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O que o Espiritismo é; o que o Espiritismo não é

Autor: Rogério Coelho

Quem pretendesse fazer milagres pelo Espiritismo não passaria de ignorante

(…) Nunca exista entre vós quem consulte adivinhos, quem observe sonhos e agouros, quem use de malefícios, sortilégios, encantamentos, ou consultem os que têm Espírito pitônico e se dão a práticas de adivinhação interrogando os mortos

Deuteronômio, 18:10 e 12.

Algumas criaturas fanáticas e ingênuas, transidas de felicidade, utilizam-se dessas assertivas do Deuteronômio, pensando, com isso, lançar a definitiva e inapelável “pá de cal” no Espiritismo.

Como poderia Moisés proibir algo que só nasceria milhares de anos depois de sua época? Se ele profligou a comunicação com os mortos tinha lá os seus motivos que mostraremos mais adiante. Por outro lado, ele mesmo, o próprio Moisés, revogou, de forma inarticulada, tal lei, ao manifestar-se a Jesus em Espírito, juntamente com Elias, no Monte Tabor, tendo tal fato como testemunhas Pedro, Tiago e João.

Se o Espiritismo se enquadrasse na proibição de Moisés, qual seria o sentido e valor destas palavras do Evangelho (Atos, 2:17 e 18):

– “Eu repartirei meu Espírito por toda a carne: – vossos filhos e filhas profetizarão; os jovens terão visões e os velhos terão sonhos. Nesses dias repartirei meu Espírito por todos os meus servidores e servidoras, e eles profetizarão”.

Se o Espiritismo estivesse incurso na proibição de Moisés, por que João, o Evangelista, recomendaria mais tarde (?): “não creiais em todos os Espíritos. Experimentai se os Espíritos são de Deus.” (João, Epístola 1ª, 4:1).

Necessário não confundir a lei civil e transitória criada por Moisés, própria e adequada para reger os destinos daquele povo insubmisso, com a Lei Divina e Eterna que rege de forma imutável o destino da humanidade de todos os tempos.

Hoje, com as luzes da Ciência e com o esclarecimento espírita, sabemos que os Espíritos são as almas dos mortos e não os evocamos senão para receber conselhos dos bons, moralizar os maus e relacionar-nos com os seres amados.

Para abonar nosso raciocínio podemos recorrer aos ensinamentos de Allan Kardec, exarados no livro básico do Espiritismo intitulado “O Céu e o Inferno”, mormente nos capítulos X e XI da primeira parte, em que, entre outras colocações extremamente esclarecedoras, propõe:

– (…) A mais essencial de todas as disposições para evocar é o recolhimento, quando desejarmos tratar com Espíritos sérios. Com a fé e o desejo do bem, mais aptos nos tornamos para evocar Espíritos Superiores. Elevando nossa alma por alguns instantes de concentração no momento de evocá-los, identificamo-nos com os bons Espíritos, predispondo a sua vinda[1].

– Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir Espíritos, pois a matéria ação alguma exerce sobre eles. Nunca um bom Espírito aconselha tais absurdos. A virtude dos talismãs só pode existir na imaginação de pessoas simplórias. (Vide: O Evangelho segundo o Espiritismo “in fine”.)

– Não há fórmulas sacramentais para evocar Espíritos. Quem quer que pretendesse estabelecer uma fórmula, poderia ser tachado de usar de charlatanismo, visto que para os Espíritos puros a fórmula nada vale. A evocação deve, porém, ser feita sempre em nome de Deus. (Vide “O Livro dos Médiuns”, 2ª parte, cap. XVII.)

