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O que seria Pureza Doutrinária segundo o Espiritismo?

Autor: Alexandre Fontes da Fonseca

A pureza doutrinária, interpretada, como disse Jesus, em Espírito e Verdade, nada mais é do que vivenciar o Espiritismo em toda e qualquer circunstância

Introdução: A necessidade de clareza de linguagem

Um dos maiores cientistas que a humanidade conheceu, Werner Heisenberg (1901-1976), foto ao lado, descobridor do princípio de incerteza e um dos criadores de uma formulação matricial da Mecânica Quântica, é dono da seguinte afirmativa1,2: “(a respeito das filosofias de Democritus e Platão) (…) Pelo contrário, a vantagem principal que nós podemos deduzir a partir do progresso da ciência moderna é aprender o quão cautelosos nós temos que ser com a linguagem e com o significado das palavras”. E, falando  a  respeito  das  discussões entre Sócrates e seus opositores, Heisenberg diz que2,3: “… Sócrates tinha consciência de quantos equívocos podiam ser engendrados pela falta de cuidado no uso da linguagem; o quão importante é usarem-se termos precisos e elucidarem-se conceitos antes de empregá-los”. 

A questão sobre a clareza da linguagem também foi analisada por Kardec. O item I da Introdução de O Livro dos Espíritos4, a respeito dos vocábulos espírita Espiritismo, apresenta: “Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras”. Os Espíritos superiores também se preocuparam com isso e, em resposta à questão número 28 de O Livro dos Espíritos4, disseram que “As palavras pouco nos importam. Compete-vos a vós formular a vossa linguagem de maneira a vos entenderdes. As vossas controvérsias provêm, quase sempre, de não vos entenderdes acerca dos termos que empregais, por ser incompleta a vossa linguagem para exprimir o que não vos fere os sentidos”. A parte destacada é válida não só para as questões espíritas, mas para todo o tipo de conteúdo doutrinário, filosófico, científico e religioso.  

Nesse sentido, em busca da clareza da linguagem, vamos iniciar a presente análise pelo significado das palavras que compõem a expressão “Pureza Doutrinária” (PD para simplificar, daqui em diante).  

O termo pureza expressa, simplesmente, a ideia de “algo” que não apresenta mistura com outras “coisas”. Essa definição, porém, carece de sentido se não definirmos, também, o significado desse “algo” e das “coisas” que são diferentes do “algo”. Por exemplo, a água destilada pode ser considerada pura no sentido de que ela consiste apenas de um tipo de substância, sem a mistura ou presença de outras substâncias. Mas a água potável também pode ser chamada de pura desde que definamos o grau de pureza da água em termos da qualidade para o consumo. A água potável não é pura se considerarmos o grau de pureza em termos das substâncias contidas nela, assim como a água destilada não seria pura no sentido da qualidade para o consumo. Portanto, o sentido da palavra pureza não pode ser levado em conta de forma dissociada do conceito próprio da “coisa” que se analisa.  

O conceito de pureza também precisa estar presente num contexto de aplicação. Por exemplo, ao questionarmos se a água que eu estou tomando é pura ou não, estamos introduzindo uma aplicação prática e, portanto, atribuindo um valor ou objetivo para o conceito de pureza. Isso significa que a análise quanto à “pureza” de alguma “coisa” não tem valor pela “coisa” em si (que é pura por natureza), mas sim quando nós a empregamos em nossas vidas. Precisamos ter consciência se aquilo que estamos utilizando é de fato o que se pensa que é.  

O termo doutrinária é um adjetivo que faz referência do “algo” a algum tipo de doutrina ou conjunto de princípios que definem ou regem uma determinada doutrina.  

Adotaremos essas definições em nossa análise por serem bastante acessíveis ao entendimento das pessoas em geral. A expressão pureza doutrinária, portanto, significa a característica de tudo que uma pessoa ou grupo de pessoas usa ou realiza de acordo com uma determinada doutrina. Como consequência direta, o significado de pureza doutrinária não pode ser obtido SEM CONHECER o que diz a doutrina em questão.  

O que ensina a doutrina espírita?

