Autor: Paulo Henrique de Figueiredo
Um brasileiro como poucos amaram sua terra, Manuel José de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), deve e merece ser reconhecido como expoente e pioneiro da história do Espiritismo no Brasil. Talentoso, lúcido, com uma capacidade fabulosa de compreender nosso povo, nossos problemas e enxergar soluções. Para ele, depois de estudar profundamente, experimentar a mediunidade, dialogar com Allan Kardec e diversos espíritos, chegou à conclusão de que a Doutrina Espírita se encaixa perfeitamente para a formação de nossa identidade nacional. Durante o reinado de Dom Pedro II, saindo das amarras da colonização portuguesa, o Brasil buscava caminhar por suas próprias pernas, identificar as melhores características de seu caráter como nação. Porto-Alegre estava entre os que se dedicaram à essa missão. De família simples, alcançou, por seu talento, importantes postos no governo, como arquiteto, pintor, poeta, historiador e diplomata. Carreira brilhante, contribuição inestimável.
Em 1865, porém, vivendo em Dresden, Alemanha, depois de um longo trabalho de estudos e pesquisa sobre o Espiritismo, trocando correspondências com Allan Kardec, percebeu o grande valor dessa revolução para dar uma base sólida ao nosso tão jovem país. Escreveu, então, para o povo brasileiro, a obra Revelações — cartas sobre o Espiritismo, enviada ao Brasil em doze páginas manuscritas, aos cuidados de seu amigo Joaquim Manuel de Macedo, professor dos filhos da princesa Isabel. No entanto, não sabemos o motivo, tal obra permaneceu inédita, mantida no acervo de seus escritos no acervo do Arquivo Nacional do Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. A primeira e extraordinária obra espírita brasileira ficou por 150 anos longe de seu público.
Duas coisas chamam a atenção quando nos dedicamos à sua leitura: o fato de não ser dedicada aos “sábios e felizes na Terra”, mas “ao povo e para os infelizes, para os que precisam de luz e consolação nesta vida”. A segunda coisa está na fidelidade à metodologia científica, ao caráter fundamental e aos princípios adotados por Allan Kardec na elaboração da Doutrina Espírita. Lembramos que Porto-Alegre pesquisou e escreveu enquanto o Espiritismo estava em plena elaboração na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas.
Toda a obra trata de mediunidade, fundamentos do Espiritismo, educação e reforma social como meios de evolução humana. Mas também lida com os problemas políticos brasileiros, com coerência e profunda lucidez. Disso somente trataremos neste artigo, lembrando que o texto merece inúmeros exames e desenvolvimentos pelos espíritas.
Porto-Alegre, em seu livro Revelações, toca nos problemas sociais e políticos brasileiros, e é atualíssima quando denuncia a corrupção, o conformismo do povo e a falta de compromisso dos dirigentes com as reais necessidades do país. Em busca de uma solução, o autor considera a educação intelecto-moral e a confiança na vida futura como fundamentais para tornar o Brasil uma nação autônoma e bem-aventurada. E não poupou palavras para denunciar os abusos da classe dirigente e alertar o povo de que estava sendo enganado! Vejamos:
“Todos os males do Brasil provêm da ambição dos seus guias, do egoísmo da maioria dos homens políticos, e da indolência e credulidade do povo, que é como todos os povos enganados. Raríssimos têm sido os deputados que sacrificaram a sua votação futura à verdade”.
Segundo Porto-Alegre, duas condições estão presentes para o estado de coisas denunciado por ele em 1865 e que ainda hoje é a grande causa do atraso, precárias condições e desvios bilionários: a ambição dos políticos e a indolência e credulidade do povo! Importante lucidez. A corrupção precisa de quem explore e de quem deixa se explorar, essa é a formula real de nossas misérias. Veja como ele analisa o estado das coisas, a forma de pensar que leva ao ambiente corrompido que fornece contingente para as fileiras de vereadores, deputados, senadores envolvidos em tramas, escândalos, encobertos por mentiras e ambições sem limites:
“Os sofismas da ambição e da avareza têm arruinado a boa índole do povo brasileiro, e infundido no seu ânimo ideias e práticas errôneas. Esse desgosto, e essas lamentações diárias de tanta gente, não são mais do que a prova da luta da razão contra a imortalidade. Ninguém está contente, todos se acusam, e todos se dizem inocentes! Onde estão os culpados? Todos falam do mau fado que persegue as nossas coisas, todos veem as suas obras, e ninguém se anima a combatê-lo! O que quer dizer isto? É que cada qual deseja mais do que merece, porque quem muito deseja é infeliz. É que cada um não cumpre com os seus deveres, e não quer esperar pela hora que lhe compete e pela ocasião oportuna. É que os obreiros da nossa civilização exemplificam o egoísmo, saúdam a prosperidade, corroem a audácia, toleram o egoísmo, e menosprezam todas as virtudes que não temem, ou que lhes não servem”.
Palavras bem escolhidas de um poeta: “Todos se acusam e todos se dizem inocentes! Onde estão os culpados? ”. Não é a definição perfeita de nossos dias? De um lado, abundam na imprensa as denúncias de roubos cujo valores surpreendem o mundo, de outro uma classe política e empresarial onde todos se dizem inocentes, indignados pelas acusações infames, honrados que são desde o berço, junto à mamãe.
