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Olá, meu irmão

Autor: Irmão X (espírito)

— A disposição amiga — acentuava Cipriano Neto — é verdadeiro tônico espiritual. Não raro, envenenamos o coração, à força de insistir na máscara sombria. Má catadura é moléstia perigosa, porquanto as enfermidades não se circunscrevem ao corpo físico. Quantos negócios de muletas, quantas atividades nobres interrompidas, em virtude do mau humor dos responsáveis? Claro que ninguém se deixe absorver pelos malandros de esquina, mas o respeito e a afabilidade para com as criaturas honestas, seja onde for, constituem alguma coisa de sagrado, que não esqueceremos sem ferir a nós mesmos.

À frente da pequena assembleia, toda ouvidos, Cipriano, com a graça de sua privilegiada inteligência, continuou, após leve pausa:

— Na Terra, o preconceito fala muito alto, abafando vozes sublimes da realidade superior.

Nesse capítulo, tenho a minha experiência pessoal, bastante significativa.

Meu amigo calou-se, por alguns momentos, vagueou o olhar muito lúcido, através do horizonte longínquo, como a vasculhar o passado, e prosseguiu:

— É quase inacreditável, mas o meu fracasso em Espiritismo não teve outra causa. Não ignoram vocês que meu coração de pai, dilacerado pela morte do filho querido, fora convocado à Doutrina dos Espíritos, ansioso de esclarecimento e consolação. Banhado de conforto sublime, senti que minhas lágrimas de desesperação se transformaram em orvalho de agradecimento à bondade de Deus. Meu filho não morrera. Mais vivo que nunca, endereçava-me carinhosas palavras de amor. Identificara-se de mil modos. Não havia lugar à dúvida. Inclinei-me, então, à Doutrina renovadora. Saciado pela água viva de santas consolações, não sabia como agradecer à fonte. Foi aí que recordei as minhas possibilidades intelectuais. Não seria justo servir ao Espiritismo, através da palavra ou da pena? Poderia escrever para os jornais ou falar em público. Profundamente reconhecido à nova fé, atendi à primeira sugestão de um amigo e dispus-me a fazer uma conferência. Anunciou-se o feito e, no dia aprazado, compacta assistência esperou-me a confissão. Seduzido pela beleza do Espiritismo Evangélico, discorri longamente sobre a caridade. Aplausos, abraços, sorrisos e felicitações. No círculo dos meus companheiros de literatura, porém, o assunto fizera-se obrigatório. Voltando à Avenida, no dia imediato ao acontecimento, meu esforço foi árduo para convencer os confrades de letras de que não me achava louco. Infelizmente, porém, minha decisão não se filiava senão à vaidade. Pronunciara a conferência como se o Espiritismo necessitasse de mim. Admitia, no fundo, que minha presença honrara, sobremaneira, o auditório e que a codificação kardequiana em mim encontrara prestigioso protetor. Desse modo, alardeava suma importância em minhas palestras novas. Citava a antiguidade clássica, recorria aos grandes filósofos, mencionava cientistas modernos. Quando nos encontrávamos, meus colegas e eu, no ápice das discussões preciosas, eis que surge o Elpídio, velho conhecido meu e antigo tintureiro em Jacarepaguá. Sapatos rotos, calças remendadas, cabelos despenteados, rosto suarento, abeirou-se de mim e estendeu-me a destra, exclamando alegre:

— Olá, meu irmão! Meus parabéns!… Fiquei muito satisfeito com a sua conferência!

Entreolharam-se os meus amigos, admirados.

E confesso que respondi à saudação efusiva, secamente, meneando levemente a cabeça e sentindo-me deveras humilhado.

Em vista do meu silêncio, o tintureiro despediu-se, mostrando enorme desapontamento.

— “É de sua família?” — indagou um companheiro mais irônico.

— “Estes senhores espiritistas são os campeões da ingenuidade!” — exclamou outro circunstante.

Enraiveci-me. Não era desaforo semelhante homem do povo chamar-me “irmão”, ali, em plena Avenida, diante dos colegas de tertúlias acadêmicas? Estaria, então, obrigado a relacionar-me com toda espécie de vagabundos? Não seria aquilo irmanar-me a rebotalhos de gente, na via pública?

O incidente criou em mim vasto complexo de inferioridade.

Cegavam-me, ainda, velhos preconceitos sociais e a ironia dos companheiros calou-me fundo, no espírito. A ausência de afabilidade e a incompreensão grosseira dominaram-me por completo. O fermento da negação trabalhou-me o íntimo, levedando a massa de minhas disposições mentais. Resultado? Voltei à aspereza antiga e, se cuidava de doutrina, confinava-me a reduzido círculo doméstico. Não estimava a companhia ou a intimidade daqueles que considerava inferiores. Os anos, todavia, correm metodicamente, alheios à nossa vaidade e ignorância, e impuseram-me a restituição do organismo cansado ao seio acolhedor da terra. Sabem vocês, por experiência própria, o que nos acontece a essa altura da existência humana. Gritos estentóricos de familiares, pavor de afeiçoados, ataúde a recender aromas de flores das convenções sociais. Em meio da perturbação geral, senti que sono brando se apoderava de mim. Nunca pude saber quantos dias gastei no repouso compulsório. Despertando, porém, debalde clamei por meu filho bem-amado. Sabia perfeitamente que abandonara a esfera carnal e ansiava por reencontrar-lhe o carinho. Deixei a residência antiga, ferido de amargosas preocupações. Atravessei ruas e praças, de alma opressa. Atingi a Avenida, onde me dava ao luxo de palestrar sobre ciência e literatura. E ali mesmo, junto ao aristocrático Café, divisei alguém que não me era estranho às relações individuais. Não tive dificuldades no reconhecimento. Era o Elpídio, integralmente transformado, evidenciando nobre posição espiritual, trocando ideias com outras entidades da vida superior. Não mais os sapatos velhos, nem o rosto suarento, mas singular aprumo, aliado a expressão simpática e bela, cheia de bondade e compreensão.

Aproximei-me, envergonhado. Quis dizer qualquer coisa que me revelasse a angústia, mas, obedecendo a impulso que eu jamais soube explicar, apenas pude repetir as antigas palavras dele:

— “Olá, meu irmão! Meus parabéns!”

Longe, todavia, de imitar-me o gesto grosseiro e tolo de outro tempo, o generoso tintureiro de Jacarepaguá abriu-me os braços, contente, e exclamou com sincera alegria:

— Ó meu amigo, que satisfação! Venha daí, vou conduzi-lo ao seu filho!

Aquela bondade espontânea, aquele fraternal esquecimento de minha falta eram por demais eloquentes e não pude evitar as lágrimas copiosas!…

Nossa pequena assembleia de desencarnados achava-se igualmente comovida. Cipriano calou-se, enxugou os olhos úmidos e terminou:

— A experiência parece demasiadamente humilde; entretanto, para mim, representou lição das mais expressivas. Através dela, fiquei sabendo que a afabilidade é mais que um dever social, é alguma coisa de Deus que não subtrairemos ao próximo, sem prejudicar a nós mesmos.

Nota

O conto acima, psicografado por Francisco Cândido Xavier, faz parte do livro Contos Desta e Doutra Vida.

Obra completa: https://www.febeditora.com.br/pontos-e-contos

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