Se PD depende do que diz a Doutrina Espírita, deduzimos de forma direta que PD nada mais é do que a vivência ou a prática dos ensinamentos contidos na Doutrina Espírita. Mas, então, o que ensina a Doutrina Espírita? Que exemplos, práticas e vivências o Espiritismo ensina? Busquemos NO ESPIRITISMO, a resposta. Segundo a questão número 625 de O Livro dos Espíritos 4: 625. Qual o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e modelo?
Resposta – “Jesus”.

Kardec: Para o homem, Jesus constitui o tipo da perfeição moral a que a Humanidade pode aspirar na Terra. Deus no-lo oferece como o mais perfeito modelo e a doutrina que ensinou é a expressão mais pura da lei do Senhor, porque, sendo ele o mais puro de quantos têm aparecido na Terra, o Espírito Divino o animava. Quanto aos que, pretendendo instruir o homem na lei de Deus, o têm transviado, ensinando-lhes falsos princípios, isso aconteceu por haverem deixado que os dominassem sentimentos demasiado terrenos e por terem confundido as leis que regulam as condições da vida da alma, com as que regem a vida do corpo. Muitos hão apresentado como leis divinas simples leis humanas estatuídas para servir às paixões e dominar os homens. 

Concluímos daqui, que o Espiritismo ensina que nossas práticas e vivências devem estar de acordo com os ensinamentos de Jesus.  

O primeiro e mais importante ensinamento de Jesus está contido no Evangelho de Mateus, capítulo XXII, dentre os versículos 34 e 40: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito. – Esse é o maior e primeiro mandamento. – E o segundo, que é semelhante ao primeiro: Amarás a teu próximo, como a ti mesmo. – Toda a Lei e os profetas se acham contidos nesses dois mandamentos”. Vemos aqui que o Espiritismo ensina a agir em conformidade com a Lei de Amor, mandamento mais importante deixado e exemplificado por Jesus.  

Entretanto, de modo a percebermos que amar não significa “aceitar” tudo o que nos chega, vejamos uma outra recomendação de Jesus (MATEUS 5:37): “Mas seja o vosso falar: sim, sim; não, não”. Para comentar esta passagem chamamos o Espírito Emmanuel, em psicografia de Francisco C. Xavier (Cap. 80 da ref. 5): “O ‘sim’ pode ser muito agradável em todas as situações, todavia, o ‘não’, em determinados setores da luta humana, é mais construtivo. Satisfazer a todas as requisições do caminho é perder tempo e, por vezes, a própria vida. Tanto quanto o ‘sim’ deve ser pronunciado sem incenso bajulatório, o ‘não’ deve ser dito sem aspereza. Muita vez, é preciso contrariar para que o auxílio legítimo se não perca; urge reconhecer, porém, que a negativa salutar jamais perturba. O que dilacera é o tom contundente no qual é vazada”. A partir desta recomendação de Jesus e do comentário de Emmanuel fica claro para nós que o Espiritismo não ensina a concordar sempre com tudo e com todos e que em nome do Amor e da Fraternidade podemos sim discordar. Aliás, Bezerra de Menezes, recentemente, disse6: “A vós, sob inspiração dos Guias Espirituais do Movimento Espírita na Terra, está destinada a tarefa infatigável de porfiar no bem, de exercitar a compaixão e a caridade, mas não conivir, em nome da tolerância, com o erro nem com o crime”. Porém, isso tem que ser feito em tom de respeito, de forma salutar e não em “tom contundente” de quem se crê detentor de toda a Verdade. Isso significa que sempre deve haver diálogo e respeito entre aquele que discorda e aquele que propõe algo diferente.            

A necessidade do Espiritismo

Uma questão importantíssima é saber quais os benefícios do Espiritismo para a humanidade. Que tipo de problemas o Espiritismo pode evitar e que tipo de contribuição o Espiritismo pode oferecer ao progresso da humanidade? Responderemos a essas questões utilizando um outro ensinamento de Jesus (JOÃO 8:32): “Conhecereis a verdade e ela vos libertará”. É importante, também, rever alguns trechos do item II da Introdução de O Evangelho segundo o Espiritismo7, sobre a “Autoridade da Doutrina Espírita”:  

(9º. Parágrafo) Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares.

