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O escriba enganado

Autor: Irmão X (espírito)

Achava-se o Mestre em casa de Pedro, contudo, em localidades diversas, em derredor do grande lago, propalava-se-lhe a Boa Nova. Comentavam-se-lhe as preleções qual se fora ele um príncipe desconhecido, chamado à restauração nacionalista.

Se aparecia em público, era apontado como revolucionário em vias de levantar a bandeira de antigas reivindicações e, quando no santuário doméstico, recebia visitas corteses e indagadoras. Não surgiam, no entanto, tão-somente os que vinham consultá-lo acerca de princípios libertários, mas também os que, inflados de superioridade, vinham discutir os problemas da fé.

Foi assim que o escriba Datan se acercou familiarmente dele, sobraçando rolos volumosos e guardando ares de mistério na palavra sigilosa e malevolente.

Fez solene preliminar, explicando os motivos de sua vinda.

Estudara muitíssimo. Conhecia o drama de Israel, desde os primórdios.

Possuía velhos escritos, referentes às perseguições mais remotas. Arquivara, cuidadoso, preciosas tradições ocultas que relatavam os sofrimentos da raça na Assíria e no Egito. Encontrava-se em ligação com vários remanescentes de sacerdotes hebreus de outros séculos. Discutia, douto e perspicaz, sobre o passado de Moisés e Aarão, na pátria dos faraós, e recolhera conhecimentos novos, com respeito à Terra da Promissão.

Em virtude da inteligência inata com que sabia tratar os problemas do revelacionismo, declarava-se disposto a colaborar no restabelecimento da verdade.

Pretendia contribuir, não só com o verbo inflamado, mas também com a bolsa no banimento sumário de todos os exploradores do Templo.

Depois de pormenorizada exposição que o Senhor ouviu em silêncio, aduziu o escriba entusiasta:

– Mestre, não será indiscutível a necessidade de reforma da fé?

– Sim… – confirmou Jesus, sem comentários. Datan, extremamente loquaz, prosseguiu:

– Venho trazer-te, pois, a minha solidariedade sem condições. Dói-me contemplar a Casa Divina ocupada por ladrões e cambistas sem consciência. Sou cultivador da Lei, rigorista e intransigente. Tenho o Levítico de cor, para evitar o contacto de pessoas e alimentos imundos. Cumpro as minhas obrigações e não suporto a presença de quantos dilapidam o altar, sob pretexto de protegê-lo. Fixou expressão colérica no olhar de raposa ferida, baixou o tom de voz, à maneira de denunciador comum, e anunciou sussurrante:

– Tenho comigo a relação de todos os lagartos e corvos que insultam o santuário de Deus. Ser-te-ei devotado colaborador para confundi-los e exterminá-los. Meus pergaminhos são brasas vivas da verdade. Conheço os que roubam do povo miserável a benefício dos próprios romanos que, nos dominam. O Templo está cheio de rapinagem. Há feras em forma humana que ali devoram as riquezas do Senhor, lendo textos sagrados. São criaturas

melosas e escarninhas, untuosas e traidoras…

O Cristo ouvia sem qualquer palavra que lhe demonstrasse o desagrado e, ébrio de maledicência, o visitante desdobrou um dos rolos, fixou alguns apontamentos e acrescentou:

– Vejamos pequena galeria de criminosos que, de imediato, precisamos conter.

O rabino Jocanan vive cercado de discípulos, administrando lições, mas é proprietário de muitos palácios, conseguidos à custa de viúvas misérrimas; é um homem asqueroso pela sovinice a que se confia.

O rabino Jafé, desde muito, é um explorador de mulheres desventuradas; do átrio da casa de Deus para dentro é uma ovelha, mas do átrio para fora é um lobo, insaciável.

Nasson, o sacerdote, vale-se da elevada posição que desfruta para vender, a preços infames, touros e cabras destinados aos sacrifícios, por intermédio de terceiros que lhe enriquecem as arcas; já possui três casas grandes, cheias de escravos, em Cesaréia, com vastos rebanhos de carneiros.

Agiel, um dos guardas do sagrado candeeiro, enverga túnica respeitável durante o dia e é salteador, durante a noite; sei quantas pessoas foram por ele assaltadas no último ano sabático.

Nenrod, o zelador do Santo dos Santos, tem sete assassínios nas costas; fórmula preces comoventes no lugar divino, mas é malfeitor contumaz, evadido da Síria.

Manassés, o explicador dos Salmos de David, vende pombos a preços asfixiantes, criando constrangimento às mulheres imundas que buscam a purificação, de maneira a explorar-lhes a boa-fé.

Gad, o fiscal de carnes impuras, tem a casa repleta de utilidades do santuário, que cede modicamente, enchendo-se-lhe os cofres de ouro e prata.

Efraim, o levita, que se insinua presentemente na casa do Sumo Sacerdote, é político sagaz; a humildade fingida lhe encobre os tenebrosos planos de dominação.

Reparando, porém, que Jesus se mantinha mudo, o interlocutor interrompeu-se, fixou-o com desapontamento, e concluiu:

– Senhor, aceita-me no ministério. Estou pronto. Informaram-me de que te dispões a fundar um novo reino e uma nova ordem… Auxiliar-te-ei a massacrar os impostores, renovaremos a crença de nosso povo…

Mas Jesus, sorrindo agora, compassivo e triste, retrucou muito calmo:

– Datan, equivocas-te, naturalmente, qual acontece a muitos outros. A Boa Nova é de salvação. Não procuro delatores, nem carrascos, sempre valiosos nos tribunais. Estamos buscando simplesmente homens e mulheres que desejam amar o próximo e ajudá-lo, em nome de nosso Pai, a fim de que nos façamos melhores uns para com os outros.

O Mestre, sereno e persuasivo, ia continuar, mas o escriba eloquente, tão profundo no conhecimento das vidas alheias, enrolou os pergaminhos, apressado, franziu os lábios amarelos de cólera inútil e atravessou a soleira da porta sem olhar para trás.

Nota

O conto acima, psicografado por Francisco Cândido Xavier, faz parte do livro Contos Desta e Doutra Vida.

Obra completa: https://www.febeditora.com.br/contos-e-apologos

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