Autor: Dr. Nubor Orlando Facure
As novas áreas
O estudo de crânios fósseis está acumulando revelações surpreendentes sobre o cérebro de animais que viveram há milhões de anos. Essa nova especialidade, a neuropaleontologia, estuda pequenos sinais marcados no crânio desses animais. A expansão do cérebro com o uso predominante da mão direita, o aprimoramento da visão em detrimento do olfato, a capacidade de produzir ferramentas e o desenvolvimento das áreas da linguagem refletem no crânio mudanças em determinadas áreas que podemos observar mais tarde, milhares de anos depois. A partir dos anos setenta do século passado, os cientistas perceberam que poderiam estudar o cérebro visualizando seus mecanismos biológicos. Fenômenos tão complexos como a memória, a atenção e a linguagem são analisados, agora, a partir dos neurônios, suas sinapses, os neurotransmissores, as redes neurais e os sistemas modulares comprometidos com essas funções.
Foi criada assim a neurociência cognitiva, cujo propósito é revelar quais fenômenos biológicos acontecidos no cérebro estão relacionados a determinados fenômenos psicológicos.
Por outro lado, analisando comportamentos que ocorrem em animais de diversos níveis evolutivos, os estudiosos criaram a psicologia evolucionista e, quantificando a participação do patrimônio genético ligado a esses comportamentos, desenvolveu-se a genética comportamental.
O progresso nas neurociências está revelando funções cerebrais jamais suspeitadas. Até mesmo a espiritualidade, que se revela em matizes variados em cada um de nós, está sendo estudada cientificamente.
A neuroteologia vem identificando a atividade cerebral que se relaciona a esse tipo de sentimento.
Como estudar o cérebro
O cérebro trabalha mobilizando múltiplas funções, integrando-as e organizando-as dentro de um sistema hierarquizado. Um fenômeno simples como sentir o efeito da picada de uma agulha tem um local anatômico preciso numa região cerebral ligada à sensibilidade dolorosa, mas sua repercussão psicológica mobiliza diversas áreas. Por outro lado, funções complexas como a linguagem, o cálculo, a escrita, a memória e a tomada de decisões exigem, desde seu início, a integração de várias regiões anatômicas, e cada um desses procedimentos pode recrutar caminhos diversos para a sua execução.
A interpretação de cada um dos fenômenos cerebrais que conhecemos ainda exige o raciocínio reducionista usado pelo método científico. Numa determinada área cerebral que motiva nosso interesse, podemos estudar as vias de entrada e saída dos seus feixes de fibras nervosas e ampliar com o microscópio o estudo dos seus neurônios. O neurônio, por sua vez, nos revelará suas membranas, seus receptores e sua química que dispara a comunicação com seus milhares de vizinhos. A composição química dos neurotransmissores já está identificada em dezenas de substâncias que os compõem. Já temos métodos bioquímicos para identificar sua produção e distribuição em regiões particulares do cérebro. Conhecemos, por exemplo, por onde circula a serotonina, a noradrenalina e a dopamina em diversas regiões cerebrais.
No estudo das funções complexas, a que já nos referimos, podemos seguir, também, o caminho inverso. Agregamos funções de diversas áreas na tentativa de compreender toda a complexidade que envolve o fenômeno.
A memória e a linguagem são ótimos exemplos para exigir nossa reflexão sobre sua apresentação multiforme. O que nos faz lembrar e esquecer? Por que a criança expande tão rapidamente o seu vocabulário e o adulto tem enorme dificuldade em aprender uma segunda língua? Como conseguimos nos lembrar de um rosto familiar no meio de uma multidão?
As diversas áreas das neurociências estão, reconhecidamente, produzindo um avanço extraordinário na interpretação do cérebro e da mente, entretanto, ainda estão longe da fronteira final. A Física já se consolidou com Teorias que funcionam muito bem no seu papel de explicar o mundo físico. A relação de identidade entre energia e matéria unificou princípios fundamentais entre essas Teorias. A Biologia já construiu seus fundamentos básicos ao descobrir a célula, a evolução das espécies e o DNA, mas a psicologia, pretendendo estudar a mente, só produziu até agora teorias provisórias e nenhuma com certificado de validade. Temos de reconhecer que ainda estamos longe de contar com uma Teoria unificadora para explicar mente. Quando escrevi sobre o “corpo mental”, tive a intenção de trazer para a neurologia estudo clínico que pode introduzir um novo paradigma no conhecimento da mente. Sem qualquer presunção estou chamando este conhecimento de metaneurologia.
