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O perdão como prova de amor e de caridade

Autor: Tiago Antonio Salvador

Introdução

Um dos ensinamentos do Cristo mais conhecidos – mesmo dentre aqueles que não professam qualquer crença de matriz cristã – é o expresso na sintética sentença “amai os vossos inimigos”, que encontramos tanto no Evangelho de Mateus (V:44)[1] quanto no de Lucas (VI:27)[2].

Em que pese muito divulgado e proclamado com resoluta sinceridade por diversos daqueles que se consideram cristãos, trata-se, igualmente, de um dos ensinamentos do Mestre menos compreendido e vivenciado nos atos cotidianos da vida corpórea, diante das dificuldades que ainda encontramos, como seres em processo de evolução, em entender as ofensas que sofremos e perdoarmos aqueles que nos atingem.

Essas dificuldades, naturais no estágio evolutivo atual de nosso planeta, são em grande parte explicadas pela incompreensão ainda existente no ser humano sobre o verdadeiro significado do amor e do perdão em Cristo, verdadeiros fundamentos das Leis Morais do Progresso e de Justiça, Amor e Caridade.

Nessa seara, o Espiritismo, por seu caráter de Evangelho Redivivo, magistralmente codificado por Allan Kardec na forma de ciência, filosofia e religião, nos traz a luz necessária para entendermos esse – e todos os demais – postulados do Evangelho de Cristo, em especial por nos mostrar que a vida é eterna e que reencarnamos para progredirmos, daí serem os problemas e perturbações vivenciados – e seus causadores –, instrumentos de provas e expiações que se fazem presentes em nossas vidas e que nos possibilitam evoluir, caminhando em direção a Deus, rumo à perfeição moral possível, diante da nossa condição de espírito eterno. 

O que ora se propõe neste despretensioso trabalho não é outra coisa senão revisitar os ensinamentos evangélicos sobre o amor a ser dedicado aos nossos inimigos, tendo por baliza a Doutrina Espírita codificada por Allan Kardec e o olhar na realidade hodierna, com toda a complexidade que caracteriza as relações humanas, sociais e políticas na sociedade moderna.

Para tanto, propomos analisar, primeiramente, o que devemos entender como “inimigo” nos dias atuais, ou, em outras palavras, a quem se deve destinar amor segundo o mencionado preceito cristão; ainda, buscaremos a compreensão necessária a respeito do sentimento de “amor” a que se refere o Cristo, especialmente diante da aparente incompatibilidade do ato de amar aquele que nos deseja mal, ou a quem não nos afeiçoamos, consciente ou inconscientemente; e, por fim, pretendemos entender o perdão como manifestação de amor e de caridade para com o próximo, à luz das leis morais prescritas pelos Espíritos Superiores e codificadas por Allan Kardec. 

O inimigo, o Evangelho e o Espiritismo 

O Codificador, em sua monumental obra O Evangelho segundo o Espiritismo (1864), dedicou um capítulo específico ao preceito evangélico “amai os vossos inimigos” (Capítulo XII), delineando, com sua superior sabedoria e a partir das linhas mestras apresentadas pelos Espíritos Superiores, as lições que devemos ter em conta sobre o tema.

Tal capítulo figura como verdadeiro roteiro a guiar o pensar e o agir humano em relação a este mandamento, iluminando-nos, hoje e sempre, com preciosas observações que, se devidamente seguidas, nos levarão ao caminho do amor e do perdão caridoso aos nossos inimigos.

No entanto, parece soar estranho falarmos em “inimigos” nos dias atuais. Com efeito, muitas são as pessoas que, confrontadas com esse ensinamento evangélico, respondem, para si mesmas ou em público, que não possuem “inimigo”, alguém que entendam nitidamente como seu adversário, antagonista, a quem hostilize ou de quem sofra hostilidade. Porém, essas mesmas pessoas, não raro, confessam que guardam “mágoas” e “desilusões” em relação a outras, ou têm noção de que alguém não lhes quer bem, asseverando que não as odeiam, mas tampouco lhes dedicam amor, surgindo a “indiferença” como o sentimento a marcar a projeção mental relativamente a elas.