(2ª. frase, 13º. Parágrafo) (Sobre receber comunicações de muitos centros espíritas sérios) Essa observação é que nos tem guiado até hoje e é a que nos guiará em novos campos que o Espiritismo terá de explorar. 

(14º. Parágrafo) Essa verificação universal constitui uma garantia para a unidade futura do Espiritismo e anulará todas as teorias contraditórias. Aí é que, no porvir, se encontrará o critério da verdade.

(16º. Parágrafo) O princípio da concordância é também uma garantia contra as alterações que poderiam sujeitar o Espiritismo às seitas que se propusessem apoderar-se dele em proveito próprio e acomodá-lo à vontade. 

(19º. Parágrafo) Daí a necessidade da maior prudência em dar-lhes publicidade; e, caso se julgue conveniente publicá-las, importa não as apresentar senão como opiniões individuais, mais ou menos prováveis, porém, carecendo sempre de confirmação. Essa confirmação é que se precisa aguardar, antes de apresentar um princípio como verdade absoluta, a menos que se queira ser acusado de leviandade ou de credulidade irrefletida.

Primeiro Jesus diz que devemos buscar a Verdade porque ela nos libertará, e em seguida vemos que Kardec demonstra que o princípio da concordância universal entre os Espíritos é uma garantia para nos encaminharmos à Verdade. Aqui reside uma das coisas mais importantes do Espiritismo: sua divulgação! Notemos que a atitude de prudência em divulgar ideias que não tenham sido obtidas a partir do critério da concordância universal dos Espíritos é defendida pelo codificador com o apoio dos Espíritos superiores. Notemos, também, que Kardec afirma que devemos nos precaver de sermos “acusados de leviandade ou de credulidade irrefletida”. Ninguém diz que Kardec está sendo indelicado, antifraterno ou faltando com a tolerância quando usa essas palavras. É preciso ficar claro que a prudência não é falta de fraternidade ou tolerância, mas sim respeito àquele que busca a casa espírita para conhecer o Espiritismo.  

Para não esquecermos nenhum detalhe, vejamos o que está contido no item 9 do Cap. XV de O Evangelho segundo o Espiritismo7: 

Fora da verdade não há salvação equivaleria ao Fora da Igreja não há salvação e seria igualmente exclusivo, porquanto nenhuma seita existe que não pretenda ter o privilégio da verdade. (…) (o Espiritismo) não dizFora do Espiritismo não há salvação;e, como não pretende ensinar ainda toda a verdade, também não diz: Fora da verdade não há salvação, pois que esta máxima separaria em lugar de unir e perpetuaria os antagonismos. 

O Espiritismo não defende a ideia de que o Espiritismo possui o monopólio da Verdade. O nosso dizer deve ser “sim sim, não não”, como Jesus ensinou, mas não podemos defender a ideia de que não existem outros caminhos para se chegar à verdade. O Espiritismo diz respeito apenas ao Movimento Espírita. O Espiritismo não pode afirmar nada sobre as outras filosofias, exceto o fato de elas serem outras. O Espiritismo não condena o estudo particular de qualquer outra doutrina, mas orienta que estudos são mais apropriados a determinados fins dentro da Casa ou Centro Espírita. Em nome do Espiritismo não se pode expulsar ou criticar o irmão estudioso e interessado nos conceitos de outras doutrinas. Porém, oEspiritismo ensina como discernir a respeito da utilização de ideias e conceitos de outras doutrinas ou filosofias nas atividades espíritas para, assim, não correr o risco dessas ideias desviarem os participantes dos principais objetivos do Espiritismo. Em apoio a isso, vamos transcrever o que os Espíritos ensinaram na questão 628 de O Livro dos Espíritos4

