Revista Espírita, agosto de 1861
Esta evocação foi feita o ano passado, na Sociedade, a pedido do Sr. Borreau, de Niort, o qual nos havia dirigido a seguinte notícia:
“Há cerca de trinta anos, nós tínhamos no priorato de Amilly, muito perto de Mauzé, um sacerdote chamado Don Peyra, que deixou na região a fama de feiticeiro. De fato ele se ocupava constantemente de Ciências Ocultas. Contam-se dele coisas que parecem fabulosas, mas que, segundo a Ciência Espírita, bem poderiam ter sua razão de ser. Há cerca de doze anos, fazendo com uma sonâmbula experiências muito interessantes, achei-me em relação com seu Espírito. Apresentou-se como um auxiliar, com o qual não podíamos deixar de ter êxito, mas nós fracassamos. Depois, em pesquisas da mesma natureza, fui levado a crer que esse Espírito deveria ter-se interessado. Venho pedir, se não abuso de vossa benevolência, que ele seja evocado e lhe seja perguntado quais foram e quais são suas relações comigo. Partindo daí, talvez um dia eu tenha coisas interessantes a vos comunicar.”
Primeira palestra, a 13 de janeiro de 1860
1. (Evocação) ─ Aqui estou.
2. ─ De onde vem a reputação de feiticeiro que tínheis em vida? ─ Conversas de comadres. Eu estudava Química.
3. ─ Qual o motivo que vos pôs em relação com o Sr. Borreau, de Niort? ─ O desejo de me distrair um pouco, a propósito do poder que ele me atribuía.
4. ─ Diz ele que vos apresentastes como auxiliar em suas pesquisas. Poderíeis dizer-nos qual a natureza dessas pesquisas? ─ Não sou bastante indiscreto para trair um segredo que ele julgou melhor não vos revelar. Vossa pergunta me ofende.
5. ─ Não queremos insistir, mas vos faremos notar que poderíeis ter respondido de modo mais conveniente a pessoas que vos interrogam seriamente e com benevolência. Vossa linguagem não é a de um Espírito adiantado. ─ Sou o que sempre fui.
6. ─ De que natureza são as coisas fabulosas que contam de vós? ─ Como vos disse, são histórias. Eu conhecia a opinião que formavam de mim e, longe de procurar abafá-la, fazia o que era preciso para favorecê-la.
7. ─ Levando-se em conta a resposta precedente, parece que não progredistes após a morte. ─ Na verdade não procurei fazê-lo, pois não conhecia os meios. Contudo, julgo que existe algo a fazer. Há pouco pensei nisto.
8. ─ Vossa linguagem nos admira, vinda de um Espírito que foi sacerdote em vida e que, por isso mesmo, deveria ter ideias de certa elevação. ─ Acredito piamente que eu era muito, muito pouco instruído.
9. ─ Tende a bondade de desenvolver o vosso pensamento. ─ Por demais instruído para crer, mas não bastante para saber.
10. ─ Então não éreis o que se chama um bom padre? ─ Oh! Não!
11─ Quais as vossas ocupações como Espírito? ─ Sempre a Química. Creio que teria feito melhor se procurasse Deus em vez da matéria.
12. ─ Como pode um Espírito ocupar-se da Química? ─ Oh! Permiti-me dizer que a pergunta é pueril. Terei necessidade de microscópio ou de alambique para estudar as propriedades da matéria, que sabeis tão penetrável ao Espírito?
13. ─ Sois feliz como Espírito? ─ Palavra que não. Como eu vos disse, creio ter seguido um caminho errado e vou mudá-lo, sobretudo se tiver a felicidade de ser um pouco ajudado, sobretudo se a mim, que tanto deveria ter orado pelos outros, o que confesso não ter feito sempre pelo dinheiro recebido, se, dizia eu, não quiserem a mim aplicar a pena de Talião.
14. ─ Agradecemos por terdes vindo e faremos por vós o que não fizestes pelos outros. ─ Valeis mais do que eu.
Segunda palestra, 25 de junho de 1861
Tendo-nos o Sr. Borreau remetido novas perguntas para o Espírito de Don Peyra, este foi evocado novamente, por intermédio de outro médium e deu as respostas seguintes, das quais se colhem lições úteis, quer como estudo das individualidades do mundo espírita, quer como ensinamento geral.
15. (Evocação) ─ O que quereis de mim e por que me perturbais?
16. ─ Foi o Sr. Borreau, de Niort, que nos pediu vos dirigíssemos algumas perguntas. ─ O que mais ele quer de mim? Não está contente por me perturbar em Niort? Por que é necessário que me evoque em Paris, onde nada me chama? Gostaria que ele tivesse a ideia de me deixar em repouso. Ele me chama, evoca-me, põe-me em contato com sonâmbulos, evoca-me por terceiros. Esse senhor é muito aborrecido.