– Os Espíritos que prefixam entrevistas em lugares lúgubres e a horas indevidas, são os que se divertem à custa de quem os ouve. É sempre inútil e muitas vezes perigoso ceder a tais sugestões. Inútil porque nada se ganha além de uma mistificação, e perigoso, não pelo mal que possam fazer os Espíritos, mas pela influência que tais fatos podem exercer sobre cérebros fracos.(1)

– Não há dias nem horas mais especialmente propícios às evocações. Isso, como tudo que é material, é completamente indiferente aos Espíritos, além de ser supersticiosa a crença em tais influências. Os momentos mais favoráveis são aqueles em que o evocador pode abstrair-se melhor das suas preocupações habituais, calmo de corpo e Espírito.(1)

Se os que falam do Espiritismo, sem conhecê-lo, procurassem estudá-lo, poupariam trabalhos de imaginação e alegações que só servem para demonstrar a sua ignorância e má-vontade. Para conhecimento das pessoas estranhas à ciência, diremos que não há horas mais propícias, umas que outras, como não há dias nem lugares, para comunicar com os Espíritos. Diremos mais: que não há fórmulas nem palavras sacramentais ou cabalísticas para evocá-los; que não há necessidade alguma de preparo ou iniciação; que é nulo o emprego de quaisquer sinais ou objetos materiais para atrai-los ou repeli-los, bastando para tanto o pensamento; e, finalmente, que os médiuns recebem deles comunicações sem sair do estado normal, tão simples e naturalmente como se tais comunicações fossem ditadas por uma pessoa vivente. Só o charlatanismo poderia emprestar às comunicações formas excêntricas, enxertando-lhes ridículos acessórios. (Vide “O Que é o Espiritismo”, cap. II, nº 49.)

– O futuro é vedado ao homem por princípio, e só em casos raríssimos e excepcionais é que Deus faculta a sua revelação. Se o homem conhecesse o futuro, por certo negligenciaria o presente e não agiria com liberdade. Absorvidos pela ideia da fatalidade de um acontecimento, ou procuramos conjurá-lo ou não nos preocupamos com ele. Deus não permitiu que assim fosse, a fim de que cada qual concorresse para a realização dos acontecimentos mesmos, que porventura desejaria evitar. Ele permite, no entanto, a revelação do futuro, quando o conhecimento prévio de uma coisa não estorva, mas facilita a realização, induzindo a procedimento diverso do que se teria em tal circunstância. (Vide “O Livro dos Espíritos”, parte 3ª, capítulo X.)

– Os Espíritos não podem guiar as descobertas nem investigações científicas. A Ciência é obra do gênio e só deve ser adquirida pelo trabalho, pois é por este que o homem progride. Que mérito teríamos nós se, para tudo saber, apenas bastasse interrogar os Espíritos? Por esse preço, todo imbecil poderia tornar-se sábio. O mesmo se dá relativamente aos inventos e descobertas da indústria. Chegado que seja o tempo de uma descoberta, os Espíritos encarregados da sua marcha procuram o homem capaz de levá-la a bom termo e inspiram-lhe as ideias necessárias, isto de molde a não lhe tirar o respectivo mérito, que está na elaboração e execução dessas ideias. Assim tem sido com todos os grandes trabalhos da inteligência humana. Os Espíritos deixam cada indivíduo na sua esfera: do homem apenas apto para lavrar a terra não fazem depositários dos segredos de Deus, mas sabem arrancar da obscuridade aquele que se mostra capaz de secundar-lhes os desígnios. Não vos deixeis, dominar pela ambição e pela curiosidade, em terreno alheio ao Espiritismo, que tais fitos não tem, pois com eles só conseguireis as mais ridículas mistificações. (Vide “O Livro dos Médiuns”, 2ª parte, cap. XXVI.)

– Os Espíritos não podem concorrer para a descoberta de tesouros ocultos. Os superiores não se ocupam de tais coisas e só os zombeteiros podem entreter-se com elas, já indicando tesouros que o mais das vezes não existem, já apontando sítios diametralmente opostos àqueles em que realmente existem. Esta circunstância tem, contudo, uma utilidade, que é a de mostrar que a verdadeira fortuna reside no trabalho. Quando a Providência tem destinado a alguém quaisquer riquezas ocultas, esse alguém as encontrará naturalmente; do contrário não, nunca. (Vide “O Livro dos Médiuns”, 2ª. parte, cap. XXVI.)

