Autor: Paulo Henrique de Figueiredo
Atualmente, a questão da homossexualidade está amplamente presente no debate cultural. Com o passar das décadas, o preconceito e o ódio, apesar de ainda presentes, estão progressivamente se restringindo, e, ao menos a aceitação, já está presente nos hábitos cotidianos. Notícias episódicas da mídia relatam cenas de ataques e intolerância, no entanto, muito mais amplamente reconhecido é o fato de que os casais homossexuais podem agir com naturalidade em muitas áreas públicas, lutar por direitos iguais nas instâncias do poder, debater a questão abertamente; o que seria inaceitável em séculos anteriores.
O nazismo é um marco histórico que demonstra quanto o preconceito e a ideia de supremacia faz do homem um animal doente, enfurecido pela raiva, aceitando a perseguição aos inocentes em nome de uma falsa “superioridade”. Contagiando inclusive as multidões, que permaneceram inertes frente aos abusos criminosos de seus dirigentes. Esse fenômeno, porém, não se restringiu à perseguição aos judeus, narrado pelo holocausto, mas também a outros grupos, como os homossexuais, considerados doentes pelos nazistas. Marcados em sua roupa por um triangulo rosa invertido, nos campos de concentração eles foram tratados por médicos nazistas que tentavam “curá-los” por métodos brutais e perversos, como injeções de hormônio masculino e frequência forçada a prostíbulos criados para tal objetivo. Os “curados” eram enviados para combater os russos, absolvidos pelo “bom comportamento”. Os demais, cerca de 5 a 15 mil, foram mortos nas câmaras de gás.
Em momento mais recuado, no século 19 vivido por Kardec, frente ao domínio social das classes burguesas após a revolução francesa, a distinção entre sexos ganhava importância para justificar e impor diferenças entre os comportamentos femininos e masculinos, usadas explicação para as exigências daquela nova sociedade. O preconceito estava presente na ciência quando se buscava legitimar uma superioridade masculina como sendo biologicamente natural, baseada no senso comum da diferença entre os “gêneros”. Cabia à mulher, como “sexo frágil”, conquistar um bom casamento, cuidar dos filhos e da casa, ficando longe de qualquer função pública. Cabia ao homem usufruir do poder dado pela natureza ao “sexo forte”. Uma falsa teoria, objetivando explicar pela ciência o que, em verdade, se trata de uma distorção cultural. Enquanto na universidade as possibilidades da ciência abriam grandes perspectivas para o futuro entusiasmando os rapazes, as mulheres eram completamente afastadas do estudo acadêmico, mantidas sob uma educação antiquada, limitante. É importante lembrar: saber é poder! Louisa Garrett, deu o seguinte depoimento:
“Permanecer solteira era considerado uma desgraça e aos trinta anos uma mulher que não fosse casada era chamada de velha solteirona. Depois que seus pais morriam, o que elas podiam fazer, para onde poderiam ir? Se tivessem um irmão, poderiam viver em sua casa, como hóspedes permanentes e indesejados. Algumas tinham que se manter e, então, as dificuldades apareciam. A única ocupação paga aberta a essas senhoras era a de governantas, em condições desprezadas e com salários miseráveis. Nenhuma das profissões eram abertas as mulheres; não havia mulheres nos gabinetes governamentais; nem mesmo trabalho de secretaria era feito por elas”.
E sobre a educação nas instituições de ensino no século 19, Louisa explicou:
“Os pais acreditavam que uma educação séria para suas filhas era algo supérfluo: modos, música e um pouco de francês seria o suficiente para elas. Aprender aritmética não ajudará minha filha a encontrar um marido, esse era um pensamento comum. Uma governanta em casa, por um breve período, era o destino habitual das meninas. Seus irmãos deviam ir para escolas públicas e universidades, mas a casa era considerada o lugar certo para suas irmãs. Alguns pais mandavam suas filhas para escolas, mas boas escolas para garotas não existiam. Os professores não tinham boa formação e não eram bem-educados. Nenhum exame público (para escolas) aceitava candidatas mulheres”.