17. ─ Contudo deveis lembrar-vos de que já vos evocamos e que respondestes mais gentilmente do que hoje. E até vos prometemos orar por vós. ─ Recordo-me disso muito bem, mas prometer e fazer são coisas diversas. Vós orastes, mas os outros…
18. ─ Certamente outros também oraram. Enfim, quereis responder às perguntas do Sr. Borreau? ─ Garanto-vos que por ele eu não tenho a menor vontade de fazê-lo, porque está sempre na minha cola. Perdoai a expressão, mas ela é verdadeira, tanto mais quanto entre mim e ele não há nenhuma afinidade. Mas para vós, que piedosamente chamastes sobre mim a misericórdia do Alto, quero responder da melhor maneira que puder.
19. ─ Dizíeis há pouco que vos perturbavam. Podeis dar-nos uma explicação a respeito, para nossa instrução pessoal? ─ Digo ser perturbado no sentido que chamastes a minha atenção e o meu pensamento para junto de vós, ocupando-vos de mim e vi que necessitava responder ao que perguntásseis, quando mais não fosse, por polidez. Explico-me mal. Meu pensamento estava alhures, em meus estudos, em minhas ocupações habituais. Vossa evocação forçosamente chamou-me a atenção sobre vós, sobre as coisas da Terra. Consequentemente, como não estava em meus propósitos ocupar-me de vós e da Terra, perturbastes-me.
OBSERVAÇÃO: Os Espíritos são mais ou menos comunicativos e vêm com maior ou menor vontade, conforme seu caráter. Mas podemos estar certos de que, como os homens sérios, não gostam de ser importunados sem necessidade. Quanto aos Espíritos levianos, é diferente: estão sempre dispostos a meter-se em tudo, mesmo quando não são chamados.
20. ─ Quando vos pusestes em contato com o Sr. Borreau, conhecíeis suas crenças na possibilidade de fazer triunfar suas convicções pela realização de uma grande façanha, ante a qual a incredulidade seria forçada a inclinar-se? ─ O Sr. Borreau queria que eu o servisse numa operação meio magnética, meio espírita. Mas ele não tem estatura para levar a bom termo semelhante trabalho e não julguei dever conceder-lhe o meu concurso por mais tempo. Aliás, eu o faria se tivesse podido. Não tinha chegado, e não chegou ainda, a hora para isto.
21. ─ Poderíeis ver e dizer-lhe quais as causas que, durante suas pesquisas na Vendeia, vieram determinar o seu fracasso, derrubando-o, bem como a sua sonâmbula e a duas outras pessoas presentes? ─ Minha resposta precedente pode aplicar-se a esta pergunta. O Sr. Borreau foi derribado pelos Espíritos que lhe quiseram dar uma lição e ensinar-lhe a não procurar aquilo que deve ficar oculto. Fui eu que os empurrei, utilizando o fluido do próprio magnetizador.
Observação: Esta observação concorda perfeitamente com a teoria que foi dada, das manifestações físicas. Não foi com as mãos que os Espíritos os empurraram, mas com o próprio fluido animado das pessoas, combinado com o do Espírito. A dissertação que fazemos a seguir sobre os transportes de objetos contém a respeito desenvolvimentos do mais alto interesse. Uma comparação que talvez tenha alguma analogia parece justificar a expressão do Espírito. Quando um corpo carregado de eletricidade positiva se aproxima de uma pessoa, esta se carrega de eletricidade contrária. A tensão cresce até a distância explosiva. Nesse ponto os dois fluidos se reúnem violentamente pela centelha e a pessoa recebe um choque que, conforme a massa de fluido, pode derrubá-la e até fulminá-la. Nesse fenômeno é sempre necessário que a pessoa forneça seu quinhão de fluido. Se considerássemos o corpo eletrizado positivamente como um ser inteligente, agindo por vontade própria e compreendendo a operação, diríamos que ele combinou uma parte do fluido da pessoa com o seu. No caso do Sr. Borreau, as coisas talvez não se tenham passado exatamente assim, mas compreende-se que aí pode haver um efeito análogo, e que Dom Peyra foi lógico dizendo que os derrubou com seu próprio fluido. Compreender-se-á melhor ainda se se reportar ao que está dito em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns sobre o fluido universal, que é o princípio do fluido vital, do fluido elétrico e do fluido magnético animal.