– Esclarecendo-nos sobre as propriedades dos fluidos – agentes e meios de ação do Mundo Invisível constituindo uma das forças e potências da Natureza – o Espiritismo nos dá a chave de inúmeros fatos e coisas inexplicadas e inexplicáveis de outro modo, fatos e coisas que passaram por prodígios, em outras eras. Do mesmo modo que o magnetismo, ele nos revela uma lei, senão desconhecida, pelo menos incompreendida, ou então, para melhor dizer, efeitos de todos os tempos conhecidos, pois que de todos os tempos se produziram, mas cuja lei se ignorava e de cuja ignorância brotava a superstição. Conhecida essa lei, desaparece o maravilhoso e os fenômenos entram para a ordem das coisas naturais. Eis por que os Espíritos não produzem milagres, fazendo girar as mesas ou escrever os mortos, como milagre não faz o médico em restituir à vida o moribundo.

Quem pretendesse fazer milagres pelo Espiritismo não passaria de ignorante, ou então de mero prestidigitador. (“O Livro dos Médiuns” 1ª. parte, cap. II.)

Pessoas há que fazem das evocações uma ideia muito falsa: há mesmo quem acredite que os mortos evocados se apresentam com todo o aparelho lúgubre do túmulo. Tais suposições podem ser atribuídas ao que vemos no teatro ou lemos nos romances e contos fantásticos, onde os mortos aparecem amortalhados com o chocalhar dos ossos. O Espiritismo, que nunca fez milagres, também não faz esse, pois que jamais fez reviver um corpo morto. O Espírito fluídico, inteligente, esse não baixa à campa com o grosseiro invólucro, que lá fica definitivamente. Separa-se dele no momento da morte, e nada mais têm de comum entre si. (“O Que é o Espiritismo”, cap. II, nº. 48.)

Ampliamos essas citações para mostrar que os princípios do Espiritismo não têm relação alguma com os da magia. Assim, nem Espíritos às ordens dos homens; nem meios de constrangê-los; nem sinais ou fórmulas cabalísticas; nem descobertas de tesouros; nem processos para enriquecer, e tampouco milagres ou prodígios, adivinhações e aparições fantásticas: nada, enfim, do que constitui o fim e os elementos essenciais da magia. O Espiritismo não só reprova tais coisas como demonstra a impossibilidade e ineficácia delas. Não há, afirmamo-lo ainda uma vez, analogia alguma entre os processos e fins da magia e os do Espiritismo; só a ignorância e a má-fé poderão confundi-los… Dessa forma, tal erro não pode prevalecer, uma vez que os princípios espíritas não se furtam ao exame, e aí estão formulados inequívoca e claramente para todos”.

Acompanhemos o raciocínio esclarecedor de Allan Kardec exarado no capítulo X da primeira parte do livro “O Céu e o Inferno”: “(…) o Espiritismo não admite a manifestação de quaisquer Espíritos, bons ou maus, sem a permissão de Deus. Diz mais: que mediante tal permissão e correspondendo ao apelo dos vivos, os Espíritos não se põem à disposição destes.

O Espírito evocado vem voluntariamente, ou é constrangido a manifestar-se?

Obedecendo à vontade de Deus, isto é, à lei que rege o Universo, Ele julga da utilidade ou inutilidade da sua manifestação, o que constitui uma prerrogativa do seu livre-arbítrio.

O Espírito Superior não deixa de vir sempre que é evocado para um fim útil, só se recusando a responder quando em reunião de pessoas pouco sérias que levem a coisa em ar de gracejo[2].

– Pode o Espírito evocado recusar-se a vir pela evocação que lhe fazem? 

– Perfeitamente, visto que tem o seu livre-arbítrio. Podeis acaso acreditar que todos os seres do Universo estejam à vossa disposição? E vós mesmos vos julgais obrigados a responder a todos quantos pronunciam o vosso nome? Mas quando digo que o Espírito pode recusar-se, subordino essa negativa ao pedido do evocador, por isso que um Espírito inferior pode ser constrangido por um superior a manifestar-se.

Tanto os Espíritas estão convencidos de que nada podem sobre os Espíritos diretamente, sem a permissão de Deus, que dizem, quando evocam: “rogamos a Deus Todo-Poderoso permitir que um bom Espírito se comunique conosco, bem como aos nossos anjos de guarda assistir-nos e afastarem os maus Espíritos”.