628. Por que a verdade não foi sempre posta ao alcance de toda gente?

Resposta – “Importa que cada coisa venha a seu tempo. A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se a ela, pouco a pouco; do contrário, fica deslumbrado. Jamais permitiu Deus que o homem recebesse comunicações tão completas e instrutivas como as que hoje lhe são dadas. Havia, como sabeis, na Antiguidade alguns indivíduos possuidores do que eles próprios consideravam uma ciência sagrada e da qual faziam mistério para os que, aos seus olhos, eram tidos por profanos. Pelo que conheceis das leis que regem estes fenômenos, deveis compreender que esses indivíduos apenas recebiam algumas verdades esparsas, dentro de um conjunto equívoco e, na maioria dos casos, emblemático. Entretanto, para o estudioso, não há nenhum sistema antigo de filosofia, nenhuma tradição, nenhuma religião, que seja desprezível, pois em tudo há grandes verdades que, se bem pareçam contraditórias entre si, dispersas que se acham em meio de acessórios sem fundamento, facilmente coordenáveis se vos apresentam, graças à explicação que o Espiritismo dá de uma imensidade de coisas que até agora se vos afiguraram sem razão alguma e cuja realidade está hoje irrecusavelmente demonstrada. Não desprezeis, portanto, os objetos de estudo que esses materiais oferecem. Ricos eles são de tais objetos e podem contribuir grandemente para vossa instrução.”

Notem que os bons Espíritos, ao mesmo tempo que afirmam que as diferentes doutrinas espiritualistas possuem “acessórios sem fundamento” que as fazem parecer “contraditórias entre si”, dizem que o estudo delas não deve ser desprezado pois elas também contêm “verdades esparsas”. Mas isso não significa que devemos importar práticas de outras doutrinas já que, como os bons Espíritos também disseram na mesma questão acima, “a ciência sagrada (…) dentro de um conjunto equívoco e, (…), emblemático …”, e esses sistemas das filosofias antigas “(…) facilmente coordenáveis se vos apresentam, graças à explicação que o Espiritismo dá (…)”. Se o Espiritismo, como eles disseram, contém comunicações mais “completas e instrutivas”, qual a vantagem de utilizarmos conceitos e práticas oriundas de outras doutrinas espiritualistas que se acham dispersos e “em meio de acessórios sem fundamento”? Por acaso um médico opera um paciente utilizando os procedimentos do Séc. XV só porque algumas verdades eram conhecidas na época?  

O que seria pureza doutrinária segundo o Espiritismo?

Podemos, agora, responder à questão apresentada no título deste artigo. Pureza Doutrinária, dentro do Movimento Espírita, nada mais é do que agir de acordo com o que ensina o Espiritismo.  

Não faz sentido verificar se a Doutrina Espírita é pura, pois isso é redundante. Não há necessidade de defender algo que já é bem constituído. PD não tem, portanto, efeito sobre a Doutrina Espírita em si. PD se aplica ao Movimento Espírita porque este representa a atitude das pessoas que o constituem e que precisam ter consciência se aquilo que estudam, praticam e vivenciam reflete os ensinamentos da Doutrina Espírita. Mas, como vimos nas sessões anteriores, o Espiritismo não condena estudos e práticas só por serem diferentes, mas pede discernimento e estudo para que tenhamos consciência do que estamos fazemos. Diante de novidades, é importante primeiro investigá-las de modo cuidadoso e profundo para não corrermos o risco de assimilarmos algo que não corresponda à verdade.  

Apesar disso parecer simples, a falta da clareza da linguagem (vide Introdução) levou a entendimentos equivocados a respeito da PD. Em decorrência disso, críticas se levantam à PD e, diante do exposto até aqui, a PD é, justamente, a solução dos questionamentos dos que a defendem e a combatem.  

A explicação para os equívocos realizados em nome da PD pode ser deduzida do que o Espiritismo ensina. No item 5 do Cap. VI do Evangelho segundo o Espiritismo7, o Espírito de Verdade assim se expressa com relação ao Cristianismo:  “No Cristianismo encontram-se todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram”. Da mesma forma, são de origem humana os erros que se têm cometido em nome da PD. O erro não está em defender PD, pois PD significa agir em conformidade com os ensinamentos espíritas que, por sua vez, são a expressão mais pura do Evangelho. Os companheiros que defendem a PD podem agir em desacordo com o seu real significado, e os companheiros que consideram a PD um excesso de zelo prejudicial ao desenvolvimento do Movimento Espírita assim o pensam em razão de equívocos e, talvez, abusos realizados em nome da PD. Como o Espiritismo nos ensina que não devemos julgar, em nome da PD também não se pode julgar. A Bondade Divina nos situou nas posições em que melhor podemos progredir e o erro, muitas vezes, faz parte do processo, não nos cabendo o julgamento do próximo. O que nos cabe é a defesa do que nós entendemos ser o correto, de acordo com o Espiritismo, e por isso devemos defender uma PD com amor, com vivência real do Evangelho à luz do Espiritismo.  

