Autora: Eugênia Pickina
“Os contos de fada são assim. Uma manhã, a gente acorda e diz: ‘era só um conto de fadas…’ E a gente sorri de si mesmo. Mas, no fundo, não estamos sorrindo. Sabemos muito bem que os contos de fada são a única verdade da vida” – Saint-Exupéry (O amor do Pequeno Príncipe – Cartas a uma desconhecida).
Quando eu tinha pouco mais de três anos, fui com meus pais, agricultores, a um velório de um menino de um ano, filho de um funcionário, cuja família residia na fazenda. Assustada, atravessei dias e alguns meses a partilhar com eles sobre os (obscuros) motivos daquela morte precoce. Eu dizia de forma repetitiva, porém demasiadamente melancólica: “o menininho morreu, o menininho morreu…”
Já aos seis anos participei da doença súbita e dolorosa, seguida de morte prematura, de um outro menino, chamado Jacinto, que na época contava quatro anos. Ele era o caçula de uma afável família de um funcionário da fazenda do meu pai, cujos filhos brincavam conosco quando passávamos férias naquele lugar povoado de natureza, histórias misteriosas e pessoas acolhedoras.
Lembro-me da mãe e do pai dele em pranto inconsolável, feridos no coração por similar espada ligada à biografia da Mãe de Jesus, quando crucificaram o Mestre inocente. Não seria esse o legado de fundo de cada criança que é conduzida pela “irmã morte” no seu retorno ao mundo espiritual?
Claro que a morte de uma criança provoca comoção, gera lágrimas que salgam dias que parecem arrastados e intermináveis, pois ela, a criança em si mesma, simboliza inocência, além de irradiar a pura alegria que fecunda o presente e implica, potencialmente, as boas e bonitas promessas do futuro.
Ademais, uma criança é algo também da própria carne dos pais, sem negligenciar todavia as propriedades que lhe pertencem como (seu) patrimônio individual e que não estão, em consequência, sujeitas ao arbítrio da hereditariedade: inteligência, conhecimentos e qualidades morais.
Por isso, em nome do desafio da morte de uma criança, a necessidade da compreensão dirigida àquele ser humano, mãe e/ou pai, que, momentaneamente devastado, exemplifica o acervo de (nossas) fraquezas quando é convocado a restituir aos braços da Misericórdia o filho – ou a filha – que nunca nos pertence.
A duração de nossa existência aqui tem critérios e objetivos que nos escapam. E estamos sempre a experimentar um estágio corpóreo para “mais um dia de colégio” e isso continuamente destinado para nosso aprendizado e crescimento.
Logo, respeitadas as idiossincrasias e necessidades de cada individualidade, a linha de tempo que define o existir de uma pessoa pode, por exemplo, ajustar-se às vezes a um indispensável complemento de algo que fora interrompido no passado e que exige, para a evolução desse Ser, uma existência imediata correspondente a apenas alguns breves instantes, dias, ou poucos anos. E, ainda, para que esse “algo” alcance seu devido cumprimento.
E se, de um lado, a morte prematura reivindica até mesmo o entendimento de quem está convicto do princípio da pluralidade das existências, de outro, sentir a dor da separação é algo perfeitamente humano, pois as partidas provocam o sentimento que dói ardido segundo a nostalgia da falta. Quem ama sabe o que significa o que conta o poeta gaúcho Quintana: Via você no ontem, no hoje, no amanhã… Mas não via você no momento. Que saudade…
Além do mais, a morte prematura de um filho/a é descrita (1), e por pessoas em situações e geografia diversas, como uma espécie de “extração violenta de parte do ser”. E, como os filhos são insubstituíveis, aparecem, interligados ao ciclo do luto, tristeza, culpa, raiva, ansiedade, medo, sempre exigentes de atenção amorosa e, muitas vezes, apoio especializado (2).
E se a morte de um filho/a é uma ferida para a vida inteira, a meu ver se faz muito adequado o que um dia um amigo professor me afirmou, e até de uma maneira ríspida e despejada após um comentário nostálgico sobre o aniversário do próprio filho, falecido de um infarto no miocárdio dias depois de completar vinte anos: “no todo el tiempo puede curar”…
Mas, e independente dessa ferida incurável (3), é importante que os pais consigam, após o decurso do período mais severo do luto, retomar suas rotinas e ação no mundo da vida.
