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O abismo de Maria

Autor: Felipe Gallesco

Não aguento mais ficar aqui. Até quando vai durar este sofrimento? – pensava a moça que em tempos longínquos era conhecida como Maria.

Desencarnou com 24 anos e não fez nenhum bem ou mal significativos, porém a aparente estabilidade emocional escondia grandes conflitos internos, que poderiam ser resumidos em não aceitar a si mesma ou a vida.

De família de classe média, vivendo no Brasil, sempre teve o necessário para sobreviver e ser feliz, mas não aceitava que ninguém tivesse mais. Fazia reclamações constantes sobre o próprio corpo, odiava os costumes do país e julgava que apenas seria feliz vivendo fora. Não conseguia manter relacionamentos amorosos, pelas monumentais crises de ciúmes e insegurança. Julgava não conseguir seguir a vida sem a proteção dos pais ou fazer boas escolhas.

Certo dia Maria acordou machucada, com dificuldade para andar, no fundo de um abismo escuro, cercado por enormes paredões de pedras, chão de terra e céu sempre negro. No local, existiam pessoas em estado mais deplorável, algumas quase não tinham a forma humana, e apresentavam variados tipos de desequilíbrio. Ficou em choque com aquele primeiro contato.

Com o tempo foi sobrevivendo no local, que detestava, e percebeu que todos os novos moradores vinham caindo do céu, sofrendo sequelas pela queda. Também notou que alguns indivíduos inexplicavelmente sumiam, sem deixar qualquer rastro.

Não existia muita coisa para fazer, além de ficar imersa nos próprios pensamentos ou observando a paisagem. Sua atividade favorita passou a ser observar aqueles que tentavam escalar os paredões, na esperança de fugir. Depois de certa altura, todos caiam e eram recebidos com sons de risadas e gargalhadas por quem assistia.

Em graus diferentes, todos estavam revoltados e loucos. Essa condição resultava em episódios constantes de violência, impedindo a formação de grupos organizados. Os mais sensatos procuravam fazer o mínimo de barulho e não chamar a atenção. Não existia conforto ou descanso estando ali.

Maria depois de residir um tempo, que não saberia calcular, mas sentia ser longo, trajava partes de um vestido rasgado, tinha a pele acinzentada, corpo esquelético e feridas. Sua perna direita nunca se recuperou da queda.

Em certa ocasião pensava:

– Não sei por que Deus me colocou aqui. Nunca fiz nada para merecer este castigo – repetia sucessivamente essa ideia, enquanto mantinha o olhar fixo no chão.

Em outra faixa vibratória, desconhecida pelos morados do abismo, existiam esforçados trabalhadores luminosos que acompanhavam as menores ações do local e protegiam de ofensivas externas.

Um deles, chamado Anselmo, estava em pé ao lado de Maria, e fazia leitura de seus pensamentos, sem permitir ser notado. Sentia profunda compaixão por aquele ser.

Todos os trabalhadores do abismo acompanhavam um certo número de moradores previamente designados. A ciência que possuíam era mais desenvolvida que os limites conhecidos na Terra, inclusive, todos usavam habilidades telepáticas das quais adotavam como linguagem principal.

Anselmo acompanhava Maria desde seu primeiro dia naquela paisagem. Observou com paciência os diferentes ciclos que ela experimentou e sutilmente foi auxiliando na recuperação de cada desequilíbrio, sendo dela o mérito principal por cada conquista.

Maria primeiro venceu o terror de se ver naquela situação; depois precisou conter a revolta; o ambiente difícil a fez ter de lutar pela sobrevivência, como não conseguia fugir das inúmeras situações desconfortáveis, começou a tolerar a adversidade da vida. Ela encontrou forças em si que desconhecia. Seu corpo atualmente debilitado a fez recordar com gratidão o antigo.

Apesar de aparentar estar vencida, interiormente estava mais quieta e resiliente, contudo ainda guardava tristeza da atual condição e cansada de tanta luta. Vencer essa última dificuldade era sua oportunidade de saída.

Anselmo depositava grande expectativa e tentava influenciar Maria para a fé em Deus.

– Eu não aguento estar aqui, mas deve existir um motivo para isso. Não é possível que a vida seja só sofrer. Estou cansada de toda essa bagunça. Eu quero paz. Mereço ser feliz – pensava ainda mantendo os olhos no chão.

Respirou fundo e fez uma retrospectiva mental dos principais momentos que viveu na Terra, onde só agora julgava ter sido mais feliz. Os pensamentos continuaram.

– Deve existir um propósito para tudo isso. Deus não me criou para sofrer sem parar, eu vi o pior de tudo e sei que podemos mais.

Anselmo que já havia auxiliado Maria em outras ocasiões, desprendeu grande esforço mental e de seu corpo as manifestações luminosas ficaram mais fortes, emanando vibrações de paz e harmonia.

Maria, que desconhecia estar sendo ajudada, sentiu uma súbita calmaria interior que há tempos não experimentava, olhou para o alto e pensou:

– Talvez aqui não seja lugar de castigo. Eu sofro por causa das insatisfações, tensões, divisões e conflitos que existem dentro de mim. Eu não consigo conciliar o que quero ser e possuir, com a realidade.

Aquele padrão diferente de ideia despertou o interesse de outros trabalhadores próximos que se aproximaram para não perderem os desdobramentos seguintes.

– Eu sou imperfeita, mas está tudo bem – pensava Maria

– Mesmo sem esperança de sair daqui, não vou reclamar e nem desejar viver a vida dos outros. Quero ser eu mesma. Passei por muita coisa e sobrevivi. Eu consigo me virar, mesmo não gostando deste lugar.

Num gesto de fé, Maria gritou em alto e bom som, com o máximo de forças que o corpo esquelético permitia:

– Deus, estou aqui. Me permita melhorar.

Os moradores que estavam próximos olharam surpresos, não pelos gritos que eram comuns, mas pela mensagem positiva que era um contraste naquela paisagem. 

O esforço exauriu a pouca energia que possuía e Maria adormeceu.

Muitas semanas depois acordou numa cama hospitalar, estando limpa, cuidada e em processo de recuperação. Sua melhora estava sendo acompanhada de perto, por diversos profissionais médicos espirituais.

Sua nova rotina diária envolvia tomar remédios, estudar, meditar na natureza, participar de excursões, fazer terapia e ter contato com a arte. Estava adorando as mudanças e percebendo que a vida era mais bela e completa do que jamais poderia ter imaginado.

Os desequilíbrios do passado não desapareceram, mas diminuíram de intensidade e ficaram sob controle. A forma do seu corpo espiritual voltou a ser saudável. Nos estudos, Maria descobriu que toda fome, sede, dor, machucados e deformidades que experimentou eram ilusões de sua mente apegada a matéria.

O abismo nunca foi um local de sofrimento ou castigo, mas um campo, entre inúmeros que existem, para regeneração do ser. Neles, os moradores possuem afinidades entre si e fluidicamente influenciam a paisagem onde vivem.

Maria ainda não era feliz, mas estava um passo mais próxima de construir a felicidade que tanto buscava.

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