Exemplos de Kardec 

Nessa seção apresentaremos dois exemplos significativos de Kardec sobre sua postura doutrinária, como espírita, perante algumas novidades. Esses exemplos servem como referência de PD segundo o Kardec. 

Primeiro, vamos citar a reação de Kardec ao ler as obras de Roustaing, Os Quatro Evangelhos. Kardec, em matéria na Revista Espírita de junho de 1866, assim se expressa quanto à sua apreciação geral: “É um trabalho considerado, e que tem, para os Espíritas, o mérito de não estar, sobre nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada por O Livro dos Espíritos e o dos médiuns”. Esse comentário é importante pois mostra a imparcialidade de Kardec frente às novidades, ao mesmo tempo que revela o exemplo de leitura crítica sem desrespeito.  

Adiante, ele demonstra sua prudência dizendo que: “Consequente com o nosso princípio, que consiste em regular a nossa caminhada sobre o desenvolvimento da opinião, não daremos, até nova ordem, às suas teorias, nem aprovação, nem desaprovação, deixando ao tempo o cuidado de sancioná-las ou de contradizê-las. Convém, pois, considerar essas explicações como opiniões pessoais aos Espíritos que as formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas, e que, em todos os casos, têm necessidade da sanção do controle universal, e até mais ampla confirmação não poderiam ser consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita”. Esse comentário é um exemplo de aplicação da PD perante o novo assunto: ao invés de lançar anátema, Kardec se abstém de aprovar ou não, aguardando o desenvolvimento futuro em que os Espíritos poderiam confirmar ou não o conteúdo das obras de Roustaing.  

Kardec esclarece que se de um lado Os Quatro Evangelhos não se afastam dos princípios contidos em O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, diferente se dá com as aplicações desses princípios a certos fatos. Daí Kardec cita o detalhe a respeito da proposta, contida na obra de Roustaing, de que o corpo de Jesus não era de carne, mas sim fluídico. Kardec, sobre isso, então, diz: “Sem dúvida, não há aí nada de materialmente impossível para quem conhece as propriedades do envoltório perispiritual; sem nos pronunciar pró ou contra essa teoria diremos que ela é ao menos hipotética, e que, se um dia ela fosse reconhecida errada, a base sendo falsa, o edifício desmoronaria”. Notem a honestidade de Kardec em reconhecer que a proposta não é de todo impossível. Mas, ao mesmo tempo, reconhece a importância dessa questão para todo um conjunto de explicações a respeito dos fenômenos realizados por Jesus. Apesar de conhecer objeções a essa proposta, e de considerar que ela é desnecessária para explicar os fatos realizados por Jesus, Kardec não a prejulga ou condena e propõe que se aguarde o futuro. Além disso, ele deixa claro que a obra contém outros pontos bons e que pode ser “consultada proveitosamente pelos Espíritas sérios”. 

Passados dois anos, Kardec publica A Gênese9 (1868) que retoma o assunto, agora, com mais estudo e conhecimento sobre a questão. No Cap. XV, itens de 64 a 67, sob o título “Desaparecimento do Corpo de Jesus”, Kardec mostra que além de desnecessária, a hipótese do corpo fluídico de Jesus não condiz nem com os fatos nem com a análise moral da situação. Reproduziremos apenas a conclusão de Kardec, ao final do item 66 do referido capítulo: “Jesus, pois, teve, como todo homem, um corpo carnal e um corpo fluídico, que é atestado pelos fenômenos materiais e pelos fenômenos psíquicos que lhe assinalaram a existência”.         