É preciso mergulhar no passado, por meio dos depoimentos e descrições de fontes primárias para recuperar como era a cultura nesse período, pois nossas referências atuais são completamente diferentes. Nas escolas da atualidade, meninos e meninas agem igualmente, recebem os mesmos tratamentos e oportunidades. O mesmo ocorre nas universidades, e, pouco a pouco, as mulheres vão ganhando espaço nos esportes, na política, e demais cenários sociais. Todavia, no século 19 tudo isso era impensável. Poucas mulheres tinham acesso a uma educação primária, apenas as pertencentes às famílias mais abastadas, as quais, ainda assim, encontravam o seguinte ambiente escolar, no depoimento de Teresa Billington, em sua autobiografia de 1884:
“Nós nos sentávamos e ficávamos silenciosas em nossas fileiras de carteiras, aprendíamos dos livros e nossas tarefas eram corrigidas por uma freira, que era a professora naquele momento, a partir das respostas na parte final de um livro similar ao nosso… Nós tínhamos longos períodos de instrução religiosa… Sexta feira a tarde era devotada exclusivamente a comportamento. Os Modos fazem uma dama nos era dito, não o dinheiro ou o ensino, não a beleza. Então praticávamos como abrir uma porta, entrar e sair de um cômodo; a trazer uma carta, uma mensagem, uma bandeja ou um presente; a pedir permissão às mães de nossas amigas para que elas pudessem participar de uma festa; a receber visitas na ausência de nossos pais, e assim por diante!”
Ou seja, nesse tempo, a mulher era destinada à procriação e a servir ao homem, e sua melhor qualidade estava em ser submissa. Como vimos, uma radical distinção se opunha ao se adotar o conceito de gêneros. Esse já é um problema fundamental a ser debatido. E quanto ao tema deste artigo, a homossexualidade? Foi desde essa época, com o auxílio de uma ciência preconceituosa e equivocada, que o homossexual passou a ser qualificado numa categoria de inversão doentia, antinatural e perversa: a aberração de ser homem por natureza, mas comportar-se como a inferior mulher, subvertendo as funções sociais consideradas naturais. Uma degeneração, perversidade, monstruosidade. O estudo de J. F. Costa, A Face e o Verso: estudos sobre o homoerotismo II (São Paulo: Escuta, 1995), define essa situação do século 19:
“Sua inversão será perversão porque seu corpo de homem será portador da sexualidade feminina que acabara de ser criada. O invertido apresenta um duplo desvio: sua sensibilidade nervosa e seu prazer sexual eram femininos. Se sexo foi, por isso mesmo, definido como contrario aos interesses da reprodução biológica”.
A existência do homossexual era referida como “sodomia”, “pecado nefando”, “pederastia”. O autor de “O retrato de Dorian Grey”, Oscar Wilde (1854-1900), por ter se apaixonado pelo lorde inglês Alfred Douglas, filho do marquês de Queensberry, sofreu duramente as consequências de sua ousadia. Em 1895, o marquês foi ao tribunal acusando o escritor de homossexualidade. Em meio à sua defesa, Oscar Wilde escreveu:
“Tal amor é tão mal compreendido neste século que se admite descrevê-lo como o ‘amor que não ousa dizer seu nome’. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição. Não há nada nele que seja antinatural. O mundo não compreende que seja assim. Zomba dele e às vezes, por causa dele, coloca alguém no pelourinho.”
Oscar Wilde, que sempre negou as acusações, foi condenado a dois anos de trabalhos forçados pela prática de “indecência grave”. Sua família o abandonou, seus filhos mudaram de sobrenome. Depois de cumprir a pena, o escritor foi para o exílio em Paris. Estava execrado socialmente, falido, solitário e debilitado fisicamente. Foi morar em hotéis baratos, e, aos 46 anos, morreu, sendo primeiramente enterrado como indigente. Apenas décadas depois é que veio a repercussão internacional, a exposição na imprensa, e a visibilidade tornou o caso de Wilde um marco na luta pelos direitos dos homossexuais.
Foi nesse ambiente cultural que Allan Kardec elaborou a ciência espírita, estabelecendo o diálogo entre os homens e os espíritos, formalizando na Doutrina Espírita os ensinamentos dos espíritos superiores. A Revista Espírita, publicada e elaborada pessoalmente por ele todos os meses desde 1858, era o laboratório onde se ensaiavam os temas, ouvindo as opiniões dos pesquisadores espíritas e as mensagens espirituais recebidas por centenas de médiuns em todo o mundo.
Em abril de 1862, Kardec evocou o senhor Sanson, um espírita da Sociedade de Paris, recém-desencarnado, e lhe fez a seguinte pergunta:
“Os Espíritos não têm sexo; entretanto, como há poucos dias ainda era homem, tende em vosso novo estado antes a natureza masculina do que a natureza feminina? Ocorre o mesmo com um Espírito que tivesse deixado seu corpo há muito tempo?”
E, por meio do médium, Sanson respondeu:
“Não temos que ser de natureza masculina ou feminina: os Espíritos não se reproduzem. Deus os cria à sua vontade, e se, por seus objetivos maravilhosos, quis que os Espíritos se reencarnem sobre a Terra, deveu acrescentar a reprodução das espécies para macho e a fêmea. Mas o sentis, sem que seja necessária nenhuma explicação, os Espíritos não podem ter sexo.”