E em se tratando de evocação de um Espírito determinado[3]: – “rogamos a Deus Todo-Poderoso permitir que tal Espírito se comunique conosco”, etc…

As acusações formuladas pela Igreja e demais detratores contra as evocações, não atingem, portanto, o Espiritismo, porém as práticas da magia, com a qual este nada tem de comum. O Espiritismo condena tanto quanto aqueles as referidas práticas, ao mesmo tempo em que não confere aos Espíritos superiores um papel indigno deles, nem algo pergunta ou pretende obter sem a permissão de Deus.

Certo, pode haver quem abuse das evocações ou delas faça um jogo, ou lhes desnature o caráter providencial em proveito de interesses pessoais, e ainda pode existir quem por ignorância, leviandade, orgulho ou ambição se afaste dos verdadeiros princípios da Doutrina; o verdadeiro Espiritismo, o Espiritismo sério os condena também, do mesmo modo que a verdadeira religião condena os crentes hipócritas e os fanáticos. Portanto, não é lógico nem razoável imputar ao Espiritismo abusos que ele é o primeiro a profligar, e os erros daqueles que o não compreendem. Antes de formular qualquer acusação, convém saber se é justa. Assim diremos: a censura da Igreja e demais detratores do Espiritismo recai nos charlatães, nos especuladores, nos praticantes da magia e sortilégios, e com razão. Quando a crítica religiosa ou céptica, dissecando abusos, condena o charlatanismo, não faz mais do que realçar a pureza da sã doutrina, auxiliando-a no expurgo de maus elementos e facilitando-nos a tarefa. O erro da crítica está no confundir o bom e o mau, o que muitas vezes sucede pela má-fé de alguns e ignorância do maior número”.

Analisemos, agora, com Kardec, os motivos que levaram Moisés, a proibir a comunicação com os “mortos”: “(…) Ele queria que o seu povo abandonasse todos os costumes adquiridos no Egito, onde as evocações estavam em uso e facilitavam abusos, como se infere destas palavras de Isaías[4]: “o Espírito do Egito se aniquilará de si mesmo e eu precipitarei seu conselho; eles consultarão seus ídolos, seus adivinhos e seus mágicos”. 

Os israelitas não deviam contratar alianças com as nações estrangeiras, e sabido era que naquelas nações que iam combater, encontrariam as mesmas práticas. Moisés devia, pois, politicamente, inspirar aos hebreus aversão a todos os costumes que pudessem ter semelhanças e pontos de contato com o inimigo. Para justificar essa aversão, preciso era que apresentasse tais práticas como reprovadas pelo próprio Deus, e daí estas palavras: – “o Senhor abomina todas essas coisas e destruirá, à vossa chegada, as nações que cometem tais crimes”. 

A proibição de Moisés era assaz justa, porque a evocação dos mortos não se originava nos sentimentos de respeito, afeição ou piedade para com eles, sendo antes um recurso para adivinhações, tal como nos augúrios e presságios explorados pelo charlatanismo e pela superstição. Essas práticas, ao que parece, também eram objeto de comércio, e Moisés, por mais que fizesse, não conseguiu desentranhá-la dos costumes populares.

As seguintes palavras do profeta justificam o asserto [5]: – “quando vos disserem: consultai os mágicos e adivinhos que balbuciam encantamentos, respondei: – Não consulta cada povo o seu Deus? E aos mortos se fala do que compete aos vivos? Sou eu quem aponta a falsidade dos prodígios mágicos; quem enlouquece os que se propõem adivinhar, quem transtorna o espírito dos sábios e confunde a sua ciência vã.” (64:25).

“Que esses adivinhos, que estudam o Céu, contemplam os astros e contam os meses para fazer predições, dizendo revelar-vos o futuro, venham agora vos salvar. – Eles tornaram-se como a palha, e o fogo os devorou; não poderão livrar suas almas do fogo ardente; não restarão das chamas que despedirem, nem carvões que possam aquecer, nem fogo ao qual se possam sentar. – Eis ao que ficarão reduzidas todas essas coisas das quais vos tendes ocupado com tanto afinco: os traficantes que convosco traficam desde a infância foram-se, cada qual para seu lado, sem que um só deles se encontre que vos tire os vossos males”. (67:13 a 15).