O segundo exemplo que queremos mencionar decorre apenas de um comentário de Kardec sobre a proposta de alguns médicos de sua época de que a Homeopatia poderia curar males morais. Kardec, no artigo do mês de Março de 1867 da Revista Espírita expõe longo argumento sobre o assunto. Novamente, em resposta a uma carta de um médico homeopata, no número de Dezembro de 1867, Kardec novamente expõe seu argumento. Entretanto, ao final da matéria de Dezembro de 1867, Kardec diz que “Como em tudo, os fatos são mais concludentes do que as teorias, e são eles, em definitivo, que confirmam ou derrubam estas últimas, desejamos ardentemente que o Sr. doutor Grégory publique um tratado especial prático da homeopatia aplicada ao tratamento das moléstias morais, a fim de que a experiência possa se generalizar e decidir a questão”. Sabemos que, nos dias de hoje, diversos grupos espíritas realizam a prática de terapias alternativas dentro do centro espírita. Realmente, o Espiritismo não trata de terapias alternativas, nem mesmo de Homeopatia, mas o comentário de Kardec acima contém implicitamente uma orientação segura e de acordo com o caráter progressivo do Espiritismo, para quem deseja se dedicar à prática de tais terapias dentro do Movimento Espírita. O destaque em negrito resume a orientação de Kardec: ao invés de simplesmente usar tais terapias alternativas, aqueles que se interessam por elas devem buscar realizar trabalhos sérios de pesquisa, buscando “publicar tratados práticos” sobre o assunto, que possam ser analisados por outros estudiosos permitindo que a “experiência possa se generalizar e decidir” sobre sua validade como prática dentro do contexto das atividades espíritas. Acreditamos que tem faltado ao Movimento Espírita um pouco do espírito investigativo de Kardec e que se manifesta claramente na colocação acima. Se ele fosse contrário à pesquisa, ele não diria que os fatos é que poderiam decidir sobre a validade de uma questão.  

No caso específico da Homeopatia, cumpre esclarecer que Kardec apenas questionou a ideia dela poder curar males morais, o que estaria em desacordo com a mensagem do Evangelho de que somos responsáveis pelos nossos atos. Isso não significa que, em si, a Homeopatia não pudesse ser usada pelos bons Espíritos no trabalho de ajuda à saúde das pessoas. A Homeopatia é um tipo de terapia alternativa à alopatia que é aceita pelos conselhos de medicina no Brasil e no mundo, tem sido pesquisada de modo sério perante as ciências ortodoxas, e tem o apoio da Espiritualidade através do fato de que muitos centros espíritas contam com trabalhos de receituário mediúnico. Acreditamos que a generalização do uso de outras terapias ou práticas dentro do Movimento Espírita requer semelhante trabalho de pesquisa (material e espiritual), para que elas não se tornem práticas místicas, isto é, feitas sem saber como, por quê e para quê.  

Entretanto, diante do fato de que poucas pessoas conhecem os requisitos de um trabalho de pesquisa mais profundo (Kardec os conhecia muito bem), sugerimos àqueles que se interessam pelas terapias alternativas que contactem pesquisadores profissionais, que sejam espíritas, e que possam orientar um trabalho de pesquisa genuíno e que possa gerar os resultados de valor científico. Quem quiser conhecer uma introdução ao trabalho de pesquisa científica pode consultar as aulas de Ciência e Espiritismo10 publicadas entre os Boletins do GEAE de 483 a 500, especialmente as aulas de números 14 a 18. A realização desse tipo de trabalho investigativo (que enfatizamos ter sido um dos fortes exemplos de Kardec perante as novidades) não só estaria em sintonia com o Espiritismo, mas removeria a capa de misticismo em que muitas dessas práticas se envolvem. E, se ao final de vários trabalhos de pesquisa, se concluir que determinadas terapias não são necessárias dentro do contexto de atividades espíritas, não há nada do que se envergonhar em reconhecer e modificar atitudes.  

Ainda servem de exemplos interessantes, a postura prudente e imparcial de Kardec com relação ao surgimento de romances espíritas11,12 e o artigo de Kardec “Espiritismo Independente”, no número de Abril de 1866 da Revista Espírita.  

Conclusão

Para ajudar no entendimento do que seria pureza doutrinária, segundo o próprio Espiritismo, utilizamos, ao longo do texto, a expressão “o Espiritismo” com destaque em negrito e no formato itálico. Isso foi feito com o propósito de realizar o seguinte teste: o significado de pureza doutrinária pode ser entendido bastando substituir a expressão “o Espiritismo”, pela expressão “pureza doutrinária”. Esse seria, a nosso ver, a melhor forma de entendermos o significado de pureza doutrinária segundo o Espiritismo. 