As funções cerebrais
Vamos considerar aquelas funções cerebrais cujos mecanismos já estão razoavelmente conhecidos:
A visão de um objeto
A luz que reflete nesse objeto se projeta aos nossos olhos sinalizando os neurônios na retina. A partir daí o estímulo nervoso percorre vias anatômicas que levam este estímulo até ao córtex visual. Distribuídos em camadas concêntricas como uma casca de cebola, os neurônios codificam em áreas próximas, cada uma das particularidades do objeto a ser visualizado. Assim é que temos um local específico para ver a forma do objeto, outro local para ver sua cor e outro ainda para perceber seus movimentos. Esse objeto pode ser, por exemplo, a mão de alguém nos chamando. Depois disso temos pela frente um grande enigma: como o cérebro junta essas informações decompostas – a forma, a cor e o movimento, em um único objeto acompanhado do seu significado, ou seja, o reconhecimento de um objeto que nos é familiar ou não.
Vamos falar da memória
Todos sabem que temos uma memória de curto prazo, que nos serve para as resoluções do cotidiano. Qual meu compromisso hoje? O que acabo de ver na televisão? Quando minha mulher perguntou que horas eu disse que voltaria para casa? Temos também uma memória de longo prazo. Quem são meus pais, onde nasci e que remédio eu uso para dor de cabeça. Essa memória pode ser resgatada parcialmente a partir de certo esforço. Podemos nos lembrar de cenas que vivenciamos na última viagem de férias. Outras vezes essa memória é traiçoeira e nos deixa na mão não nos permitindo lembrar o nome de um amigo. Estudos sistemáticos sobre o resgate de memória têm confirmado que todo relato de fatos memorizados está impregnado de imaginação. Podemos confirmar, também, que a gente não se lembra do que aconteceu, na verdade, lembramos do que pensamos ter acontecido. Os cientistas da mente estão usando a expressão “facção” para nomear essa mistura de fatos com ficção. E nossa memória é generosa em criar essa mistura explosiva.
A linguagem falada
Em 1867, Paul Broca confirmou que o giro frontal inferior do hemisfério esquerdo está relacionado com a emissão da linguagem falada e, alguns anos mais tarde o neurologista alemão Carl Wernicke (1848-1905) relacionou a compreensão da linguagem a uma área situada um pouco mais atrás, no lobo parietal esquerdo.
A partir daí, com acréscimos de eminentes neurologistas, como Pierre Marie, ficou delimitado um “quadrilátero”, com estruturas corticais e subcorticais relacionadas com nossa capacidade de revelar nosso pensamento pela linguagem falada e sermos compreendidos por quem nos ouve.
Depois dos trabalhos de Noam Chomsky, sabemos que a criança nasce com um módulo gramatical que lhe facilita aprender qualquer uma das línguas humanas. O estímulo do ambiente e a cultura de cada povo vão acrescentando o vocabulário que sedimenta na criança a língua materna.
A escrita
Atividades motoras simples, como estender a perna, podem ser realizadas com o reflexo patelar, envolvendo teoricamente dois neurônios: um para estimular o reflexo e outro para elaborar a resposta. Apertar a mão já exige certa dose de intencionalidade, e escrever um texto implica uma capacidade especial para se criar uma ideia, produzi-la em um texto com palavra e utilizar um instrumento como a caneta ou o computador para transcrevê-lo.
O diálogo humano
Manter uma conversação com um amigo que acaba de chegar vai nos obrigar a mobilizar uma série de ideias e transmiti-las em palavras. Esse amigo pode nos perguntar: Que carro você tem agora? Eu, quase que imediatamente, respondo: Um Honda Civic verde. Daí a pouco nós dois escutamos a voz de minha esposa fazendo a correção: – O Honda verde era o carro do ano passado, agora temos um Honda preto. Fui traído pela distração e pela falha da memória.