22. ─ Durante suas longas e dramáticas experiências, ele diz ter feito descobertas para ele muito mais admiráveis do que a solução que buscava. Vós as conheceis, não? ─ Sim. Mas há algo que ele não descobriu: que os Espíritos não têm por missão ajudar os homens em pesquisas semelhantes às que ele fazia. Se eles pudessem assim proceder, Deus nada poderia ocultar, e os homens negligenciariam o trabalho e o exercício de suas faculdades para correr, este em busca de um tesouro, aquele de uma invenção, pedindo aos Espíritos que lhes servissem isso tudo quentinho, de modo que bastaria curvar-se e colher a glória e a fortuna. Na verdade teríamos muito que fazer se tivéssemos que satisfazer à ambição de todo mundo. Vedes, assim, que rebuliço no mundo dos Espíritos pela crença universal no Espiritismo? Ora seríamos chamados à direita, ora à esquerda; aqui para cavar a terra e enriquecer um preguiçoso; ali para poupar a um imbecil o esforço de resolver um problema; além, para aquecer o forno de um químico; em toda parte para descobrir a pedra filosofal. A mais bela descoberta que o Sr. Borreau deveria ter feito é a de saber que sempre há Espíritos que se divertem em dar miragens de minas de ouro, mesmo aos olhos do mais clarividente sonâmbulo, fazendo-as aparecer onde não estão e rindo-se à vossa custa, quando pensais apoderar-se delas, e isto para vos ensinar que a sabedoria e o trabalho são os verdadeiros tesouros.
23. ─ O objetivo das pesquisas do Sr. Borreau era um tesouro? ─ Parece-me haver dito, quando me chamastes pela primeira vez, que não sou indiscreto. Se ele julgou conveniente não dizer-vos, não me cabe fazê-lo.
OBSERVAÇÃO: Vê-se que o Espírito é discreto. Aliás, é uma qualidade geralmente encontrada em todos eles, e mesmo nos Espíritos pouco adiantados, de onde se pode concluir que se um Espírito fizesse revelações indiscretas sobre alguém, muito provavelmente seria para se divertir e seria erro levá-los a sério.
24. ─ Poderíeis dar-lhe algumas explicações sobre a mão invisível que por muito tempo traçou numerosos escritos que ele encontrava nas folhas do caderno posto de propósito para recebê-los? ─ Quanto aos escritos, não são dos Espíritos. Mais tarde ele lhes conhecerá a fonte, que não devo revelar agora. Os Espíritos podem tê-los provocado, com o fito a que me referi antes, mas não foram eles que escreveram.
OBSERVAÇÃO: Embora estas duas conversas tenham ocorrido com dezoito meses de intervalo, e por médiuns diversos, reconhece-se um encadeamento, uma sequência e uma semelhança de linguagem que não permitem duvidar que o mesmo Espírito tenha respondido. Quanto à identidade, esta ressalta da carta seguinte, que nos escreveu o Sr. Borreau, após a remessa da segunda evocação.
18 de julho de 1861
“Senhor,
“Venho agradecer-vos o trabalho que tivestes, e a presteza em remeter-me a última evocação de Dom Peyra. Como dizeis, o Espírito do antigo prior não estava de bom humor, assim exprimindo vigorosamente a impaciência que lhe causou essa nova iniciativa. Daí resulta, senhor, um grande ensinamento. É que os Espíritos que fazem o jogo malévolo de atormentar-nos, por sua vez podem ser pagos por nós na mesma moeda.
“Ah! Senhores de além-túmulo! ─ aqui me refiro apenas aos Espíritos farsistas e levianos ─ sem dúvida vos gabaríeis do privilégio exclusivo de nos importunar. E eis que um pobre Espírito terreno, muito pacífico, apenas pondo-se em guarda contra vossas manobras e procurando esclarecê-las, vos atormenta a ponto de o sentirdes penosamente sobre os vossos ombros fluídicos! Ora! Que direi, então, meu caro prior, quando confessais ter feito parte da turba espírita que tão cruelmente me obsidiou e pregou tantas peças durante minhas excursões pela Vendeia? Se é verdade que estáveis nisto, devíeis saber que não as empreendi senão com o fito de fazer triunfar a verdade por fatos irrefutáveis. Sem dúvida é uma grande ambição, mas era honesta, segundo me parece. Apenas, como dizeis, eu não tinha porte para lutar e vós e os vossos nos derrubaram de tal modo, que nos vimos obrigados a abandonar a partida, carregando os nossos mortos, porque as vossas manobras fantásticas, que determinaram terrível luta, acabaram de rebentar a minha pobre sonâmbula que, num desmaio que não durou menos de seis horas, já não dava nenhum sinal de vida e nós a julgávamos morta. Sem dúvida, a nossa posição parecerá mais fácil de compreender do que de descrever, se se pensar que era meianoite e que estávamos em campos ensanguentados pelas guerras da Vendeia, região de aspecto selvagem e cercada de colinas nuas, cujos ecos vinham repetir os gritos lancinantes da vítima. Meu pavor estava no auge, pensando na terrível responsabilidade que caía sobre mim e da qual não sabia como escapar. Eu estava desarvorado! Só a prece poderia salvar-me, e me salvou. Se a isto chamais lições, haveis de concordar que são rudes! Era ainda provavelmente para me dar uma dessas lições que um ano mais tarde me chamáveis a Mauzé. Mas então eu estava mais instruído e já sabia o que pensar quanto à existência dos Espíritos e quanto aos atos e gestos de muitos deles. Além disso, a cena não estava mais organizada para um drama como em Châtillon. Assim, eu estava livre para uma escaramuça.