Em uma análise sem maior profundidade, pode restar a impressão de que a figura do “inimigo” a que se referiu Jesus Cristo, no contexto de sua época, e Allan Kardec, em sua obra, pouco tem relação com a realidade das sociedades contemporâneas, em especial daquelas mais civilizadas, em que se verifica considerável diminuição da belicosidade nas relações entre as pessoas, não obstante a violência e a perversidade ainda seja uma realidade muito presente em diferentes grupos humanos.  

Entretanto, é importante lembrar que, assim como o próprio Evangelho de Cristo, os ensinamentos contidos na doutrina exposta por Kardec constituem-se universais e atemporais, válidos, portanto, em qualquer lugar e a qualquer tempo, o que nos permite entendê-los e interpretá-los consoante a realidade de nossa época e de nosso meio social. 

É verdade que o cenário político, social e cultural de hoje, em grande parte do planeta, é bem diverso daquele existente à época em que o Cristo esteve entre nós. Houve inegável evolução da humanidade no caminho da construção de sociedades mais democráticas, justas e fraternas, muito em virtude da influência da moral cristã, mas também de outras matrizes religiosas, na formação das diferentes gerações que se sucederam nos últimos dois mil anos, mormente no mundo ocidental.

Não obstante ainda se constate, com frequência, atos de violência e barbaridades próprias de um mundo inferior, selvagem e primitivo, as evidências apontam, verdadeiramente, para o progresso da humanidade em diversos aspectos, inclusive no que toca às questões morais, encontrando a caridade fraterna, em nossos tempos, campo fértil, assentada ou não em alguma fé religiosa, a exemplo das muitas e variadas instituições da sociedade civil organizada que se dedicam à assistência benevolente aos desvalidos e necessitados.

A Doutrina Espírita nos explica muito bem essa mudança gradativa verificada em nosso orbe, ao expor que a Terra não mais ocupa posição de mundo primitivo, onde reina a selvageria e a maldade entre os seres humanos, encontrando-se na categoria de mundo de provas e expiações, caminhando para se tornar um mundo de regeneração, como nos ensina Kardec em sua obra[3].

Assim, no estágio evolutivo em que vivemos, no qual a maldade e a perversidade ainda grassam em nosso orbe, porém, de forma mais sub-reptícia, camuflada, com menor incidência de antagonismos claros e ostensivos, ao menos nas sociedades mais civilizadas, o inimigo a que o Cristo se referia não deve ser entendido tão somente como o “contrário”, o “antagonista”, a “encarnação do mal” em nossas vidas, mas, igualmente, como todas aquelas pessoas que, de algum modo, nutrem por nós, ou que nós nutrimos por elas, qualquer nível de antipatia, desde as mais graves e perigosas até as mais simples, com as quais nos deparamos no dia-a-dia e que se verificam, frequentemente, no ambiente do trabalho, no âmbito familiar, nas relações de vizinhança, no uso das redes sociais, no trânsito, ou seja, em qualquer momento de interação com as demais pessoas em sociedade.

Nesse sentido, o “inimigo” pode ser aquele vizinho com o qual nos antipatizamos, por gostar de ouvir música em alto volume em horário inadequado; aquele colega de trabalho que, não obstante entendermos ser menos competente do que nós, foi promovido por merecimento, enquanto permanecemos estáticos na carreira; pode ser aquela(e) ex-namorada(o) que não conseguimos mais olhar no rosto, por fatos ocorridos no passado, apesar de sabida a necessidade de conceder-lhe perdão, entre inúmeras outras situações da realidade social que enfrentamos enquanto encarnados no vaso corpóreo.

A Doutrina Espírita nos demonstra com clareza que essas antipatias podem ser angariadas originalmente na presente reencarnação ou, também, o que é muito comum, podem derivar de vidas passadas, as quais se fazem ainda presentes justamente por não as termos resolvido quando oportuno, restando inteiramente intactas as hostilidades do passado ou, dado o progresso já realizado, ressurgem como resquícios de inimizades capitais existentes em vidas anteriores.

Igualmente, o Espiritismo joga luz sobre outro fenômeno que encontra nas inimizades do passado uma de suas principais origens: a obsessão levada a efeito por espíritos sobre outros, encarnados ou desencarnados.