Os sonhos
A neurologia já nos esclareceu os ritmos em que transitamos durante o sono e alguns mecanismos químicos ligados a ele. Já foram identificados centros no hipotálamo que estimulam o lobo frontal nos mantendo acordados, e núcleos de neurônios que nos induzem ao sono. Sabemos, também, que durante alguns períodos de sono, os olhos se movimentam, revelando que neste instante estamos sonhando. Dormir e sonhar são indispensáveis à nossa própria sobrevivência. Conseguimos ficar mais tempo sem comer do que sem dormir. O sonhar está intimamente relacionado com a consolidação de memórias. A nossa véspera não será lembrada se não dormirmos e produzirmos sonhos, alguns deles ligados aos últimos momentos da festa que nos animava.
O estudo da mente
Grande parte da atividade cerebral é fácil de ser reconhecida e definida. Por exemplo, reflexos são respostas que o sistema nervoso produz reagindo a estímulos. Comportamentos podem ser reduzidos a um conjunto de atitudes. Emoção é um estado de humor. Quando vamos definir mente, não haverá termos competentes nem acordo entre os especialistas. Classicamente a mente é vista como um conjunto de funções complexas que inclui memória, percepção, linguagem, consciência e emoção. De qualquer maneira, a mente é produto de atividade complexa do cérebro.
O “corpo mental”
A neurologia entende que para todos os fenômenos psicológicos existe um substrato biológico que se revela na atividade cerebral.
Neurônios que se despolarizam, circuitos que se organizam em redes, áreas cerebrais que se especializam em movimentos e sensações, e regiões que se agrupam compondo funções mais ou menos complexas, construindo a memória e compondo a linguagem. A mente seria o resultado imanente dessa atividade complexa do cérebro. Sem o cérebro não existiria a mente.
Minha proposta sobre o “corpo mental” se baseia em evidências clínicas. Exemplos neurológicos sugerem a existência de um corpo que compõe, constrói e expressa os fenômenos da mente. Com a metaneurologia pretendemos sedimentar a ideia de que podemos investigar e acrescentar, paulatinamente, conhecimentos sobre a anatomia e a fisiologia desse “corpo mental”.
A neurologia conseguiu fragmentar diversas funções cerebrais. Sabemos, por exemplo, onde o cérebro decodifica as características físicas de um objeto, mas não sabemos como o cérebro faz a integração dessas informações. Como o cérebro integra nossas memórias para nos fornecer uma identidade única e permanente?
O “corpo mental” pode resolver todas essas questões. A investigação do que ocorre em quadros clínicos como na histeria, no transe sonambúlico, na narcolepsia, no membro fantasma, nos permite acreditar na existência de uma fisiologia específica desse “corpo mental”. Assim, podemos considerar que ele não se aprisiona nos limites do nosso corpo físico; não se restringe aos circuitos e vias da anatomia cerebral e circula por ambientes que transcendem a realidade física que conhecemos.
Funções do “corpo mental”:
A visão
O olho humano registra o impulso luminoso que nos permite identificar os objetos à nossa volta. O “corpo mental” vê sem a necessidade de luz. Ele se apodera das propriedades dos objetos. Vamos considerar que estamos diante de uma moeda. Com nossos olhos vamos saber do seu tamanho, cor, forma, talvez a sua procedência e o seu valor. Vamos dizer que se trata de uma moeda do tempo do Império. Com o “corpo mental”, independente da luminosidade que clareia a moeda, vamos identificar, além das características físicas relatadas, que podemos registrar todos os acontecimentos relacionados com esta moeda. O ambiente da sua fabricação e as mãos por onde ela foi negociada inúmeras vezes. O “corpo mental” registra os aspectos físicos e os eventos psicológicos a ela relacionados. O olho humano não é o instrumento de visão do “corpo mental”. Como o que ele detecta é a vibração dos corpos, os objetos são percebidos em qualquer parte do “corpo mental”, como, por exemplo, as pontas dos dedos que tocam esses objetos.
