Autora: Christina Nunes
Este tema foi abordado também em uma de minhas últimas palestras, porque se faz necessária a consideração reiterada do assunto, em razão dos disparates verificados nos acontecimentos atuais. São desdobramentos inquestionáveis do prejuízo sério enraizado na falta da tomada definitiva de consciência para com as realidades espirituais maiores, que nos aguardam a todos, a qualquer tempo. E uma das consequências mais lastimáveis deste quadro se verifica na tendência, ainda comum em muitos, de se posicionarem como se de fato, antes, e depois desta vida corpórea, nada mais houvesse, nada mais repercutisse. Como se a continuidade da nossa existência, ao longo das jornadas materiais evolutivas, não existisse, sem obedecer a um fio contínuo de efeitos, enraizados em causas que repousam, sobretudo, nas escolhas individuais, das menores às maiores!
Reencarnação, efetivamente, trata-se de fato natural, caro leitor e leitora. De lei universal, cuja dinâmica atinge cada ser em curso pela Terra, do mesmo modo como nos afeta cada nascer e cada pôr do sol. E, disso, cada qual obterá a devida constatação, mais uma, e ainda noutra vez, ao término das estadias transitórias num corpo material – à revelia de crenças, descrenças, e de ignorância voluntária, ou não, do assunto.
Costumamos dizer que de nada adianta alguém destituído do sentido da visão se pôr a negar a existência da luz do sol somente porque, temporariamente, sob os efeitos da provação de uma de suas muitas existências num corpo de carne, não consegue ver a luz; constatar-lhe a existência para além dos efeitos do calor de sua poderosa irradiação no mundo. De fato, o sol continuará lá, soberano nos céus, à espera de que aquele Espírito em trânsito pela Terra enfim resgate devidamente o dom da visão, no seu corpo de carne, ou após sua passagem para o mundo maior, quando, enfim, tornará a percebê-lo! Mas o sol não deixará de existir em função da incapacidade momentânea deste ou daquele para ver o brilho magnífico que espraia diariamente sobre todos os seres da Criação, instilando-lhes saúde e vigor.
Quantas “encadernações” novas tivemos?
Compreendido com clareza este ponto, a realidade das vidas sucessivas, conhecida de há vários milênios pelas mais diversificadas culturas e povos espalhados pelo planeta ao longo da história humana, passemos à consideração seguinte: durante nossas incontáveis vidas corpóreas sucessivas, quantos idiomas já articulamos? Quantos climas experimentamos? De quantos quadros culturais já partilhamos dos hábitos, crenças e humores?
Quantas cores de pele já vestimos? Quantas “encadernações” novas tivemos, para aproveitar a definição inspirada quanto divertida de uma amiga querida do meio profissional, em se referindo à reencarnação?
Efetivamente, na esteira de nossas vivências milenares, bastante provável é que já tenhamos exteriorizado múltiplas vezes nossas personalidades transitórias sob os tons de pele dos asiáticos, dos africanos ou dos holandeses. Poderemos contar como certo já termos nos empolgado, aborrecido, digladiado, emocionado ou nos alegrado debaixo das nuances de compreensão da vida de um sem-número de povos que percebem a própria existência, e, portanto, também Deus, com suas inumeráveis leituras religiosas, e de dentro de uma diversificação de entendimento de tal modo vasta quanto intrincada, conflitante, se confrontada com pareceres de outros extremos do mundo!
A riqueza magnífica da vida, da existência, neste orbe, quanto no universo infinito, e nas várias dimensões invisíveis às limitações rudes dos sentidos físicos, é fato! O que, por conseguinte, torna esta mesma vida tão mágica, respeitável, digna da mais profunda veneração, pela capacidade do Criador de se expandir infinitamente numa miríade de seres e de nuances que jamais se repetem em suas cores, e nas suas idiossincrasias!
E, no entanto, persiste ainda a raça humana, neste pequeno ponto azul perdido na imensidão do cosmos, na mesma e renitente ilusão dolorosa do ego cego, embora não mais do que transitório; no vício pernicioso de julgar e confinar tudo e todos no ínfimo modelo de sua escolha! Na garrafa mais ao seu gosto, em termos de formato, cor, e de detalhes superficiais!