O Codificador, no aludido Capítulo XII de O Evangelho segundo o Espiritismo, dedicou especial atenção a essa forma de inimizade, destacando, no item “Os inimigos desencarnados”, que se pode ter inimigos entre os encarnados e os desencarnados e que os “inimigos do mundo invisível manifestam a sua maldade por meio das obsessões e subjugações, as quais tantas pessoas estão expostas, e que representam algumas das provas da vida”[4]

É de se ressaltar que a temática da obsessão conta com vasta literatura espírita, merecendo destaque, dentre outras, as obras de Manoel Philomeno de Miranda (Espírito), pela psicografia de Divaldo P. Franco, que descortinam diversos exemplos dos efeitos malévolos da obsessão de espíritos perversos em face de inimigos encarnados, encontrando por móvel propulsor de suas maldades as desavenças, antipatias ou mágoas de vidas passadas.

Verifica-se, portanto, que em nossas diferentes experiências corpóreas deparamo-nos com diversas e variadas pessoas que, por questões do presente ou do passado, nos levam a sentimentos variados de antipatia, inimizade, aversão, mais ou menos intensos, e é, sem dúvida, a Misericórdia Divina que nos possibilita, através das diversas reencarnações e em conformidade com o plano reencarnatório adequado, pelo exercício do livre arbítrio, resgatarmos nossas dívidas e solucionarmos as pendências ainda existentes, a fim de progredirmos em nossa marcha de aperfeiçoamento espiritual. 

O amor dedicado aos inimigos

O Evangelho do Cristo, em sua essência, é o Evangelho do Amor. Sentimento que se constitui como verdadeira amálgama a unir as diferentes almas e elas a Deus, o amor figura como o ponto fulcral dos ensinamentos de Jesus, a base da Segunda Revelação, a qual impulsionou a humanidade a um novo período em sua marcha evolutiva.

Por sua importância, são diversas as passagens evangélicas que evidenciam o amor como mandamento divino a sustentar todo o Cristianismo.

Com efeito, no Evangelho de João, infere-se que o amor ao próximo, no dizer do Cristo, é um mandamento que encontra padrão no amor dedicado por Ele próprio aos homens[5]. Tão elevado padrão pode nos soar, num primeiro momento, algo difícil, senão improvável de ser alcançado no estágio evolutivo em que nos encontramos, pois, lembremos, Jesus enfrentou, encarnado, todas as agruras terrenas e, com imensos sofrimentos físicos, sacrificou sua própria vida corpórea por amor à humanidade.

Porém, é também certo que o próprio Cristo, sem embargos de colocar seu amor ao outro como modelo a ser seguido, explicitou o postulado do amor ao próximo por um parâmetro mais próximo daquele compreensível pelo homem de seu tempo – e de qualquer tempo: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mateus, XXII:39).

Allan Kardec, em primorosa análise realizada sobre esse mandamento do Mestre, a partir dos ensinamentos dos Espíritos Superiores, nos legou valiosa lição ao elucidar que: 

“Amar ao próximo como a si mesmo, fazer pelos outros o que queremos que os outros façam por nós”, é a expressão mais completa da caridade, pois ela resume todos os deveres para com o próximo. Não se pode ter guia mais seguro, neste caso, do que tomando por medida aquilo que desejamos para nós mesmos. Com que direito exigiríamos de nossos semelhantes bons procedimentos, indulgência, benevolência e devotamento se nós mesmos não os temos com eles? A prática dessas máximas leva à destruição do egoísmo. Quando os homens as tomarem por regra de conduta e por base de suas instituições, compreenderão a verdadeira fraternidade e farão reinar entre si a paz e a justiça. Não haverá mais nem ódios nem dissensões, apenas união, concórdia e benevolência mútua.[6]  

Não se pode esquecer, ainda, que, nas palavras de Jesus, amar ao próximo como a si mesmo é o segundo mandamento, semelhante ao primeiro e o maior: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento” (Mateus, XXII:37).

Assim, podemos dizer, com acerto, que é o amor – a Deus (Lei de Adoração) e ao próximo (Lei de Justiça, Amor e Caridade) – a Lei Maior da Doutrina do Cristo, a que resume todos os demais mandamentos e as obrigações dos homens diante de Deus e entre si próprios.

