Autor: Ricardo Baesso de Oliveira
Viver de forma integral a proposta ética de Jesus, na contemporaneidade, é um desafio transposto por poucas pessoas. Paulo Freire (1921-1997) foi uma delas: uma vida voltada para a ética e responsável por uma pedagogia direcionada para a completude humana, preocupada com o nosso crescimento intelecto-moral.
O título de patrono da Educação brasileira lhe foi outorgado pelo respeitável trabalho prático e editorial que realizou. Livros como Pedagogia do oprimido, Pedagogia da Esperança e Pedagogia da autonomia exercem, até hoje, impressionante influência na educação brasileira. Freire acreditava, tal qual o Prof. Rivail, que a educação escolar não poderia se limitar a mera instrução formal, que se ocupa unicamente da inteligência, mas deveria interessar-se pelo ser em sua totalidade, operando na mudança de hábitos.
Sobre isso escreveu: “preparo científico do professor ou da professora deve coincidir com sua retidão ética. É uma lástima qualquer descompasso entre aquela e esta. Formação científica, correção ética, respeito aos outros, coerência, capacidade de viver e de aprender com o diferente, não permitir que o nosso mal-estar pessoal ou a nossa antipatia com relação ao outro nos façam acusá-lo do que não fez são obrigações a cujo cumprimento devemos humildes mas perseverantes nos dedicar”.
Escreveu também: “transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar”.
Acreditava, como pensamos os espíritas, que o progresso espiritual só pode dar-se em uma existência compromissada com a ética e com a justiça social.
Escreveu: “daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. O meu ponto de vista é o dos ‘condenados da Terra’, o dos excluídos. Não aceito, porém, em nome de nada, ações terroristas, pois que delas resultam a morte de inocentes e a insegurança de seres humanos. O terrorismo nega o que venho chamando de ética universal do ser humano. Da ética que condena a exploração da força de trabalho do ser humano, que condena acusar por ouvir dizer, afirmar que alguém falou A sabendo que foi dito B, falsear a verdade, iludir o incauto, golpear o fraco e indefeso, soterrar o sonho e a utopia, prometer sabendo que não cumprirá a promessa, testemunhar mentirosamente, falar mal dos outros pelo gosto de falar mal”.
Para superar a crise em que nos achamos, impõe-se o caminho ético
Examinando a luta política por melhores dias para nosso país, assim se expressou: “se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele. Um dos equívocos funestos de militantes políticos de prática messianicamente autoritária foi sempre desconhecer totalmente a compreensão do mundo dos grupos populares. Vendo-se como portadores da verdade salvadora, sua tarefa irrecusável não é propô-la mas impô-la aos grupos populares”.
E ainda: “não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a ditatorial, contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário já é em si uma contravenção à natureza inquietantemente indagadora, buscadora, de homens e de mulheres que se perdem ao perderem a liberdade”.
E também: “Mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma presença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que intervém, que transforma, que fala do que faz mas também do que sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. Como presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética do meu mover-me no mundo. Isto não significa negar os condicionamentos genéticos, culturais, sociais a que estamos submetidos. Significa reconhecer que somos seres condicionados mas não determinados. Reconhecer que a História é tempo de possibilidades e não de determinismo, que o futuro é problemático e não inexorável”.
Em sua rica existência física manteve absoluta coerência entre o discurso e a prática diante de temas como autonomia, tolerância, autoridade, liberdade e humildade. Ao retornar ao Brasil, após 15 anos de exílio, entrevistado por dezenas de jornalistas, disse: “Vim para reaprender o Brasil, e, enquanto estiver no processo de reaprendizagem, de reconhecimento do Brasil, não tenho muito o que dizer. Tenho mais o que perguntar”.
Quando alguém lhe indagou: “o que nós podemos fazer para segui-lo?”, Paulo, de maneira típica, respondeu: “Se você me seguir você me destrói. A melhor maneira de me entender é me reinventar e não tentar se adaptar a mim”. Em outra oportunidade afirmou: “pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente”.
A solidariedade, diferentemente da filantropia, é a ajuda que liberta
Tal qual o pensamento espírita, que distingue a caridade benevolente da beneficente, fazia distinção entre a solidariedade e a filantropia. A solidariedade, segundo ele, é a ajuda que liberta, que se proporciona àquele que necessita, para que ele não mais venha a necessitar. A filantropia, por sua vez, possui uma natureza compensatória, buscando a correção das consequências de projetos sociais mal equacionados, como a distribuição injusta de riquezas, mas não atuando no sentido de promover a correção dessas injustiças. A solidariedade é positivamente construída, podendo inspirar a criação de mecanismos estruturais que evitem a necessidade de posteriores compensações.