O que é estético, superficialmente aceitável?
Preconceito é conceito prévio! Conceito precipitado, via de regra distanciado da autenticidade da realidade confrontada – por ser parcial, e se basear em um punhado de opiniões e ideias com que nos identificamos, diante de qualquer situação de diversidade daquilo que entendemos como nosso modelo, como o tido como “normal”, como o “comum”! E a razão é que este “comum” é confortável ao nosso ego. E toda a diferença, se mal compreendida, amedronta, provoca receios, porque nos lança em conflitos com nossas próprias definições, com as quais nos identificamos existencialmente, e das quais, por esta mesma razão, não podemos nem queremos nos desfazer sem perder a noção de nós mesmos, do nosso “chão”!
Mas isso reside no erro básico de se identificar com conceitos – distanciados de quem realmente somos –, que nada têm a ver com as ideias e pensamentos transitórios a que fomos condicionados ao longo da vida a respeito de nós mesmos!
Ponderemos, amigo leitor e leitora! Porque outra não é a razão dos dolorosos dramas observados atualmente, nos casos noticiados de discriminação racial e sexual, de opressão entre classes sociais; nos episódios lastimáveis relatados diariamente, havidos entre nossos jovens e crianças vitimadas pelo hoje chamado bullying – fundamentado justo nesta incapacidade brutal de se lidar, com respeito, quando não com admiração e afeto, com a diversidade incessante presente na dinâmica da vida!
De outra forma, considere-se – o que é estético, superficialmente aceitável? Se já reencarnamos japoneses, ingleses, brasileiros ou africanos, vivendo milhares de estados de espírito correspondentes a cada uma dessas épocas e nacionalidades; dividindo com afetos e desafetos que nos acompanharam experiências, alegrias, preocupações, doenças, sofrimentos, e tendo como referência outros lugares, hábitos, valores – como, então, confinar dentro de cláusula pétrea o que é, em definitivo, estético, bom, atraente, “normal”? Como nutrir a pretensão a um padrão universal que, absurdamente, se pretenda impor a outros milhões de seres em trânsito no mundo?!
O que se lucra em maltratar negros, índios ou latinos?
Num país, prevalece a religião budista, a cor de pele bronzeada, ou a branca; determinada política, parlamentarista, imperialista ou democrática. Esse ou aquele idioma. Normas sociais, as mais díspares. Esta ou aquela visão da divindade – caminhos diferentes para um Deus só! Ou alguém, nalgum lugar, acha tal ou qual pessoa belíssima – pessoa essa cuja aplaudida “estética”, diante de outras percepções, não ultrapassa o lugar comum… Uns, ainda, apreciam certos paladares. Outros, tantos mais.
Ora, é de se perguntar aonde leva abrir guerra declarada contra quem não é branco ou não articula o idioma inglês, contra toda e qualquer diferença? O que se lucra em oprimir e maltratar indivíduos negros, ou índios e latinos; que fazem opção sexual conflitante com o que se convencionou considerar a normalidade neste sentido?
Qual o ganho, obtido em termos de felicidade individual ou grupal, ao se agredir física ou moralmente os seguidores do candomblé, da igreja evangélica ou protestante? Católicos ou espíritas? O que, em casos assim, nos diferencia dos malfeitores comuns, que conduzem suas vidas no engano grave da prática da violência contra a vida, contra o próximo?
No que, caros leitores, afinal, a leitura de vida diferenciada de uns nos afeta prejudicialmente, de fato? Pergunta que se deve fazer a todo instante, a cada impulso de julgamento ou de crítica irrefletida!
Por que não podemos conviver harmoniosamente com as diferenças múltiplas presentes na humanidade, e no contexto existencial global, se, sob uma análise fria, nada disso prejudica quem quer que seja – antes, beneficia a todos com a ausência da mesmice, com a troca saudável do debate e do crescimento por meio do aprendizado mútuo obtido pelo entrelaçamento entre vivências diferentes?