Porém, e não obstante clara e límpida a origem divina desses mandamentos, parece-nos legítimo, mesmo ao cristão de boa-fé e convicto da força das palavras do Cristo, no encontro íntimo com sua consciência, perguntar-se: como dedicar amor àquele que nos fez mal? Como é possível esquecer as ofensas sofridas de nossos inimigos, como se elas nunca tivessem ocorrido? Como, à luz da Lei Divina da Conservação, amar nossos inimigos, sabendo que eles podem nos ofender novamente e até mesmo colocar nossa vida em risco? É possível aprender a amar aqueles de quem não temos simpatia?

Esses e outros tantos questionamentos semelhantes surgem e desafiam, ainda hoje, o pensamento humano, mesmo daquelas pessoas mais fiéis aos ensinamentos de Jesus. Da mesma forma, o espírita não está a salvo de tais indagações, nem de dúvidas e angústias sobre o correto proceder nos atos da vida, e talvez as tenha até mais que outros que professam crenças religiosas distintas ou que não se importam com questões de natureza espiritual, dado o caráter científico que o Espiritismo estimula que venha a ser empregado por aquele que se dedica ao estudo de sua doutrina, fundada na fé raciocinada.

Para além do Evangelho do Cristo, que constitui a Segunda Revelação das Leis de Deus à humanidade, os espíritas encontram nas obras de Allan Kardec – expressão máxima da Terceira Revelação – fontes seguras e sólidas a afiançar-lhe o conhecimento e o consolo, sem olvidar de outras tantas obras complementares, e fiéis, à Doutrina Espírita, trazidas a nós por Espíritos Superiores através da mediunidade de verdadeiros missionários do Bem e do Amor, a exemplo de Francisco Cândido Xavier, Divaldo P. Franco, Ivonne do Amaral Pereira, dentre outros. 

É nessa esteira que nos cumpre, novamente, revisitarmos o Capítulo XII de O Evangelho segundo o Espiritismo para compreendermos que “amar aos inimigos não é ter por eles uma afeição que não é natural”[7], como nos diz Kardec, pois, verdadeiramente, não há como afeiçoar-nos por aquele(a) cujos pensamentos e ações não nos atrai, ao contrário, nos afasta por uma repulsa natural, de acordo com a leis físicas relativas aos fluidos e vibrações que o Codificador tão bem nos explica.  

De outro lado, podemos concluir que também deriva da Lei Moral de Conservação a conduta instintiva ou racional do homem de afastar-se daquelas pessoas que lhe podem fazer mal, pois o instinto de conservação o anima a manter-se vivo e saudável para colaborar nos desígnios da Providência[8].

Então, em que sentido devemos amar nossos inimigos?

Kardec, com a simplicidade e a clareza que marcam sua obra, nos ensina que amar nossos inimigos é:

[…] não ter contra eles nenhum rancor nem desejo de vingança. É perdoar sem segundas intenções e incondicionalmente, o mal que nos fazem. É não colocar nenhum obstáculo à reconciliação; é desejar-lhes o bem em lugar do mal; é alegrar-nos em vez de aborrecer-nos com o bem que lhes acontece; é socorrê-los em caso de necessidade; é abster-nos, por palavras e atitudes, de tudo o que possa prejudicá-los. É, enfim, pagar-lhes o bem pelo mal, sem intenção de humilhá-los. Quem assim fizer preenche as condições do mandamento: Amai aos vossos inimigos.[9]

Enfim, amar nossos inimigos não é nada mais do cumprir o mandamento cristão de amar o próximo como a si mesmo, pagando-lhe o mal que nos feito com o bem que desejamos a nós, para, assim, encerrar o ciclo do ódio e das ofensas e evidenciar que o amor é o caminho que nos leva mais próximos de Deus.

Percebe-se que, como explicita o Codificador, o amor a que se refere o Cristo não é aquele baseado unicamente no sentimento sublime de amar, de bem querer com afeto e carinho, esse mais difícil e próprio dos Espíritos mais aperfeiçoados. O que busca promover Jesus é a prática do amor por meio de atos de bondade e caridade, os quais são passíveis de serem realizados a partir de decisões racionais, em prol do próximo e, especialmente, de nossos inimigos.