“Perdão, senhor, se me deixei arrastar com o prior. Volto a vós, para vos ocupar uma vez mais, se me permitirdes. Há poucos dias fui à casa de um homem muito honrado, que o conheceu bastante na mocidade e lhe mostrei a comunicação que me remetestes. Ele reconheceu perfeitamente a linguagem, o estilo e o espírito cáustico do antigo prior, e contou-me os fatos seguintes:
“Tendo sido forçado pela Revolução a abandonar o priorato de Surgères, Dom Peyra comprou a pequena propriedade de Amilly, perto de Mauzé, onde se fixou. Ali tornou conhecidas suas belas curas, obtidas por meio do magnetismo e da eletricidade, que empregava com sucesso. Mas vendo que os negócios não iam tão bem quanto desejava, empregou o charlatanismo e, com o auxílio de sua máquina elétrica, praticou artes mágicas que não tardaram a fazê-lo passar por feiticeiro. Longe de combater tal opinião, ele a provocava e encorajava. Em Amilly havia uma longa aleia de bordos, por onde chegavam os clientes, vindos frequentemente de dez a quinze léguas. Sua máquina era posta em comunicação com a maçaneta da porta e quando os pobres camponeses queriam bater, sentiam-se como que fulminados. É fácil imaginar o que tais fatos deviam produzir em gente pouco esclarecida, sobretudo naquela época.
“Temos um provérbio que diz que na pele morreu a raposa. Ora! Vejo que será preciso que troquemos de pele mais de uma vez antes que os nossos maus instintos nos abandonem. De tudo isto, senhor, não tireis a conclusão de que eu deseje mal ao prior. Não. E a prova é que, seguindo o vosso exemplo, orei por ele, o que confesso, assim como ele vos disse, que não havia feito até então.
“Aceitai, etc.
J. -B. BORREAU.
” Notar-se-á que esta carta é de 18 de julho de 1861, ao passo que a primeira evocação remonta a janeiro de 1860. Nessa época não conhecíamos todas essas particularidades da vida de Dom Peyra, com as quais suas respostas concordam perfeitamente, pois ele diz que fazia o que era preciso para firmar sua reputação de feiticeiro.
O que aconteceu ao Sr. Borreau tem uma singular analogia com as travessuras que, em vida, Dom Peyra fazia aos seus visitantes, e muito nos inclinaríamos a crer que este último quis repeti-las. Ora, para tanto não necessitava de máquina elétrica, pois dispunha da grande máquina universal. Compreender-se-á a possibilidade, aproximando esta ideia da observação feita acima, na pergunta 21. O Sr. Borreau encontra uma espécie de compensação às malícias de certos Espíritos, nos aborrecimentos que lhes podemos causar. Contudo, nós o aconselhamos a não se fiar muito, porque eles têm mais meios de nos escapar do que nós de nos subtrairmos à sua influência. Aliás, é evidente que se, na época, o Sr. Borreau conhecesse a fundo o Espiritismo, teria sabido o que razoavelmente se lhes pode pedir e não se teria aventurado em tentativas que a Ciência lhe teria demonstrado não conduzir senão a uma mistificação. Ele não foi o primeiro a adquirir experiências à própria custa. Por isso não cessamos de repetir: Estudai primeiro a teoria. Ela vos ensinará todas as dificuldades da prática, e assim afastareis escolhos dos quais vos sentireis felizes em sair apenas com alguns aborrecimentos. Sua intenção, diz ele, era boa, pois queria provar por um grande feito, a verdade do Espiritismo. Mas, em casos semelhantes, os Espíritos dão as provas que querem e quando querem, e jamais quando se lhes pede. Conhecemos pessoas que, também elas, queriam dar provas irrecusáveis por meio da descoberta de tesouros colossais através dos Espíritos, mas o que lhes resultou de mais claro foi gastar o seu dinheiro. Acrescentaremos que se tais provas dessem resultado, por acaso, uma só vez, seriam mais prejudiciais do que úteis, porque falseariam a opinião sobre o objetivo do Espiritismo, estabelecendo a crença de que ele pode servir de meio de adivinhação. Então se justificaria a resposta de Dom Peyra à pergunta 22.