Os espíritos sempre ensinaram que eles não têm sexo. Numa nota, Kardec destacou que “os sexos não são necessários senão para a reprodução dos corpos; porque os Espíritos não se reproduzem, os sexos seriam inúteis para eles”. No entanto, o objetivo da pergunta era saber se Sanson ainda conservava a impressão de seu estado terrestre, de sua recente condição humana, tão logo após sua morte. Era isso que Kardec queria saber. Os espíritos superiores sabem e vivenciam lucidamente a evidência de não existirem diferença entre gêneros, mas os espíritos mais simples, ainda materializados, conservam as mesmas paixões e desejos de quando encarnados, e, por isso, acreditam serem ainda homens ou mulheres depois da morte. Por outro lado, é comum os espíritos se apresentarem com a imagem que tinham quando encarnados, para faciliar a sua identificação.
Na Revista Espírita de janeiro de 1866, num inusitado artigo, “As mulheres tem uma alma?”, Kardec vai tratar novamente das diferenças sociais entre homens e mulheres. Ele relata que chegava aos jornais a notícia de que uma mulher havia com sucesso alcançado o grau de bacharel na universidade de Montpellier, França. Pasmem! Kardec afirma que era apenas o quarto diploma concedido a uma mulher até então! Em seu artigo, o professor explica que essa aquisição acadêmica ainda parecia a alguns “uma monstruosa anomalia”, e que essas conquistas iniciais ainda não representavam um avanço no entendimento ou um reconhecimento da natural igualdade, ainda se estava longe disso, considerava-se que se tratava apenas de uma concessão eventual:
“Depois de ter reconhecido que elas têm uma alma, se lhes reconheceu o direito de conquistar os graus da ciência, é já alguma coisa. Mas a sua libertação parcial não é senão o resultado do desenvolvimento da urbanidade, do abrandamento dos costumes, ou, querendo-se, de um sentimento mais exato da justiça; é uma espécie de concessão que se lhe faz, e, é preciso bendizê-la, se lhes regateando o mais possível”.
Naquele tempo, apesar da questão da existência da alma da mulher ser considerada ridícula, ainda não se ponderava que a “igualdade de posição social entre o homem e a mulher fosse de direito natural”, e não uma concessão feita pelo homem. A contribuição do Espiritismo para o debate é extraordinária e atual. Enquanto atualmente se discute o fato de que as tradicionais diferenças de gênero se estabeleceram em função da cultura e não da natureza fisiológica (visando justificar o poder do homem), o Espiritismo demonstra o outro extremo da questão: a igualdade é natural, pois os espíritos não têm distinção sexual! Ou seja, se a divisão de sexo por gêneros é cultural (se sabe hoje), a igualdade é natural (explicam os espíritos).
Esse é o ponto fundamental para se compreender o que o Espiritismo veio acrescentar ao debate! Essa contextualização ou entendimento da situação cultural de quando Kardec escreveu seus livros e revistas é primordial para se compreender os fundamentos da Doutrina Espírita. No tema que agora analisamos, a pergunta essencial é esta: “Deus criou almas machos e fêmeas, e fez estas inferiores às outras?”. E então Kardec esclarece:
“O homem entregue a si mesmo não podia estabelecer a esse respeito senão hipóteses mais ou menos racionais, mas sempre controvertidas; nada, no mundo visível, podia lhe dar a prova material do erro ou da verdade de suas opiniões. Para se esclarecer, seria preciso remontar à fonte, folhear nos arcanos do mundo extracorpóreo que ele não conhece. Estava reservado ao Espiritismo resolver a questão, não mais pelo raciocínio, mas pelos fatos, seja pelas revelações de além-túmulo, seja pelo estudo que ele é capaz de fazer diariamente sobre o estado das almas depois da morte. E, coisa capital, esses estudos não são o fato nem de um único homem, nem das revelações de um único Espírito, mas o produto de inumeráveis observações idênticas feitas diariamente por milhares de indivíduos, em todos os países, e que receberam a sanção poderosa do controle universal, sobre o qual se apoiam todas as doutrinas da ciência espírita. Ora, eis o que resulta dessas observações. As almas ou Espíritos não têm sexo. As afeições que as une nada têm de carnal, e, por isto mesmo, são mais duráveis, porque são fundadas sobre uma simpatia real, e não são subordinadas às vicissitudes da matéria”.