Com efeito, amar, como sentimento divino, não deriva de uma simples decisão. Não escolhemos simplesmente amar ou não amar uma pessoa. Amor, nessa acepção, deriva da própria alma e demanda aprendizado por meio de diferentes vivências, o que quase sempre não é possível fazê-lo em uma única encarnação, à exceção do amor maternal, paternal e filial, proporcionados por Deus justamente para que possamos aprender a amar.

Mas o amor a que se refere Kardec, ao interpretar o mandamento de Jesus, é o amor materializado nos atos, no agir, no pensar, no querer, ou seja, das nossas experiências enquanto humanos, e este sim pode derivar de deliberações racionais que tomamos para o nosso próprio bem e do próximo. Nesse sentido, é perfeitamente possível não sentirmos amor por alguém que nos fez mal, porém, por uma decisão racional, baseada em preceitos morais e no amor a Deus, querermos bem a essa pessoa e fazer-lhe o bem.

Por óbvio, não é algo tão simples. Entretanto, o amor, por esta acepção, é algo que pode e deve ser exercitado por nós, a depender de querermos ou não. O importante é decidir, no nosso íntimo, fazer o bem, a perdoar, a ajudar, o que nos colocará sob um estado psíquico-espiritual que permitirá exercitar, por meio da vivência prática, o bem e a caridade, de forma que, assim, estaremos amando ao próximo e prontos para amar, também, aos nossos inimigos. 

O perdão como manifestação de amor e caridade

Quando se decide por estudar o amor como mandamento Cristão, especial atenção merece o ato de perdão, tema dos mais importantes e latentes dentre aqueles mencionados no Evangelho e também nas obras do Codificador da Doutrina Espírita.

Em um primeiro momento, parece simples entendermos que é importante perdoar as ofensas que nos são dirigidas, e que este seria um passo decisivo para amarmos nossos inimigos. Mas, afinal, o que é perdoar e por que é tão difícil fazê-lo? Esquecer o ocorrido é perdoar? Não querer mal a quem nos ofende é perdoar? Querer o bem ao inimigo é perdoar?

Essas questões nos demonstram que não é tão simples definir o perdão, muito menos saber se realmente, em nosso íntimo, perdoamos ou não determinada pessoa que nos fez mal em dado momento.

Um ponto de partida para nossas reflexões é conhecermos a origem da palavra “perdão”, a qual, segundo os estudos etimológicos, advém do Latim perdonare, de per-, “total, completo”, mais donare, “dar, entregar, doar”[10].

Perdoar, nesse sentido, é o ato de doar, entregar, dar algo a outrem, mas de forma integral, completa, relacionando-se com a ideia de “absolvição total” de alguém, o que evidencia que o palavra “perdão”, desde sua origem, está intimamente ligada à concepção de caridade.

De fato, perdoar alguém pela prática de algum mal, absolvendo-a integralmente, constitui uma das essências da caridade, como nos esclareceram os Espíritos Superiores diante da questão nº 866 de O Livro dos Espíritos: “Qual é o verdadeiro sentido da palavra caridade, tal como a entende Jesus? ‘Benevolência para com todos, indulgência para com as imperfeições alheias, perdão às ofensas’”[11].

Dando continuidade às reflexões e lançando o olhar aos questionamentos acima expostos, parece-nos importante entendermos que perdoar não é esquecer a ofensa, pois olvidar de algo, em nossa vida corpórea, está relacionado com nossas faculdades mentais, ou seja, com uma boa ou má memória, não dependendo do simples querer ou não querer.

É fato que os acontecimentos que nos atinge emocionalmente ficam mais fortemente gravados em nossa memória, de modo que o esquecimento, nesses casos, depende muito mais da superação dos fatores que nos toca o emocional do que propriamente das nossas faculdades mentais. 

Em verdade, o esquecimento que nos aproxima das Leis Divinas é aquele que deriva do perdão, ou seja, ocorre após o ato de perdoar, o que não se verifica imediatamente, mas por meio de um processo em que, primeiro, aprende-se a perdoar as ofensas para, depois, encontrando-se completamente superadas as contendas, ser o indivíduo capaz de esquecê-las, como se nunca tivessem existido.