De modo a percebermos a preocupação da Espiritualidade com a fidelidade doutrinária, transcrevemos abaixo uma recomendação de Bezerra de Menezes6: “Enfrentais no momento dificuldades que se multiplicam. Tendes pela frente desafios inumeráveis. Lobos vestem-se de ovelhas para ameaçarem o rebanho. Permanecei vigilantes como estais demonstrando, a fim de passarmos às gerações do futuro a Doutrina dos Espíritos na pulcritude e nobreza com que a recebemos de Allan Kardec e dos Mensageiros que a compuseram”. Outras mensagens recentes da espiritualidade têm chamado a atenção para o cuidado com o Espiritismo como, por exemplo, a recente mensagem chamando os Espíritas à “fidelidade aos projetos do Espírito de Verdade”13

Se PD significa agir de acordo com o Evangelho, vamos incentivar a PD em nossas atividades espíritas. Os equívocos em torno do conceito de PD podem ser resumidos em duas palavras: orgulho e egoísmo. Orgulho e egoísmo estão por detrás das afirmativas em tom “rude”, do desrespeito e desprezo por quem pensa diferente e, também, ocorre com quem recebe críticas contrárias às suas ideias e não se dispõe a meditar sobre elas e discuti-las de modo saudável. Propomos a criação de uma campanha pela DEFESA DA PUREZA DOUTRINÁRIA COM AMOR (isso é redundante, mas ajuda a entender o objetivo principal). Não precisamos abrir mão da Doutrina Espírita para sermos fraternos uns com os outros e nos mantermos cada vez mais unidos.   

Nota

O autor agradece aos professores Dra. Maristela Olzon D. de Souza, Prof. Dr. Sylvio D. de Souza e ao amigo Carlos Iglesias (Editor do GEAE) pela leitura crítica deste trabalho e por valiosas discussões e sugestões.

Referências

[1] Frase original, em inglês, obtida do capítulo IV da referência [2]: “On the contrary, the chief profit we can derive in these problems from the progress of modern science is to learn how cautious we have to be with language and with the meaning of the words”.

[2] K. Wilber, Quantum Questions, Shambhala Publications, Boston, (2001).

[3] Frase original, em inglês, obtida do capítulo IV da referência [2]: “… Socrates was aware of how many misunderstandings can be engendered by a careless use of language, how important it is to use precise terms and to elucidate concepts before employing them”.

[4] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, Editora FEB, 76a. Edição, (1995).

[5] Emmanuel, Psicografia de Francisco C. Xavier, Pão Nosso, Editora FEB, 18a. Edição (1999).

[6] B. de Menezes, Psicofonia de Divaldo P. FrancoReformadorDezembro pp. 446-447 (2005).

[7] A. Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, Editora FEB, 112a. Edição (1996).

[8] A. Kardec, Os Evangelhos ExplicadosRevista Espírita Jornal de Estudos Psicológicos Junho p. 19 (1866).

[9] A. Kardec, A Gênese, Editora FEB, 36ª Edição (1995).

[10] A. F. Da Fonseca, Aulas de Ciência e EspiritismoBoletim do GEAE nos. 483 500 (2004-2005). Internet: http://www.geae.inf.br/pt/boletins/colecao.php.

[11] A. Kardec, Os Romances EspíritasRevista Espírita Jornal de Estudos Psicológicos Dezembro p. 3 (1865).

[12] A. Kardec, Notícias Bibliográficas, Espírita, Revista Espírita Jornal de Estudos Psicológicos Março p. 17 (1866).

[13] Camilo, Psicografia de Raul TeixeiraReformadorJaneiro pp. 30-31 (2006).

Publicado originalmente no Boletim do GEAE n. 529, 15 de Setembro de 2007 – http://www.geae.inf.br/pt/boletins/geae529.html.

Alexandre Fontes da Fonseca é professor de Física na Universidade Federal Fluminense, em Volta Redonda (RJ).

O consolador – Ano 4 – N 161 e 162 – Especial

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