A linguagem falada
As capacidades para falar, ler e escrever estão intimamente inter-relacionadas. Para cada uma dessas funções, o cérebro usa um conjunto de módulos que se ligam por vias de associação. A criança aprende a falar ouvindo as pessoas à sua volta, aumentando progressivamente o seu vocabulário. Para ler e escrever ela terá que absorver o significado dos símbolos que representam as coisas e as ideias traduzidas em palavras. Existem quadros clínicos em pacientes neurológicos que ilustram didaticamente o comportamento dessas funções. Temos lesões capazes de produzir incapacidade para reconhecer as palavras – agnosia visual; para escrever – agrafia; para ler – dislexia, e para falar – afasia. No corpo mental essas capacidades estão ligadas à percepção do conteúdo mental das ideias, independente da forma como elas são expressas. Vamos agora considerar que estamos diante de um livro. Precisamos ler o livro todo para nos inteirarmos do seu conteúdo. Com o “corpo mental” nos apoderamos das ideias expressas no livro, dos eventos com ele relacionados e com seu autor.
A memória
O indivíduo comum é capaz de memorizar uma sequência de sete números, retém alguns telefones familiares, sabe o endereço de alguns amigos, lembra-se de seus nomes e é capaz de relatar o que fez nos últimos dias. Quando faz relatos de eventos antigos, como festas ou encontros com amigos, relata-os de maneira mais ou menos incompleta, ressaltando que alguns desses encontros ficaram mais marcados e são tidos como inesquecíveis. Cada um desses relatos, quando são confrontados com o testemunho de terceiros, tem sempre o colorido de outras versões mais ou menos enfáticas. Descrever uma festa de formatura tem tantas versões quanto o número de formandos. A memória de um computador nos permite abrir um texto já escrito e revisá-lo para corrigir ou acrescentar detalhes. A memória do “corpo mental” nos permite abrir o cenário do ambiente vivido durante os acontecimentos que presenciamos. Ele nos permite reviver o passado como se o trouxéssemos para o presente. Vivenciando um fato por uma segunda vez, podemos acrescentar elementos que não nos tínhamos dado conta na primeira ocasião em que ocorreu. Um detetive poderia rever um assalto e dessa vez anotar a placa do carro que vira sair fugindo.
Os sonhos
O “corpo mental” não é prisioneiro do corpo físico e, durante o sono, ele tem possibilidade de se libertar mais ou menos parcialmente. A emancipação do “corpo mental” facilitada pelo sono põe o “corpo mental” diante de outras realidades que ele apreende conforme seu nível de conhecimento. Uma pessoa inexperiente colocada diante de um ambiente desconhecido perceberá muito pouco do que está presenciando. Sem experiência ficaremos totalmente perdidos na UTI de um hospital, no meio de uma mata fechada, no comando de um avião ou entre a multidão em um país estranho. E será assim que essas vivências terão de ser relatadas após passarem pelo filtro do cérebro físico. É esse o conteúdo extraordinário dos sonhos, uma percepção espiritual filtrada pelo cérebro físico. Vez por outra, em situações especiais, conseguiremos registrar uma cópia fiel de acontecimentos que vivenciamos sonhando, fixando-a com completa lucidez.
A mente
Temos como hipótese que a mente é uma entidade que se corporifica numa estrutura organizada que denominamos “corpo mental”. Esse corpo tem existência extracerebral e propriedades que se diferenciam das funções cerebrais conhecidas. A semiologia neurológica, analisando determinados quadros clínicos, pode revelar funções que confirmam claramente a existência do “corpo mental”. Podemos perceber que a fisiologia do “corpo mental” nos dá informações confiáveis que o situam para além do cérebro físico. Explorando suas memórias podemos reviver claramente o passado. Confirmamos que sua sensibilidade é afetada pela vibração das substâncias. Sua forma de percepção nos possibilita contato com o conteúdo e significado dos objetos, mais do que com a forma, e a linguagem se processa pela transmissão de ideias. O “corpo mental” inaugura um novo paradigma para a neurociência clínica.
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