O orgulhoso senador Públio Lentulus voltou como um escravo
Um mestre espiritual indiano, há tempos, ponderava a respeito, ilustrando sobre a inutilidade que haveria se um pé de carvalho se empenhasse a debater com um pinheiro acerca de se achar superior ao outro, por esta ou aquela razão. Haveria sentido? Com cada exemplar da flora e da fauna terrestre desempenhando dignamente sua função na cadeia vital, que caos destrutivo ocorreria no mundo natural se também estes reinos se pusessem a querer provar uns aos outros a sua superioridade, destruindo, atacando, lançando-se contra o outro como gangrena incontrolável?
Duas obras de Chico Xavier, de autoria de Emmanuel, – Há Dois Mil Anos, e Cinquenta Anos Depois, – romances históricos entrelaçados em conteúdo, de há muito nos ensinavam o impasse evolutivo a que se chega, quando essa postura atinge os extremos da opressão e da prática da intolerância contra o semelhante. Narra a história de Públio Lentulus, nobre senador romano, orgulhoso e déspota na conduta com seus subordinados, que retorna em reencarnação posterior como o simples escravo Nestório, no mesmo ambiente de contrastes sociais difíceis, onde sua invigilância espiritual contribuiu para arraigar os prejuízos desencadeados pelo mesmo padrão desvirtuado de compreensão do mundo. Padrão este que ainda assola os povos terrenos, de mais de dois milênios passados!
Em inúmeros casos, no entanto, trata-se da mesma humanidade reencarnada, enfrentando, ainda, o lento aprendizado de como coexistir com o próximo de dentro das necessidades inadiáveis do respeito e da harmonização entre as diferenças, se o que se quer, de fato, é o avanço das sociedades para cenários mais pacíficos, com autêntica qualidade de vida, porque residente em valores realistas que arrancam o homem da sua ilusão de identificação com seus “rótulos” de poder.
Nosso verdadeiro ser não é feito de coisas transitórias…
Em última análise, em se atingindo este patamar de melhoria íntima, compreenderemos, enfim, que não somos esses rótulos, convenientes à satisfação transitória do ego, no seu poço sem fundo de desejos que nunca satisfazem o vazio preenchido somente pelo entendimento claro do que concerne ao nosso verdadeiro ser! E este ser não é a transitoriedade inexorável de cada cor de pele, que vestimos a cada vida; a nacionalidade, o idioma, a orientação sexual momentânea, ou o conceito religioso mais afim a cada estágio de condicionamento experimentado nas vidas corpóreas, em função de climas culturais ou ideológicos!
Não somos, amigos leitores, a altura ou o peso corporal; a estética da moda, ou o que se considera a sua antítese, pelos padrões midiáticos consumistas. Menos ainda, o jargão das línguas e da escrita, o consumo utilitário deste ou daquele produto, ou marca de grife! Não somos também nossa conta bancária passageira, nossa classe social atual, e nem mesmo nossos nomes de família ou opiniões!
Tudo isso, em absoluto, passará – no mais das vezes, em não tanto tempo assim! E observem com isenção, para constatar, sem muita dificuldade, que há um distanciamento sutil entre o seu “ser” real, verdadeiramente inalterável, de todo este redemoinho de circunstâncias fadadas a um término natural, a longo ou curto prazo!
Há um observador! Há um estado de atenção, de consciência pura, isenta – esta sim, destinada à perpetuação, à eternidade! Um estado de ser que sabe existir de dentro dos preceitos do amor incondicional pela vida presente em toda a Criação, e por suas incontáveis manifestações – amor outrora ensinado e idealizado pelo Cristo, por Buda, e por tantos outros iluminados, em trânsito de tempos em tempos pela Terra, para exemplificar a rota segura para uma dimensão de Luz cujo alcance definitivo depende apenas de nossas escolhas por um modo de ser não mais do que simples; não mais do que pautado por respeito, compaixão e veneração pelo aspecto sagrado da Vida, existente em nós, como em todos e em tudo o que nos rodeia!
O consolador – Ano 9 – N 440