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Mau aprendiz

Autor: Irmão X (espírito)

Bonifácio Pessanha nunca se furtou ao vício das perguntas ociosas. Onde estivesse, mobilizava interrogações despropositadas e inoportunas. Não sabia dar um passo sem escorar-se nos outros e semelhante característico desfigurara-lhe a personalidade.

Quando atravessou os portais do Espiritismo Cristão, sentiu-se muito a gosto. Em seu parecer de então em diante poderia indagar quanto quisesse. Vários médiuns, nos mais diversos grupos, estariam à disposição dele, tanto quanto as entidades invisíveis que, segundo acreditava, deveriam vaguear, em disponibilidade franca, sem métodos regulares de vida e sem programa de obrigações construtivas.

Os companheiros do núcleo que passou a frequentar notaram-lhe, de imediato, a extravagância; todavia, calavam-se, caridosos e tolerantes.

Bonifácio era novo na Doutrina. Com o tempo recolheria experiências, retificaria atitudes incertas. Contudo, tantas interrogações o dirigia ao plano invisível através de grandes laudas de papel, que Juliano, o orientador devotado da esfera espiritual, lhe escreveu, certa feita, de modo direto:

– “Pessanha, meu irmão, não olvides que o mundo é também uma escola ativa. É preciso cautela para não perdermos as lições. Cada dia é uma página que preencherás com as próprias mãos, no aprendizado imprescindível. Os ensinamentos da véspera, em boa lógica, devem ser assimilados. O aluno que não se vale da experiência vivida, não pode aguardar o êxito desejado. Penetraste, em renascendo, a grande universidade terrestre e vives, por alguns anos, no internato do corpo físico. E onde está, meu amigo, o instituto de ensino, em que a cátedra deve descer satisfazendo aos caprichos da carteira? Que a existência carnal é um curso educativo, de proporções vastas, cheio de probabilidades milagrosas para o discípulo de boa-vontade, prova-o a morte, que nos convida a todos para exame e seleção. Crês, porventura, que o aprendiz obterá o atestado de mérito, exclusivamente pelo hábito de perguntar? Desengana-te, meu amigo! Vai ao serviço diário, rogando a luz divina para o entendimento. Mãos e pés não usados paralisam-se no caminho. Olhos e ouvidos que não iluminam nem esclarecem a inteligência, apagam-se, mais tarde, à maneira de candeia inútil, ou adormecem, na incapacidade, quais ruínas de uma casa em abandono. Não temas sofrimentos ou decepções. Aprende e age sempre. A dor e o obstáculo guardam para nós a função de legítimos instrutores. É um erro interpretar dificuldades à conta de punições ou pesadelos, quando nelas devemos encontrar recursos de aprimoramento e provas abençoadas. A lei é de evolução comum e de perfeição final para todos, ainda mesmo considerando a necessidade de expiação para o crime e corrigenda para o mal. Como habilitar-se o aluno sem o livro de lições? Que seria do Espírito encarnado sem a oportunidade de experimentar, atuar, lapidar-se e conhecer? É razoável que o estudante indague das finalidades do educandário a que pertence, dos regulamentos, do horário e das condições que lhe dizem respeito, mas, subtrair-se ao processo de burilamento e preparação através de indagações sistemáticas, é perigoso para si mesmo, porque o curso tem um fim, de renovar-se em outros setores da vida, e as demonstrações de aproveitamento serão exigidas a cada aluno em particular. Desse modo, não desprezes caminhar, desassombradamente, confiando em Jesus e em ti mesmo!”

Bonifácio, no entanto, parecia plenamente desentendido.

Invadia o círculo dos irmãos de ideal, com larga ofensiva de indagações, já que os benfeitores desencarnados não se mostravam dispostos à quebra intempestiva da lei.

Inquiria sempre, a propósito de tudo e de todos, figurando-se verdadeiro maníaco, não obstante afirmar-se homem de fé.

Em todas as reuniões trazia longa relação de assuntos para verrumar a paciência dos companheiros.

– Senhor Macedo – dirigia-se ao diretor dos trabalhos doutrinários – qual o seu modo de ver, relativamente à minha profissão? Não considera que estou prejudicado? Poderia estudar mais, aplicar-me à Boa Nova, com outro ânimo, se minhas atividades fossem diferentes. Como entende o meu caso?

O interpelado, esboçando embora um gesto de estranheza, respondi, calmo:

– De mim mesmo, Pessanha, estou convencido de que a criatura pode atender ao Senhor, em qualquer parte. A boa-vontade, quando aliada à paciência, faz verdadeiros milagres no aproveitamento dos minutos.

