Autora: Saara Nousiainen
“As provas têm por fim exercitar a inteligência, tanto quanto a paciência e a resignação. Pode dar-se que um homem nasça em posição penosa e difícil, precisamente para se ver obrigado a procurar meios de vencer as dificuldades.”
“O mérito consiste em sofrer, sem murmurar, as consequências dos males que lhe não seja possível evitar, em perseverar na luta, em não desesperar-se, se não é bem sucedido; nunca, porém, numa negligência que seria mais preguiça do que virtude.” – O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo 5. Item: 26
Os velhinhos, procedentes de uma favela próxima, iam chegando isoladamente ou em grupos, uns silenciosos, outros bulhentos. O ambiente era descontraído e as conversas logo tomavam conta, calcadas em brincadeiras inocentes. Cada um apanhava seu copo de café com leite, o pão com manteiga e ia sentar-se para o desjejum. Tomado o café, iam encaminhando-se para o grande salão onde seria realizado o Evangelho, seguido de passe coletivo.
Aberto O Evangelho Segundo o Espiritismo, o texto tratava das penas e expiações, seguido da palavra de alguns espíritos sobre a necessidade de suportá-las com paciência e conformação, que propiciarão recompensas futuras.
A companheira que lia o Evangelho fazia-o em tom lamentoso, e a sonoridade de sua voz caía pesadamente sobre os psiquismos presentes.
A essa altura os semblantes, antes alegres e descontraídos, mostravam-se soturnos e amargurados, como se estivessem revivendo todas as suas tristezas e aflições. Aquele ar de contentamento fora substituído por expressões de dolorosa conformação.
Deu vontade de levantar e pedir a todos para sorrirem, cantarem e se abraçarem, agradecendo a Deus pela vida, o ar, a natureza e a amizade, esquecendo-se das suas mágoas e dores; dizer que o ser humano precisa aprender a sentir-se feliz, apesar dos problemas ou sofrimentos. Mas aquela disciplina que aprendemos na Casa Espírita, não permitiria tal atitude.
O ambiente era de funeral, os comentários do Evangelho seguiram o mesmo estilo e a prece, pedindo a fluidificação da água foi narrada em voz que mais parecia um lamento que um pedido.
Os velhinhos foram saindo um a um, mais vergados que antes, sentindo com mais intensidade as suas aflições.
Voltei para casa pensativa. Será esse o papel da Doutrina Espírita?
Ultimamente tem havido muita questiúncula em torno do que o Espiritismo representa.
É o Consolador ou a Verdade?
Se a nossa humanidade está transitando de mundo de provas e expiações para planeta de regeneração, conforme informam os espíritos, está claro que a nossa mentalidade também precisa ser reformulada, para atender com segurança as necessidades dessa transição. Se ficarmos engessados no pensamento antigo, calcado na temática do sofrimento como necessidade expiatória, como poderemos trabalhar pelo novo modelo?
É natural que prepondere num mundo de provas e expiações a ideia do Consolador, como também é a Verdade que deve preponderar num mundo de regeneração. Mas a própria natureza do Consolador, por um ponto de vista mais saudável, está muito mais nas informações trazidas pela Verdade, do que na expectativa de recompensas futuras.
E é justamente essa mentalidade mais avançada, mais adequada à época, que vem surgindo em alguns segmentos dos meios espíritas.
Aquela ideia do “vamos sofrer resignadamente porque receberemos recompensas no Céu”, está começando a mudar para um discurso mais saudável e progressista: “vamos buscar o nosso crescimento interior, desenvolver nossas qualidades superiores; ajudar a comunidade procurando levar-lhe as verdades espirituais, além de buscar conscientizá-la quanto à importância da sua participação na transformação do mundo; auxiliar o ser humano a comandar seus estados de espírito, erguer-se e caminhar com os próprios pés”.
É a cruz transformando-se em instrumento de trabalho, de crescimento e de alegria.
Sem a mais remota ideia de tecer críticas aos espíritos que trabalharam na Codificação, devemos lembrar que a maioria deles era procedente da igreja católica, por isso em seus enfoques transparecem conceitos que, se eram adequados àquela época, estão carecendo urgentemente de revisão.
Em O Evangelho Segundo o Espiritismo alguns espíritos falam na conformação, que propiciará recompensas futuras, e que Deus reserva louros e um lugar glorioso a pessoas que tiverem determinado tipo de comportamento etc.
Essa ideia de recompensas, louros e glórias é adequada a espíritos que ainda não alcançaram certo grau de entendimento e que necessitam desse tipo de muletas para caminhar melhor. Mas hoje, em pleno trânsito para uma nova época, essa velha mentalidade deve começar a ceder lugar à do trabalho pela auto superação, a auto-ajuda, o crescimento da criatura como ser cósmico, crescimento esse que é, por si só, seu maior fator de felicidade atual e futura.
Sofrer hoje, resignadamente, visando louros e glórias no Céu, demonstra curto entendimento sobre evolução. Um espírito evoluído, pela humildade que lhe é própria, jamais encontrará a felicidade nesses louros e glórias, mas sim, em seu próprio estado evolutivo, que é jubilosamente luminoso.
É hora de começarmos a abandonar aquelas ideias de comprar um lugar no Céu, ou em Nosso Lar, através da conformação, que é uma postura estagnante, mas que ainda voeja nas cabeças de muitos espíritas que entendem ser necessário sofrer para purificar a alma, ou pagar culpas do passado, como se apenas pagar essas culpas fosse o suficiente.
Certamente, no novo modelo que deverá nortear o mundo de regeneração, serão apresentados caminhos outros que não apenas a dor, para a evolução dos seres.
A largueza de vistas do Espiritismo mostra ao ser humano que ele deve buscar a felicidade, o bem-estar, o contentamento, desde que não arranhe a ética, ou seja, as leis de Deus.
Por certo é importante aceitarmos o sofrimento que não pudermos mudar, mas há diferenças fundamentais entre aceitar e conformar-se, como também é indiscutível que podemos, sempre, mudar nossa vida para melhor, começando por melhorar os próprios estados de espírito e as atitudes. E, mesmo aceitando o sofrimento como necessário à evolução, ou como retorno de atos do presente ou do passado, devemos recebê-lo como lição e não como carga.
Por esses novos enfoques também será preciso pensarmos em mudar aquele tom que é usado em muitos Centros Espíritas, o da voz melíflua, chorosa, piegas, orientando para a conformação, colocando como exemplo os sofrimentos de Jesus, e acenando com as recompensas futuras. A nova civilização que está nascendo pede discursos diferentes, aproveitando o muito de bom que já existe na área do conhecimento humano, visando o crescimento da criatura em todas as suas potencialidades.
Surge, então, com muito vigor, a necessidade de os espíritas se reunirem para discutir essas questões. Os Centros poderiam convidar outras instituições com características divergentes das suas para esses debates, em encontros fraternos e elucidativos. Não daquele modelo em que os expositores falam e os outros escutam, mas em verdadeiros fóruns de debates em que todos os presentes se reúnem em equipes para debater determinado assunto, que, depois de trabalhado entre cabeças que pensam diferente, suas conclusões sejam levadas a uma plenária. Nesse ou noutro formato, o importante é trocar ideias, debater, pois é desses debates que nasce a luz.