quando estamos doentes, temos que nos resignar a tomar remédios, por mais amargos que sejam. Mas, se sente bem e como se fica forte! Temos que nos persuadir de que, para alcançar tal objetivo, não há palavras sacramentais, nem fórmulas, nem talismãs, nem sinais materiais quaisquer. Os maus Espíritos se riem e, às vezes, gostam de indicar alguns, que dizem infalíveis, para melhor conquistar aconfiança daqueles de quem abusam, porque, então, estes, confiantes na virtude do processo, entregam-se sem medo”.
Sobre a necessidade de autodomínio, vontade e prece para superar o processo obsessivo
“Antes de esperar dominar o mau Espírito, é preciso dominar-se a si mesmo. De todos os meios para adquirir a força de o conseguir, o mais eficaz é a vontade, secundada pela prece, entendido a prece de coração e não aquelas nas quais a boca participa mais que o pensamento. É necessário pedir a seu anjo de guarda e aos bons Espíritos que nos assistam na luta. Mas não basta lhes pedir que expulsem o Espírito: é necessário lembrar-se da máxima: “Ajuda-te, e o céu te ajudará”, e lhes pedir, sobretudo, a força que nos falta para vencer nossas más inclinações, que para nós são piores que os maus Espíritos, pois são essas inclinações que os atraem, como a podridão atrai as aves de rapina. Orando também pelo Espírito obsessor, pagamos com o bem pelo mal, mostramo-nos melhores que ele, o que já é uma superioridade. Com a perseverança acaba-se, na maioria dos casos, por conduzi-lo a melhores sentimentos, transformando o obsessor em amigo reconhecido”.
Kardec esclarece que a prece, a transformação moral e a paciência para tolerar tais presenças espirituais (espíritos obsessores) são fundamentais para resistir à influência negativa e até mesmo eliminá-la definitivamente. Também frisa, uma vez mais, a ineficácia de fórmulas exteriores. Vejamos:
“Em resumo, a prece fervorosa e os esforços sérios por se melhorar são os únicos meios de afastar os maus Espíritos, que reconhecem como senhores aqueles que praticam o bem, ao passo que as fórmulas lhes provocam o riso. A cólera e a impaciência os excitam. É preciso cansá-los, mostrando-se mais pacientes”.
A maior complexidade do tratamento desobsessivo em casos mais graves de obsessão, tais como a subjugação
Requer auxílio magnético de outras pessoas, isto é, de passistas e/ou magnetizadores. Ele, igualmente, destaca a necessidade da chamada “autoridade moral”, ou seja, de um nível de espiritualização razoável por parte do agente responsável pela terapia desobsessiva. Analisemos o texto kardequiano:
“…a subjugação chega a ponto de paralisar a vontade do obsidiado e que deste não se pode esperar nenhum concurso valioso. É sobretudo então que a intervenção de um terceiro se torna necessária, quer pela prece quer pela ação magnética. Mas o poder dessa intervenção também depende do ascendente moral que o interventor possa ter sobre os Espíritos. Porque se este não valer mais, sua ação será estéril”.
O mecanismo de ação fluídica da ação magnética (que poderíamos identificar no “Passe Espírita”) no auxílio ao obsidiado
Vale destacar que Kardec já frisava o efeito no corpo físico da ação magnética. Segue a explicação:
“…a ação magnética terá por efeito penetrar o fluido do obsidiado por um fluido melhor e desprender o fluido do Espírito mau. Ao operar, deve o magnetizador ter o duplo objetivo de opor uma força moral a outra força moral, e produzir sobre o paciente uma espécie de reação química, para usar uma comparação material, expulsando um fluido por outro fluido. Assim, não só opera um desprendimento salutar, mas dá força aos órgãosenfraquecidos por uma longa e, por vezes, vigorosa dominação. Aliás, compreende-se que o poder da ação fluídica não só está na razão da força de vontade, mas, sobretudo da qualidade do fluido introduzido e, conforme dissemos, tal qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador.
Kardec também destaca a diferença de um processo magnético ordinário, ou seja, uma troca fluídica espontânea que ocorre no dia-a-dia, para uma ação magnética espírita (Passe espírita versus magnetismo espontâneo)
“…um magnetizador comum, que agisse maquinalmente para magnetizar pura e simplesmente, produziria pouco ou nenhum efeito. É de toda necessidade um magnetizador “espírita”, que age com conhecimento de causa, com a intenção de produzir, não o sonambulismo ou a cura orgânica, mas os efeitos que acabamos de descrever”.
Kardec também destaca a diferença no tratamento do subjugado para o tratamento do obsidiado simples
Uma vez que o subjugado não age conscientemente para sair da situação de assédio espiritual, enquanto o obsidiado simples age juntamente com o magnetizador espírita para conseguir a cura. Portanto, trata-se de duas vontades somadas e não apenas uma. Leiamos:
“…é evidente que uma ação magnética dirigida neste sentido não deixa de ser útil nos casos de obsessão ordinária, porque então se o magnetizador for secundado pela vontade do obsidiado, o Espírito será combatido por dois adversários, em vez de por um só”.
Sobre a auto-obsessão
“Releva dizer ainda que muitas vezes se responsabilizam os Espíritos estranhos por maldades de que não são responsáveis. Certos estados mórbidos e certas aberrações, que são atribuídas a uma causa oculta, são, por vezes, devidas exclusivamente ao Espírito do indivíduo. As contrariedades frequentemente concentradas em si próprio, os sofrimentos amorosos, principalmente, têm levado ao cometimento de muitos atos excêntricos, que erradamente são levados à conta de obsessão. Muitas vezes a criatura é seu próprio obsessor”.
Kardec também esclarece que “pessoas de mérito” também sofrem obsessão
“…certas obsessões tenazes, sobretudo de pessoas de mérito, por vezes fazem parte das provas a que se acham submetidas. Por vezes acontece mesmo que a obsessão, quando simples, seja uma tarefa imposta ao obsidiado, que deve trabalhar para melhorar o obsessor, como um pai a um filho vicioso”.
Considerando a amplitude de assuntos e a profundidade da abordagem, destacamos a necessidade da leitura, na íntegra, dos artigos de Allan Kardec sobre os chamados “possessos de Morzine”, abrangendo não somente os dois textos presentemente analisados, que são as publicações de 1862, como aqueles de 1863.
Referências
Kardec, A. A Obsessão – Origem, sintomas e curas [Tradução de Wallace Leal V. Rodrigues]. Casa Editora “O Clarim”. Sexta edição. 2000.
Kardec, A. Revista Espírita (Quinto Ano – 1862) [Tradução de Salvador Gentile]. Instituto de Difusão Espírita (IDE). Primeira edição. 1993.
Kardec. A. Revista Espírita (Sexto Ano – 1863) [Tradução de Salvador Gentile]. Instituto de Difusão Espírita (IDE). Segunda edição. 2002.
O consolador – Ano 17 – N 830, 831 e 832 – Especial