Este é o processo construtivo da misericórdia para com os nossos inimigos, como nos legou Allan Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo, ao elucidar que “a misericórdia é o complemento da mansuetude, pois os que não são misericordiosos também não são mansos e pacíficos. Ela consiste no esquecimento e no perdão das ofensas”.

Esquecer, sem perdoar, não é virtude, mas sim um indicativo de algum distúrbio de memória. Perdoar, sem esquecer a ofensa, por outro lado, é, sim, uma virtude e o caminho mais seguro para se alcançar o esquecimento misericordioso, aquele que não está ligado ao fato em si, à ofensa como realidade vivenciada – a qual nem se recomenda ser realmente esquecida –, mas sim com o esquecimento (no sentido de superação) do mal que nos foi feito, o qual não deve ser revivido, realimentado, ressentido, apenas lembrado como um instrumento, uma prova ou uma expiação que nos proporciona encontrar uma solução construtora de nossa evolução espiritual.

Em outras palavras, esquecer o mal sofrido, que decorre do perdão, é diferente de esquecer o fato ocorrido, que nada mais é do que uma experiência importante para o nosso progresso como ser eterno e, no mais das vezes, não necessita ser esquecido.

Da mesma forma, não querer o mal ao ofensor não é perdoar, mas faz parte do processo que leva ao perdão, pois não há como perdoar alguém lhe desejando mal. Perdão é ato de amor, logo, há de não se querer mal ao seu ofensor para que se consiga perdoá-lo verdadeiramente.

Por outro lado, querer bem ao ofensor não é, por si só, perdoar, mas quase sempre decorre do perdão, tal como o esquecimento, eis que é muito difícil, senão impossível, querer bem a alguém, com sinceridade, quando se guarda mágoas e ressentimentos. Nesses casos, a indiferença acaba por ser a tônica, o que também não é compatível com o perdão. Querer bem, em regra, é consequência do perdão concedido, encontrando-se o espírito desarmado das armadilhas do ego ferido e pronto para amar sem obstáculos.

Allan Kardec ressalta, no entanto, que o perdão verdadeiro é aquele incondicionado, com o que devemos concordar[12]. Condicionar o perdão a uma ação, a um comportamento, a uma conduta daquele que ofendeu não é perdoar, é, senão, humilhar, diminuir e colocar o desafeto como o único culpado, invertendo a responsabilidade pela decisão, de modo que o perdão passaria a depender dele, ofensor, e não de quem foi ofendido e deve perdoar a ofensa. 

O perdão incondicional é o único compatível com os ensinamentos do Cristo, porque perdoar é ato de amor, e amor não está condicionado a algo, ao contrário, é livre e libertador, sem limites, sem balizas.

Com efeito, o ato de perdoar tem o condão de libertar a alma, e não só daquele que é perdoado – o qual se livra dos grilhões da culpa (quando a sente) ou, ao menos, vivencia a experiência nobre do perdão em seu favor –, mas, principal e especialmente, daquele que perdoa, cujo espírito se verá livre de qualquer sentimento negativo e estará pronto para seguir em sua marcha de progresso e evolução. Nesse sentido, o perdão é inegavelmente um ato de extrema caridade, que reconforta o perdoado e ilumina aquele que perdoa.  

Aspecto importante a ser destacado, ainda, é o de que o perdão, como todo ato que parte do coração do homem, como ser espiritual, pode e deve ser aprendido e exercitado durante as diferentes vivências no plano corpóreo, tornando-se hábito que, burilado por meio dos valores morais mais nobres, transforma-se em sentimento, incorporado ao espírito como patrimônio moral perpétuo e inviolável.

O caminho nos foi legado pelo Cristo, ao nos ensinar a “amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. É o processo de refletir sobre o que Deus espera de nós, o perdão ou a manutenção da dor e da mágoa? Sobre o que gostaríamos de receber se estivéssemos no lugar o ofensor, o perdão ou o ressentimento e as dores?

Perdoar, por conseguinte, é uma resolução do coração, que nasce do espírito, uma decisão no sentido de superar as mágoas, as dores, as feridas, de sacudir a poeira e jogar para fora todas as sujeiras e entulhos da alma, a fim de reconstruir um novo caminho, um novo amanhã, baseado no amor e na misericórdia ao próximo.