As almas não têm sexo, ensina o Espiritismo, e a diferença entre o masculino e o feminino estão relacionadas unicamente à necessidade de procriação e às funções instintivas e necessárias à preservação da espécie humana, como ocorre com todas as espécies animais. Afinal, nosso corpo físico é animal. Isso vem desde os tempos primitivos, quando os hominídeos concorriam pela sobrevivência. Em sociedade, com o objetivo de progredir moral e intelectualmente por seu próprio esforço, o espírito nasce como homem ou mulher, pobre ou rico, senhor ou servidor, trabalhador do pensamento ou da matéria, buscando vivenciar toda a diversidade de oportunidades para seu aprendizado. Desse modo, explica Kardec:
“O Espírito encarnado sofrendo a influência do organismo, seu caráter se modifica segundo as circunstâncias e se dobra às necessidades e aos cuidados que lhe impõem esse mesmo organismo. Essa influência não se apaga imediatamente depois da destruição do envoltório material, do mesmo modo que não se perdem instantaneamente os gostos e os hábitos terrestres; depois, pode ocorrer que o Espírito percorra uma série de existências num mesmo sexo, o que faz que, durante muito tempo, ele possa conservar, no estado de Espírito, o caráter de homem ou de mulher do qual a marca permaneceu nele. Não é senão o que ocorre a certo grau de adiantamento e de desmaterialização que a influência da matéria se apaga completamente, e com ela o caráter dos sexos. Aqueles que se apresentam a nós como homens ou como mulheres, é para lembrar a existência na qual nós os conhecemos”.
Em seu processo evolutivo, na fase inicial de sua trajetória, o espírito leva e traz influências entre a vida corpórea e a vida espiritual, sucessivamente. Em espírito, não tem necessidades fisiológicas materiais, como a diferença de sexo, emoções básicas, instintos de conservação — pois o espírito é imortal. Todavia, quando desencarna, muitos espíritos imperfeitos conservam essas características de forma ilusória no mundo espiritual, demorando a perceber as diferenças fundamentais de sua nova condição. Só com o passar de muitas vidas vai compreendendo e se adaptando à essa nova realidade.
O mesmo pode ocorrer, quando o espírito reencarna, propõe Kardec:
“Se essa influência repercute da vida corpórea à vida espiritual, ocorre o mesmo quando o Espírito passa da vida espiritual à vida corpórea. Numa nova encarnação, ele trará o caráter e as inclinações que tinha como Espírito; se for avançado, fará um homem avançado; se for atrasado, fará um homem atrasado”.
É, enfim, exatamente aqui que, no desenvolvimento desse raciocínio sobre a influência dos hábitos e tendências do indivíduo mantido vida após vida nesse estágio inicial do espírito, que surge para Allan Kardec uma hipótese de causa natural para a condição homossexual. Ele Afirma:
“Mudando de sexo, poderá, pois, sob essa impressão e em sua nova encarnação, conservar os gostos, as tendências e o caráter inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas anomalias aparentes que se notam no caráter de certos homens e de certas mulheres”.
É muito importante destacar aqui que o termo “anomalia aparente”, usado por Kardec, estava presente nas ciências da época, se referindo aos fenômenos que fogem da explicação das teorias aceitas, não sendo para elas “normais”; mas que, ao se encontrar uma nova explicação natural para o fenômeno em novas teorias, elas deixam de ser “anomalias” e se tornam fenômenos naturais. Por isso ela é “aparente”. Em outra circunstância, por exemplo, Kardec se referiu à lei da reencarnação como natural, explicando, enfim, “todas as anomalias aparentes da vida; é a luz lançada sobre o nosso passado e o nosso futuro, o sinal manifesto de vossa soberana justiça e de vossa bondade infinita” (O Evangelho segundo o Espiritismo, p. 157).
Podemos concluir, finalmente, que as questões de sexo, considerando os indivíduos como homens e mulheres, machos e fêmeas, estão circunscritos à condição material fisiológica dos organismos animais a que estão associados durante a encarnação. Em sua essência, o espírito não tem sexo, não tem gênero. Em sua fase inicial de evolução, porém, essas diferenças permanecem pelos hábitos, tendências e gostos. E são mantidas pela cultura. Entre os espíritos evoluídos, no entanto, essas deixam de ser diferenças, e não há mais qualquer distinção que sustente preconceitos e disputas de poder. Como a vida espiritual é a principal, e a evolução será o destino de todos os espíritos, todas as questões referentes à homossexualidade são circunstanciais, um debate humano, cultural e temporal; que perderá sentido no futuro, quando a humanidade houver conquistado uma nova condição evolutiva; tornando-se solidária, igualitária e livre de preconceitos.
E então Kardec finaliza seu artigo com uma admirável conclusão, colocando o Espiritismo na vanguarda da emancipação da mulher:
“Com a Doutrina Espírita, a igualdade da mulher não é mais uma simples teoria especulativa; não é mais uma concessão da força à fraqueza, é um direito fundado sobre as próprias leis da Natureza. Fazendo reconhecer estas leis, o Espiritismo abre a era da emancipação legal da mulher, como abre a da igualdade e da fraternidade”.
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