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O perdão cômodo e mentiroso

Autora: Christina Nunes

Meu saudoso avô passou anos trancafiado num colégio interno de padres. Saiu de lá espírita – um fenômeno! Tenho este querido avô como um grande exemplo de livre-pensador, um homem de fibra valorosa, que em mais de uma situação na vida deu as costas a cobranças alheias sem se arredar dos seus objetivos mais caros e indubitavelmente válidos!

Mas quanto a este episódio em particular, certamente é fácil alcançar as suas determinantes. São as mesmas, sem nenhuma dúvida, que me levam hoje também a rejeitar energicamente determinados conceitos caducos quanto utópicos relacionados aos dogmas do catolicismo.

Em algum lugar escutei o absurdo – e a partir de então, com o decorrer do tempo, pude observar os efeitos lastimáveis da assimilação de uma tal distorção de valores na conduta de muita gente tida como de bem e esclarecida espiritualmente: “Perdão, só se pede a Deus! Só ele nos perdoa os pecados!” Com o horrível post scriptum de se alegar que não se faz necessário pedir desculpas a ninguém por algum erro cometido, porque isto implicaria em humilhação perante os outros.

Ora…, muito cômodo, de uma perspectiva individual…, tanto quanto desastroso do ponto de vista evolutivo!

É em razão de conceitos como este, que em nada auxiliam o ser humano na sua melhoria íntima com vistas à pacificação e harmonização maior entre os homens em meio ao atual pandemônio que grassa de um extremo ao outro do mundo, que podemos presenciar as contradições, os paradoxos: conheço gente que, sem falta, sagrado, em todos os fins de semana, se enclausura nas igrejas pontualmente para as missas dominicais. Todavia, uma hora antes ou depois apronta – e apronta feio! – com o semelhante! E nada de se enfiar a carapuça para o devido pedido de desculpas, na necessária demonstração de humildade perante o próximo e diante das próprias falhas e necessidades de aprimoramento interior!

Vamos convir que mais se parece esta alegação de que “só se deve pedir perdão a Deus” com um conveniente álibi, passível de nos sustentar no nosso orgulho empedernido e permanência nos enganos – assim como a criança mal-educada que se vê autorizada a aprontar o que bem entende com os outros porque, ao menor sinal das consequências adversas ao seu comportamento, logo acorrem mães e pais despreparados para passar-lhes as mãos na cabeça, endossando o injustificável desacerto de conduta!

Apanágio, pois, ao recrudescimento da irresponsabilidade humana para com os rumos da própria vida e dos destinos do mundo, em si! Pois se todos passam a pensar desta mesma forma, onde vamos parar?! Todos decidem que são autorizados a praticar o que der na telha, lesando ou prejudicando o semelhante com maiores ou menores implicações. E tudo que se tem a fazer depois é meter-se numa igreja e confessar-se a um padre – diga-se de passagem, humano como nós, está comprovado! – ou ajoelhar-se diante de um altar num ritual vazio de significados, pois que, destituído da capacidade de promover transformações para melhor, genuínas e definitivas, no caráter, para que tudo o mais esteja esquecido, superado! Então, o referido “pecador” sai dali purificado, limpo, quitado com a consciência, com Deus e com o seu próximo…, e passadas apenas duas horas, em muitas vezes, lá está o suposto redimido maltratando esposa ou filhos, ou lidando com outras pessoas sob o domínio das mesmas paixões desastrosas do ódio, do egoísmo e da impulsividade presentes antes de dirigir-se pela manhã à igreja para rezar a mesma oratória mecânica e destituída de autenticidade de sentimentos e de intenções, e no mais das vezes se preocupando, ainda no decurso do ritual religioso, com o que haverá de assistir à tarde na programação televisiva…

Cômodo. Imaturo… Infantil! Indigno de uma humanidade com pretensões a Novas Eras de paz e de renovação para um futuro onde todos – dizem! – haveriam de se estimar e de se respeitar mutuamente, sem mais fazer ao próximo o que não querem para si mesmos!

Mas foi o próprio Jesus Cristo quem nos deixou estas máximas, cujo significado é límpido, evidente: Deus não quer oferendas! Que primeiro se reconcilie com seus inimigos, para depois depositar a oferenda em meu altar!

O que acontece é que, reconciliar-se com o inimigo não implica naquela leitura também cômoda de se perdoar o que porventura nos tenham feito, ainda desta feita nos colocando como os mártires e pobres coitadinhos vitimizados pela humanidade vil – da nossa ótica! Reconciliar-se significa também, e é bem provável que muito mais, pedir perdão ao próximo pelos nossos muitos e eventuais erros de julgamento e de conduta, que não raro atingem os demais em cheio, prejudicando-lhes os percursos de vida, mesmo que não intencionalmente! Implica em se pôr o orgulho e a despótica vaidade de lado a fim de se ver com clareza e compreender de forma definitiva: não existe harmonização possível entre os homens de quaisquer latitudes geográficas sem a devida quota de consciência e humildade na hora de se admitir nossas imperfeições e dívidas para com os que nos rodeiam, corrigindo-as e sanando-as da melhor forma – e sendo estes que nos rodeiam, desde os nossos familiares mais próximos até os colegas do setor profissional, desde o mendigo com quem cruzamos na rua em estado absoluto e gélido de indiferença para com as suas rudes necessidades até o animal que maltratamos ou flagelamos de dentro da cegueira de conveniências materiais e econômicas!

Portanto, chega a humanidade a um ponto lastimável no qual, sem nenhuma dúvida, deve um milhão de pedidos de desculpas, desde a um sem-número de seres que nos acompanharam nas vidas sucessivas infindas e a quem prejudicamos sem o imprescindível reconhecimento e iniciativa de reconciliação, até ao planeta como um todo, depredado pela nossa incúria, e soberba, originada neste raciocínio autodestrutivo de que tudo, desde indivíduos quanto tudo o mais na Criação, nos está disponível para maltratarmos e explorarmos desrespeitosamente o tanto quanto quisermos…, pois que basta um pedido de desculpas a um Deus indistinto e mal compreendido para que tudo esteja consumado. E continuaremos indefinidamente na nossa obra nefanda de desamor para com a vida em nós mesmos e em todas as suas manifestações!

E recordar-se de que foi justo este mesmo Jesus, alegado por tais doutrinas horrendamente distorcidas, quem – do alto do martírio máximo do Calvário e ademais inocente, sem dever a ninguém nenhum ceitil – proferiu para seus algozes o petitório que até hoje os legionários e fariseus da era contemporânea, de dentro da sua cegueira orgulhosa quanto obtusa, ainda não conseguem expressar para a reconciliação final com o mundo e consequente harmonização amorosa entre todos os seres:

Pai, perdoai-os, pois que não sabem o que fazem!

Só esta mesma recordação, e diante do panorama mundial atual, mais de dois mil anos depois, é de molde a levar-nos a corar e a definhar de avexamento de nós mesmos e da nossa renitente delinquência espiritual!

Fica a reflexão. 

O consolador – Ano 5 – N 206

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