Por fim, os amigos, parentes, colegas podem cooperar para que sejam consolados, ajudados a transcender o tempo mais devastador do luto, e para incorporar, gradativamente e segundo o modo de ser de cada um, a lição que nos obriga a “deixar ir” o filho, a filha, a criatura que amamos, abastecendo-nos, para realizar essa complexa tarefa do desapego, na Luz do Redentor, no apoio solidário do Invisível, porém sem esquecer que a morte não mata a vida, pois ela continua.
Notas
(1) Os filhos são insubstituíveis. Para o pai e a mãe a morte de uma filha, um filho, é sofrida com a mesma intensidade e a independer da idade: recém-nascido, criança, adolescente, adulto, idoso… Contudo, como as crianças representam “os mais inocentes entre os inocentes”, o luto, para os pais, nesse caso, pode se tornar muito mais complexo. Evitemos, pois, aqueles comentários tolos, inadequados ou até mesmo cruéis. Na falta de boa palavra, melhor o silêncio e uma boa vibração. Quando meus pais perderam o filho, muitos, em sua indiscrição, mais feriam do que ajudavam quando diziam “vocês têm outros filhos”, entre outras inadequações. Ou pais que experimentam a perda de um bebê e as pessoas dizem: “quando vocês tiverem outro bebê será mais fácil”. Nada disso, por favor. Prece e jejum de (más) palavras são ótima ajuda sempre!
(2) A morte de um ente querido pode exigir ou não ajuda especializada, pois isso é sempre muito subjetivo/particular. No geral a elaboração do luto se dá segundo um processo lento e doloroso, e isso envolve, é claro, todos os membros da família – os pais e os irmãos, se houver, que também são duramente afetados, especialmente se também ainda crianças.
(3) Essa ferida faz alusão à ferida de Amfortas. E respeitados os limites da analogia, em sua versão de Parsifal, Wagner apresenta o rei Amfortas, filho de Titurel, e sua ferida incurável, à espera do (bálsamo) do Redentor. Desse modo, a meu ver, a única maneira dos pais viverem dignamente, apesar da ferida incurável da falta do filho/a, é se abastecerem na fonte amorosa da Clara Luz, valendo-se do amparo de Jesus, sublime Terapeuta, e da Misericórdia Divina – ou apoiado na sua forma peculiar de conexão com Deus, seja ela qual for, pois o Amor de Deus se derrama em todos os lugares comprometidos com o Bem.
E, por isso, faz ressonância, para quem vive a experiência da morte prematura de alguém amado, o encadeamento, no próprio solo da jornada, dos temas ferida-incurável-prova, vividos, portanto, “na carne” e de forma cotidiana.
Mas não ouso dizer que perder um filho diz respeito a uma “expiação”, pois o que sabemos da vida alheia? Tenho pavor desses achismos infelizes e que nada acrescentam… Sei de histórias (reais) de pais que aceitaram acolher sujeitos muito comprometidos e devastados psiquicamente e, igualmente, filhos que sofrem por tolerar pais que ainda apresentam inteligência tosca e quadros emocionais dificílimos para a convivência. Afinal, não sei de ninguém que “aceitou” adentrar de novo o campo da carne, e para melhorar-se, a depender, por exemplo, de um pai violento, que espanca ou maltrata. Escuto também o sofrimento de indivíduos que estão a estagiar em campos familiares ásperos, movidos apenas por bondade e vínculo de afeto com algum dos genitores. O que importa? Todos, aqui e por enquanto, somos aprendizes e, em consequência, pessoas “inacabadas”, mas abertos a sublimes virtudes, movidos pela centelha da Bondade essencial, fadados apenas à perfeição.
* Há um livro muito interessante e que pode apoiar e esclarecer os pais que estão a viver a elaboração do luto em razão da morte precoce de um filho/a: André Luiz/Francisco Cândido Xavier. Entre o Céu e a Terra. 13. ed., RJ: FEB, 1990.
O consolador – Ano 8 – N 372