Autor: Marcus Vinicius Azevedo Braga
Certa feita, Samuel dirigiu uma peça na casa espírita, na qual interagiam encarnados e desencarnados, e o tom era um tanto cômico, retratando os Espíritos como pessoas, com seus conflitos e as suas confusões. Nada diferente do que se vê no cinema todo dia. Tal representação foi objeto de pesadas críticas do grupo dirigente da instituição espírita, alegando que estavam debochando dos guias espirituais, e a peça foi proscrita.
Essa visão sisuda dos Espíritos desencarnados, como avatares gélidos, oráculos com voz gutural, acima do bem e do mal, anjos modernos, é comum nas falas e nos textos espíritas. Um certo guiismo, perdoem o neologismo emprestado de outro amigo articulista, mas é uma percepção de uma espiritualidade distante da humanidade, angelical, sem sentimentos, infalível. Santos…
Esse caso fictício narrado, bem como outros que colecionamos no que tange à relação com a prática mediúnica, com o teor das mensagens, a sua pertinência, mostra que temos essa herança dos deuses greco-romanos, do judaico-cristão, bem como do afro, de entidades extracorpóreas que regem as nossas vidas, de forma alheia, superior, e que só podem ser objeto de adoração, jamais de contestação ou, ainda, de comédia, posto que estão acima dos Espíritos encarnados, os humanos.
Independente de onde vêm essas ideias em nossa cultura e de como absorvemos isso no Espiritismo, o fato é que Kardec quebrou esse paradigma, e talvez não tenhamos percebido que a doutrina se pauta em outros referenciais, em pressupostos que mudam práticas e escritos decorrentes. Vejamos em alguns trechos da chamada codificação como Kardec se posiciona em relação aos Espíritos desencarnados, como na introdução de O Livro dos Espíritos: “O Espiritismo no-la mostra preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos dos homens, nos diferentes graus que levam à perfeição”, na qual Kardec se posiciona como fará ao longo dos outros livros, em relação a natureza dos Espíritos.
Tem-se também O Livro dos Médiuns no seu item 19: “No Espiritismo, a questão dos Espíritos é secundária e consecutiva; não constitui o ponto de partida. Este precisamente o erro em que caem muitos adeptos e que, amiúde, os leva a insucesso com certas pessoas. Não sendo os Espíritos senão as almas dos homens, o verdadeiro ponto de partida é a existência da alma”, bem como o item 49: “4º Os Espíritos não são seres à parte, dentro da criação, mas as almas dos que hão vivido na Terra, ou em outros mundos, e que despiram o invólucro corpóreo; donde se segue que as almas dos homens são Espíritos encarnados e que nós, morrendo, nos tornamos Espíritos”.
O que é o Espiritismo – Cap. 1: “Todos os Espíritos têm a mesma origem e o mesmo destino; as diferenças que os separam não constituem espécies distintas, mas exprimem diversos graus de adiantamento. Os Espíritos não são perfeitos, porque não são mais do que as almas dos homens, que não atingiram também a perfeição; e, pela mesma razão, os homens não são perfeitos por serem encarnações de Espíritos mais ou menos adiantados. O mundo corporal e o mundo espiritual estão em contínuo revezamento; pela morte do corpo, o mundo corporal fornece seu contingente ao espiritual; pelos nascimentos, este alimenta a humanidade”.
Apenas esses trechos são suficientes para exemplificar a visão de Kardec sobre os Espíritos, seres criados por Deus, simples e ignorantes, e que se alternam entre mundos, como encarnados e desencarnados, pelo fenômeno da reencarnação, na busca de crescer e evoluir, sendo a mediunidade apenas a faculdade de abrir portas entre esses mundos. Mas insistimos em buscar santos de pés de barro…
Sim, buscamos Espíritos para saber nosso futuro, resistimos a analisar as comunicações destes (que audácia a nossa), e colocamos estes em um pedestal inatingível e de superioridade, que leva a situações de endeusamento, e até de dependência, na qual a mais simples é a crítica de um roteiro teatral. Queremos guias e não amigos espirituais.
Essa divinização é muito preocupante, em especial no que tange ao uso da razão como guia diante do nebuloso mundo das interações com os desencarnados, e é estranha à ideia essencial do Espiritismo, necessitando uma profunda reflexão (ou uma revolução) de como temos nos posicionado em relação aos Espíritos, e a nossa interação com estes, sendo necessário humanizar estas relações.
O título do presente artigo, para fechar a ideia proposta, é oriundo de um vídeo de internet do Canal Amigos da Luz, que, explorando linguagem menos convencional, tem abordado com seriedade temas espíritas, popularizando estes, e pela sua veia cômica, tem sido objeto de críticas. Um reflexo de como essa negação do paradigma kardequiano traz consequências por vezes inusitadas.
Nota Juventude Espírita
Guiismo = [do francês guier + -ismo] – Viciação de comportamento, só verificada em virtude de estudo doutrinário deficiente dentro das lides espíritas, em que o guia, assim denominado o Espírito protetor ou mentor, é considerado competente para tudo orientar e ensinar, nada se fazendo sem consultá-lo. Fonte: http://www.portalkardec.com.br/livros/dicionario%20espirita.htm
O consolador – Ano 12 – N 565 – Artigos