Inequivocamente, naqueles tempos, as evocações tinham por fim a adivinhação, ao mesmo tempo em que constituíam comércio associadas às práticas de magia e sortilégio, acompanhadas até de sacrifícios humanos. Moisés tinha razão, portanto, proibindo tais coisas e afirmando que Deus as abominava.

Essas práticas supersticiosas perpetuaram-se até à Idade Média, mas hoje a razão predomina, ao mesmo tempo em que o Espiritismo veio mostrar o fim exclusivamente moral, consolador e religioso das relações de além-túmulo.

Uma vez, porém, que os espíritas não sacrificam criancinhas nem fazem libações para honrar deuses; uma vez que não interrogam os astros, mortos e áugures para adivinhar a verdade sabiamente velada aos homens; uma vez que repudiam traficar com a faculdade de comunicar com os Espíritos; uma vez que os não move a curiosidade nem a cupidez, mas um sentimento de piedade, um desejo de instruir-se e melhorar-se, aliviando as almas sofredoras; uma vez que assim é, porque o é – a proibição de Moisés não lhes pode ser extensiva.

Se os que clamam injustamente contra os espíritas se aprofundassem mais no sentido das palavras bíblicas, reconheceriam que nada existe de análogo, nos princípios do Espiritismo, com o que se passava entre os hebreus. A verdade é que o Espiritismo condena tudo que motivou a interdição de Moisés; mas os seus adversários, no afã de encontrar argumentos com que rebatam as novas ideias, nem se apercebem que tais argumentos são negativos, por serem completamente falsos.

A lei civil contemporânea pune todos os abusos que Moisés tinha em vista reprimir. Contudo, se ele pronunciou a pena última contra os delinquentes, é porque lhe faltavam meios mais brandos para governar um povo tão indisciplinado. Essa pena, ao demais, era muito prodigalizada na legislação mosaica, pois não havia muito onde escolher os meios de repressão. Sem prisões nem casas de correção no deserto, Moisés não podia graduar a penalidade como se faz em nossos dias, além do que o seu povo não era de natureza a atemorizar-se com penas puramente disciplinares. Carecem, portanto, de razão os que se apoiam na severidade do castigo para provar o grau de culpabilidade da evocação dos mortos. Conviria, por consideração à lei de Moisés, manter a pena capital em todos os casos nos quais ele a prescrevia? Por que, então, reviver com tanta insistência este artigo, silenciando ao mesmo tempo o princípio do capítulo que proíbe aos sacerdotes a posse de bens terrenos e partilhar de qualquer herança, por que o Senhor é a própria herança? [6]

Há duas partes distintas na lei de Moisés: a Lei de Deus, promulgada sobre o Sinai, e a lei civil ou disciplinar, apropriada aos costumes e caráter do povo. Uma dessas leis é invariável, ao passo que a outra se modifica com o tempo, e a ninguém ocorre que possamos ser governados pelos mesmos meios porque o eram os judeus no deserto. (…) Tudo tinha sua razão de ser na legislação de Moisés, uma vez que tudo ela prevê em seus mínimos detalhes, mas a forma, bem como o fundo, adaptava-se às circunstâncias ocasionais. Se Moisés voltasse em nossos dias para legislar sobre uma nação civilizada, decerto não lhe daria um código igual ao dos hebreus.

 (…) Não veio Jesus modificar a lei mosaica, fazendo da Sua lei o código dos cristãos? Não disse ele: – “vós sabeis o que foi dito aos antigos, tal e tal coisa, e eu vos digo tal outra coisa?” Entretanto Jesus não proscreveu, antes sancionou a Lei do Sinai, da qual toda a Sua doutrina moral é um desdobramento… Ora, Jesus nunca aludiu em parte alguma à proibição de evocar os mortos, quando este era um assunto bastante grave para ser omitido nas Suas prédicas, mormente tendo Ele tratado de outros assuntos secundários.

Serão os detratores do Espiritismo mais judeus que cristãos? Convém notar que, de todas as religiões, precisamente a judia é que faz menos oposição ao Espiritismo, porquanto não invoca a lei de Moisés contrária às relações com os mortos, como fazem as seitas cristãs.