Porto-Alegre não faz rodeios, vai direto à questão fundamental do problema:
“O povo queixa-se do governo que ele próprio elege, e não cura de puni-lo na ocasião própria, exprobrando-o, e deixando de reelegê-lo”.
Não me cansarei de lembrar — trata-se de uma obra de 1865! Quantas gerações de políticos se passaram? Quantos se perpetuaram por reeleições sucessivas até a morte. Quantos filhos, netos, bisnetos, tataranetos continuaram essa saga da infâmia? Sempre tendo o apoio de nosso povo, como diz Porto-Alegre, enganado, indolente e crédulo.
Hoje são os magistrados, procuradores os vilões eleitos pelos políticos. Repetem a ladainha: trata-se de perseguição política, estão me acusando injustamente, abusam de seus poderes, somos inocentes defensores da causa pública! Como se o noticiário dos desvios fossem miragem. Incrível, mas Porto-Alegre toca no assunto:
“Os demandistas queixam-se dos magistrados, e não confessam a pressão que sobre eles exercem com empenho, e até com ameaças; nenhum revela a injustiça que requereu e exigiu, e todos os acusam de iniquidades e corrupção, sem se lembrarem de que são eles os corruptores! Pobres magistrados, que devem ser anjos no meio de tantos demônios”.
Direto ao assunto, Porto-Alegre afirma sem meias palavras:
“Todos os males do Brasil provêm da ambição dos seus guias, do egoísmo da maioria dos homens políticos, e da indolência e credulidade do povo, que é como todos os povos enganados. Raríssimos têm sido os deputados que sacrificaram a sua votação futura à verdade”.
Vale a pena ler os demais argumentos, as análises cortantes, as denúncias permanentes. Porto-Alegre, aos sessenta anos, que representam mais pela época mais rude vivida, abre sua mente e revela um povo brasileiro e sua classe política que permanece nas mesmas condições. Todavia, quando a ferida está exposta para todos, estamos mais próximo da cura, pois nada se esconde, e não adianta tapar e dar de ombros. Quando as evidências não encontram um tapete grande suficiente para esconder a sujeira, nada resta senão recolher com a pá e levar ao lixo, rendendo-se à faxina. Estamos mais perto disso do que nunca. 150 anos depois.
Porto-Alegre não se furta a dar uma solução, e vem daqui sua genialidade. Como resolver esse estado precário? Pela educação, afirma o sábio ancião. A mais completa reforma na educação de nosso povo, tirando-o da indolência que nunca desejou permanecer, afastando a ingenuidade que permite sua manipulação, que desperte sua vontade livre, agindo por seus próprios pés, escolhendo os caminhos, compartilhando os recursos públicos de forma a espalhar o bem-estar para todos, destruindo os privilégios. Só a educação pode alcançar esse resultado.
Leve em conta as particularidades da época, e acompanhe o raciocínio lúcido de Porto-Alegre ao anunciar os benefícios do Espiritismo para o Brasil que mal saía das fraldas:
Não temos cuidado em plantar convenientemente. A educação moral e física, que prepara o homem bom e saudável, está por fazer-se em relação à índole e ao clima. A da mulher, que é a melhor criatura do Brasil, vai-se estragando em alguns armarinhos literários, chamados colégios, onde nada se aprende para dar à sociedade filhas modestas e obedientes, esposas fieis e laboriosas, e mães amorosas e delicadas. O menino, que há de ser cidadão e cooperar para a grandeza do seu país, gasta o tempo e a memória com coisas inúteis à posição que o espera, deixando de parte os três catecismos essenciais a todo o homem: o da Religião Cristã, o da Civilidade, e o da Constituição do Império, que o devem melhorar para com Deus, os homens, e a pátria. Onde está a nossa educação física? Numa ginástica imperfeita ou no manejo das armas? Passemos adiante, porque a não encontramos. Se eu fosse Ministro havia de cuidar muito seriamente. Uma nação bem-educada física e moralmente, faz em dez anos o que outra faz em um século, porque tem um bom corpo e uma boa alma, a força e a inteligência, que é tudo. Em outra ocasião falarei mais de espaço sobre esta matéria”.
Todos os políticos corruptos, todos os empresários corruptores que viveram pilhando durante os últimos dois séculos o nosso país foram meninos e meninas. Não existe educação moral, nem se cogita disso. Não falo da educação moral do catecismo, que deseduca e coloca justamente o jovem na condição de indolência! Falo da educação moral autônoma que define o ato do dever como ação voluntária, consciente e racional. Dever que promove a igualdade, liberdade e fraternidade. Dever que elege a cooperação e solidariedade fundamentais para as relações sociais. Dever que tira o indivíduo da indolência, criando tal exigência que nenhum corrupto se reelegerá, nenhum empresário se atreverá a conspirar, e a fortuna dos cofres públicos terá endereço certo para sua aplicação, nas escolas, creches, centros comunitários, saúde, arte, e demais interesses do povo. Esse tempo chegará, e aí de você, que lutou para adiar esse dia. Como disse Chico Buarque:
“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.
Você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia.
Como vai se explicar, vendo o céu clarear, de repente, impunemente.
Como vai abafar, nosso coro a cantar, na sua frente!”
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