Sua visão sobre a tolerância é profunda ao mostrar que a tolerância virtuosa não deve ser entendida como um favor que o tolerante presta ao tolerado, pois coloca-o numa situação de superioridade em relação ao outro. A tolerância, segundo Freire, é a qualidade de conviver com o diferente e não com o inferior.
Refletindo sobre a necessária harmonia entre ações opostas, como fazer/não fazer, avançar/recuar, agir agora/esperar um pouco, ele propõe uma virtude nova: “a paciência na impaciência”. Escreveu: “eu nunca aceito ser apenas paciente ou apenas impaciente. Para trabalhar produtivamente no mundo nós temos que ser pacientemente impacientes. Se você for apenas impaciente você destrói seu sonho antes do que ele devesse ser destruído. Mas se você é apenas paciente as outras pessoas vão destruir o seu trabalho”.
Embora militasse quase exclusivamente no meio universitário, nunca se furtou em confessar a sua fé em Deus e sua profunda admiração por Jesus.
Uma vez, na Europa, alguém lhe perguntou sobre a influência dos grandes educadores, dos grandes filósofos no seu trabalho. Ele ousadamente respondeu: – “Em primeiro lugar Jesus! Eu entendo Jesus como um educador”.
Em outra oportunidade, tecendo considerações sobre a virtude da esperança, disse: – “Uma das razões por que eu tenho esperança é porque eu acredito em Deus. Eu estou convencido de que eu sou mais do que meu corpo”.
O depoimento de Paulo Freire acerca do seu pai, que professara o Espiritismo
Freire comungava a crença católica, embora seu pai, falecido quando ele tinha 13 anos, fosse espírita e ele o respeitava profundamente por isso. Um belo depoimento sobre a Doutrina Espírita podemos encontrar em uma resposta dada por ele em um seminário acontecido em uma universidade norte-americana no ano de 1996. A pergunta foi esta: – “Que tipos de experiência formaram o senhor em sua infância?”
Segue a sua resposta:
– “Meu pai morreu com 54 anos de idade. Isso foi em 1934 e eu sinto a sua presença quase como se ele estivesse aqui agora. Tal foi sua influência e sua presença na minha vida, pois ele morreu quando eu tinha 13 anos. Em nossa curta experiência meu pai me deu muito. Ele me deu sério testemunho de seu respeito pelos outros. Com ele eu aprendi a tolerância. Por exemplo, ele era espírita, um seguidor de Allan Kardec, o filósofo francês que criou, organizou e sistematizou uma doutrina espiritualista. Minha mãe era católica. Claro, ele não era de ir à Igreja, ele não acreditava na burocracia da Igreja. Ele não aceitava as maneiras de acreditar em Deus oferecidas pela Igreja Católica. Isso foi na primeira metade do século XX, constituindo um exemplo fantástico de sua abertura e de sua coragem. Eu me lembro que quando eu tinha sete anos deveria fazer minha primeira comunhão. Eu fui falar com ele para lhe dizer que no domingo seguinte eu iria à igreja para ter meu primeiro encontro com Deus. E ele disse: ‘Eu vou com você.’ Vocês não podem imaginar como aquelas palavras me marcaram até hoje. Este era um entendimento profundo de tolerância, de respeito pelo diferente. Ali estava um pai, em uma sociedade muito específica, muito conservadora. Ele poderia dizer: ‘Não, tudo isto é mentira. Eu não vou deixar você participar desta mentira!’ Ao contrário, ele foi à igreja e me deu um exemplo fantástico da importância fundamental e absoluta da solidariedade, de como o respeito pelo outro é absolutamente indispensável”.
Fonte das citações
1 – Pedagogia da autonomia: Paulo Freire.
2 – Pedagogia da solidariedade: Paulo Freire, Nita Freire e Walter de Oliveira.
3 – Por uma pedagogia da pergunta: Paulo Freire e Antonio Faundez.
4 – Pedagogia do oprimido: Paulo Freire.
5 – Pedagogia da esperança: Paulo Freire.
O consolador – Ano 10 – N 486 – Especial