Conclusão

O ensinamento do Cristo relativo ao amor aos nossos inimigos é, sem dúvida, um dos ricos e importantes do Evangelho, e mantém-se inequivocamente atual e universal, como todos os ensinamentos morais do Evangelho.

Por certo, esse postulado cristão não se restringe somente àquelas situações em que nos deparamos com inimizades capitais, graves e belicosas, mas, também, em face de todas as antipatias, malquerenças, infelicidades e mágoas que dedicamos a alguém ou, ainda, que cultivem em relação a nós, o que, em maior ou menor grau, envenena a alma e cria ambiente propício para doenças do espírito que refletirão no corpo físico.

O Espiritismo, como doutrina científica, filosófica e religiosa, muito tem contribuído para a divulgação e a melhor compreensão de temas tão importantes como o presentemente abordado, aos nos legar vitais lições da moral cristã, especialmente pelas obras do Codificador Allan Kardec, onde encontramos explicitado claramente que o amor a Deus a o amor ao próximo, inclusive ao inimigo, são os dois principais mandamentos do Cristo, definidores da moral que deve prevalecer em nosso planeta, a caminho do Mundo de Regeneração.

Em sua feição de Evangelho Redivivo, o Espiritismo revisita os ensinamentos do Cristo e nos mostra que o amor, em suas manifestações sublimes, em forma de perdão e de caridade, é o verdadeiro transformador de almas, que nos possibilita ver e compreender nossos inimigos como irmãos, e nossos problemas e sofrimentos como degraus de uma divina escada que nos permite a elevação do espírito em rumo da perfeição possível à nossa condição humana.

Amar ao próximo e aos nossos inimigos é, portanto, uma escolha íntima e o Espiritismo nos chama a decidir ainda hoje, pavimentando desde já o caminho da construção, na alma, do amor sublime e divino a que estamos todos destinados.

Não é simples e sem dificuldades esse caminho, mas cabe a nós, espíritas, elevarmos nossos pensamentos às esferas superiores, com humildade e devoção a Deus, e empregarmos o amor como bálsamo do bem e da caridade para com o próximo.

Assim, se “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João, I:1), Amar é o Verbo, e a vivência no amor e sua consagração ao próximo é passo inescapável a todos que caminham rumo à necessária evolução do Espírito.

Referências

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução Karine Rutpaulis. 6. ed. São Paulo: Mundo Maior Editora, 2012.

________. O Livro dos Espíritos. Tradução Sandra Keppler. 6. ed. São Paulo: Mundo Maior Editora, 2012.

[1] Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus;

[2] Mas a vós, que isto ouvis, digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam;

[3] KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução Karine Rutpaulis. 6. ed. São Paulo: Mundo Maior Editora, 2012, p. 54.

[4] Ibidem, p. 166.

[5] “O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei.”  (João 15:12).

[6] Ibidem, p. 152.

[7] Ibidem p. 164-165.

[8] O Livro dos Espíritos, questão 702. O instinto de conservação é uma lei da Natureza? “Sem dúvida. Todos os seres vivos o possuem, seja qual for o grau de sua inteligência. Em alguns, é puramente mecânico, em outros, é racional”. Questão 703. Com que objetivo Deus concedeu a todos os seres vivos o instinto de conservação? “Porque todos devem colaborar nos desígnios da Providência. Foi por isso que Deus lhes deu a necessidade de viver. A vida é necessária ao aperfeiçoamento dos seres; eles o sentem instintivamente sem sequer se aperceberem”.  KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução Sandra Keppler. 6. ed. São Paulo: Mundo Maior Editora, 2012, p. 331. 

[9] Ibidem, p. 164-165.

[10] Disponível em: https://goo.gl/7VZmEg. Acesso em 15/12/2017.

[11] Idem, p. 396.

[12]  Ibidem, p. 164. 

Nota

O autor é Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Professor da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Professor do Centro Universitário Anhanguera São Paulo – Campos Vila Mariana. Professor em cursos preparatórios para concursos públicos. Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal. Aluno do curso de Doutrina Espírita do Centro Espírita Nosso Lar Casas André Luiz.

O consolador – Especial.

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