Mas temos ainda outra contradição: – se Moisés proibiu evocar os mortos, é que estes podiam vir, pois do contrário inútil fora a proibição. Ora, se os mortos podiam vir naqueles tempos, também o podem hoje; e se são os Espíritos de mortos os que vêm, não são exclusivamente demônios. Demais, Moisés de modo algum fala nesses últimos”.   

No livro básico do Espiritismo intitulado “O Céu e o Inferno”, mais precisamente no capítulo XI da 1ª parte, item 8 e seguintes, Allan Kardec ensina, com seu habitual descortino intelectual e lógico: “(…) se Moisés proibiu evocar os mortos, é que eles podiam vir, pois do contrário inútil fora a proibição. Ora, se os mortos podiam vir naqueles tempos, também o podem hoje; e se são Espíritos de mortos os que vêm não são exclusivamente demônios. Demais, Moisés de modo algum fala nesses últimos.

É duplo, portanto, o motivo pelo qual não se pode aceitar logicamente a autoridade de Moisés na espécie, a saber: – primeiro, porque a sua lei não rege o Cristianismo; e segundo, porque é imprópria aos costumes da nossa época. Mas, suponhamos que essa lei tem a plenitude da autoridade por alguns outorgadas, e ainda assim ela não poderá, como vimos, aplicar-se ao Espiritismo. É verdade que a proibição de Moisés abrange a interrogação dos mortos, porém de modo secundário, como acessória às práticas de feitiçaria. O próprio vocábulo interrogação, junto aos de adivinho e agoureiro, prova que entre os hebreus as evocações eram um meio de adivinhar; entretanto, os espíritas só evocam os mortos para receber os sábios conselhos e obter alívio em favor dos que sofrem, nunca para conseguir revelações ilícitas. Certo, se os hebreus usassem das comunicações como fazem os espíritas, longe de proibi-las, Moisés acoroçoá-las-ia, porque o seu povo só teria que lucrar. 

 É certo que alguns críticos jucundos ou mal-intencionados têm descrito as reuniões espíritas como assembleias de nigromantes ou feiticeiros, e os médiuns como astrólogos e ciganos, isto porque talvez quaisquer charlatães tenham afeiçoado tais nomes às suas práticas, que o Espiritismo não pode, aliás, aprovar.

Em compensação, há também muita gente que faz justiça e testemunha o caráter essencialmente moral e grave das reuniões sérias. Além disso, a Doutrina, em livros ao alcance de todo o mundo, protesta bem alto contra os abusos, para que a calúnia recaia sobre quem merece. (…) Que os cépticos neguem a manifestação das almas, vá, visto que nelas não acreditam; mas o que se torna estranhável é ver encarniçar-se contra os meios de provar a sua existência, esforçando-se por demonstrar a impossibilidade desses meios, aqueles mesmos cujas crenças repousam na existência e no futuro das almas! Parece que seria mais natural acolherem como benefícios da Providência os meios de confundir os cépticos com provas irrecusáveis, pois que são os negadores da própria religião. Os que têm interesse na existência da alma deploram constantemente a avalancha da incredulidade que invade, dizimando-o, o rebanho de fiéis: entretanto, quando se lhes apresenta o meio mais poderoso de combatê-la, recusam-no com tanta ou mais obstinação que os próprios incrédulos. Depois, quando as provas avultam de modo a não deixar dúvidas, eis que procuram como recurso de supremo argumento a interdição do assunto, buscando, para justificá-la, um artigo da lei mosaica do qual ninguém cogitara, emprestando-lhe, à força, um sentido e aplicação inexistentes. E tão felizes se julgam com a descoberta, que não percebem que esse artigo é ainda uma justificativa da Doutrina Espírita. 

Todas as razões alegadas para condenar as relações com os Espíritos não resistem a um exame sério. Pelo ardor com que se combate nesse sentido é fácil deduzir o grande interesse ligado ao assunto. Daí a insistência… Em vendo esta cruzada de todos os cultos contra as manifestações, dir-se-ia que delas se atemorizam.