Antes, todavia, de ponderar o valioso conteúdo da observação, transferia Bonifácio o assunto a um terceiro:

– Mas você, Tinoco – dirigia-se, inquieto, a outro companheiro -, não considera o meu tempo muito escasso? Torna-se muito difícil atender à Doutrina em minhas condições. Meus chefes de serviço são extremamente rigorosos. Imagine que não disponho de ocasião para compulsar um livro. Que conclui você de meus obstáculos?

Tinoco sorria e observava:

– Pessanha, nada posso acrescentar ao parecer do nosso amigo. Não devemos forçar as situações entendendo a necessidade da experiência pessoal. Estamos neste mundo para aprender algo de útil e nada conheceremos realmente, sem agir por nós mesmos.

Pretendia Bonifácio estender as indagações; no entanto, os trabalhos espirituais foram declarados abertos e era necessário manter atenção e silêncio.

Terminada a reunião, prosseguia ele, firme, interrogando sempre, quanto a todos os problemas corriqueiros do dia e se alguém lhe recordava os conselhos do orientador espiritual, costumava responder que precisava perguntar por prudência, desse modo acobertando a preguiça mental com expressões de virtude.

Na sessão seguinte, voltava desatento, dirigindo-se ao diretor da casa:

– Senhor Macedo, que me diz do tratamento de minha filha Zina? Acho-me em dúvida se prossigo com a homeopatia ou se me decido pela alopatia. Que pensa o senhor de minha situação?

– Ora, Pessanha – esclarecia o confrade, pacientemente -, isto é questão de foro íntimo, de preferência individual. No capítulo da assistência à saúde, cada um tem o seu campo de confiança.

Bonifácio, irrequieto, voltava-se para D. Eponina, médium do grupo, inquirido:

– E a senhora? Que me diz? Não concorda em que eu deva mudar a medicação?

A interpelada, num gesto fraternal, atendia, solícita:

– Meu amigo, creio que nos constitui uma obrigação perseverar até ao fim, no que respeita a qualquer serviço médico. Entretanto, sou constrangida a reconhecer que todos nós solucionamos os nossos problemas, de modo particular.

Bonifácio, contudo, parecendo impermeável, em razão do vício de apoiar-se nos outros, não assimilava as lições de toda hora, ao contacto de companheiros encarnados e desencarnados. E não curou a mente enfermiça. Até que a morte se lhe abeirou do leito de aflitiva expectação.

No círculo das últimas provas, agravou-se-lhe a mania. Enredava os companheiros que comparecessem à visitação afetuosa, em extensos inquéritos, cheios de enigmas insolúveis. Quase todos os amigos lhe recomendavam o uso da oração ou lhe pediam procurasse o socorro de Juliano, o abnegado mentor espiritual.

A mente do enfermo vagava, apressada, num torvelinho de indagações, mas a morte trabalhava, serena, arrebatando-o, devagarzinho, da esfera material.

Em certo instante, compreendeu Pessanha que não mais se achava no aposento corpóreo.

Todavia, não conseguiu discernir a paisagem circundante.

Tinha agora os olhos enevoados, os pés inertes, as mãos imóveis.

Perdera, sobretudo, a noção de equilíbrio.

Acabrunhado, começou a orar, com uma espontaneidade e firmeza que antes conhecera. Rogava a Juliano lhe esclarecesse o coração, lhe curasse as dores e lhe restituísse os movimentos. Quando terminou a prece fervorosa, a voz do prestimoso amigo se fez ouvir, nas sombras que o rodeavam, murmurando com lamentosa entonação:

– Ah! Pessanha, Pessanha! Agora é muito difícil mobilizar-te os pés, as mãos e a cabeça que teimaste em não usar. Fugiste à ginástica da luta humana que adestra a alma para as esferas mais altas. Não peças, por enquanto, as emoções da Espiritualidade Superior: roga o regresso ao livro do mundo, retornando às lições benditas da experiência necessária. Quanto ao mais, conserva a paciência e a coragem, nas aflições de hoje, porque, em verdade, o homem que não percorre os roteiros justos, no aprendizado da vida, esbarra, fatalmente, nos labirintos da morte.

Nota

O conto acima, psicografado por Francisco Cândido Xavier, faz parte do livro Contos Desta e Doutra Vida.

Obra completa: https://www.febeditora.com.br/pontos-e-contos

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