O verdadeiro motivo poderia bem ser o receio de que os Espíritos muito esclarecidos viessem instruir os homens sobre os pontos que se pretende obscurecer, dando-lhes conhecimento, ao mesmo tempo, da certeza de um outro mundo, a par das verdadeiras condições para nele serem felizes ou desgraçados. A razão deve ser a mesma por que se diz à criança: “Não vá lá, que há lobisomem.” Ao homem dizem: “Não chameis os Espíritos: – São o diabo.”

Não importa, porém. – Impedem os homens de evocá-los, mas não poderão impedi-los de vir aos homens para levantar a lâmpada de sob o alqueire.

O culto que estiver com a verdade absoluta nada terá que temer a luz, pois a luz faz brilhar a verdade e o demônio nada pode contra ela.

Repelir as comunicações de além-túmulo é repudiar o meio mais poderoso de instruir-se, já pela iniciação nos conhecimentos da Vida Futura, já pelos exemplos que tais comunicações fornecem. A experiência nos ensina, além disso, o bem que podemos fazer, desviando do mal os Espíritos imperfeitos, ajudando os que sofrem a desprenderem-se da matéria e a se aperfeiçoarem. Interdizer as comunicações é, portanto, privar as almas sofredoras da assistência que lhes podemos e devemos dispensar.

As seguintes palavras de um Espírito resumem admiravelmente as consequências da evocação, quando praticada com fim caritativo: “todo Espírito sofredor e desolado vos contará a causa de sua queda, os desvarios que o perderam. Esperanças, combates, terrores, remorsos, desesperos e dores, tudo vos dirá. Ao ouvi-lo, dois sentimentos vos acometerão: o da compaixão e o do temor! Compaixão por ele e temor por vós mesmos.

E se o seguirdes nos seus queixumes, vereis então que Deus jamais o perde de vista, esperando o pecador arrependido e estendendo-lhe os braços logo que procure regenerar-se. Do culpado vereis, enfim, os progressos benéficos para os quais tereis a felicidade e a glória de contribuir, com a solicitude e o carinho do cirurgião acompanhando a cicatrização da ferida que pensa diariamente”.

O Espiritismo é, na verdade, o “Consolador Prometido”[7] por Jesus “que o Pai enviaria mais tarde em Seu nome e nos ensinaria todas as coisas, fazendo-nos recordar tudo o que Ele tinha dito”.

Se, portanto, o Espírito de Verdade tinha de vir mais tarde ensinar todas as coisas, é que o Cristo não dissera tudo; se ele vem relembrar o que o Cristo disse, é que o que Este disse foi esquecido ou mal compreendido[8].

O Espiritismo vem, na época predita, cumprir a promessa do Cristo: preside ao seu advento o Espírito de Verdade. Ele chama os homens à observância da lei: ensina todas as coisas fazendo compreender o que Jesus só disse por parábolas.

Advertiu o Cristo: “ouçam os que têm ouvidos para ouvir.” O Espiritismo vem abrir os olhos e os ouvidos, porquanto fala sem figuras, nem alegorias; levanta o véu intencionalmente lançado sobre certos mistérios. Vem finalmente trazer a consolação suprema aos deserdados da Terra e a todos os que sofrem, atribuindo causa justa e fim útil a todas as dores. Disse o Cristo: “bem-aventurados os aflitos, pois que serão consolados.”

Mas, como há de alguém se sentir ditoso por sofrer, se não sabe por que sofre? O Espiritismo mostra a causa dos sofrimentos nas existências anteriores e na destinação da Terra, onde o homem expia o seu passado. Mostra o objetivo dos sofrimentos, apontando-os como crises salutares que produzem a cura e como meio de depuração que garante a felicidade nas existências futuras.

Referências

[1] – KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 71.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2003, 2ª parte, cap. XXV.

[2] – KARDEC, Allan. O Livro dos Médiuns. 71.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2003, 2ª. parte, cap. XXV.

[3] – Idem, ibidem2ª parte, cap. XVII, 203.

[4] – Isaías, 19:3.

[5] – Isaías, 8:19.

[6] – Deuteronômio, 27:1 e 2.

[7] – Jo., 14:15 a 26.

[8] – KARDEC, Allan. O Evangelho Seg. o Espiritismo. 129.ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 2009, cap. VI, item 4.

O consolador – Ano 13 – N 646 e 647 – Especial

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